sexta-feira, setembro 24, 2004

Casuísmo mundificado em Gracián

Gracián não foi o primeiro a me alertar para o fato, pois é de amplo domínio, esquecido ou desdenhado apenas por incautos. Em seu opúsculo em prol da prudência - que também chamou de oráculo - a matéria retorna como que em ciclos, envolta em roupagens diversas ou subordinada a um ou outro dos tópicos principais da obra. É resumível numa palavra: inveja, assunto de presença insidiosa nas vidas de todos. Atido copiosamente ao senso comum, decerto não traz ali - e porventura nem se o quisesse - maiores novidades o conceito, embora fascine a artesania perifrásica com que o mais das vezes é posto em foco: em virtude disso, a cada aparição é como se o vemos por um lado até aí desconhecido, despertando a surpresa do inusitado.

Por certo em virtude da diversidade conflitante do gosto geral - em grande parte parecendo-me insossa futilidade ou autêntica loucura - foi que me dei conta tão tardiamente de a inveja acossar apenas no tocante àquilo de que mais se gosta! Até aí, nada de novo, suficiente é consultar o mais breve dicionário para constatá-lo. Quanta perversidade, no entanto! Não fosse o autor desautorizar de modo explícito o paradoxo, o qual define como "um tipo de engano que parece plausível a princípio e nos surpreende com sua novidade picante" e como algo que "decreta fraqueza de discernimento e falta de prudência", desaconselhando-o particularmente quando se o utiliza para fugir ao vulgar, sua finura conceptista parecer-nos-ia flertar permissivamente com o instrumento consagrado pelo eleata Zenão.

É paradoxal a inveja: conclusão obrigatória ao término da leitura das sucessivas exposições desse sentimento no seu oráculo, apesar das objeções de Gracián às antinomias. Aliada às evidências da constância no quotidiano universal e do esforço habitualmente subentendido na iniciativa de preveni-la ou de esquivá-la, a conclusão acima acarreta outra: o vertiginoso pendor humano para conviver com o disparate. E, em assim o sendo, é naturalmente perversa a inveja, visto que oblitera, no todo ou em parte, o desfrute do bem, transtornando-o ou transfigurando-o numa sensação de mal.

De mecânica conhecida, não abole em absoluto a noção de bom em quem a nutre. Caso o fizesse não apresentaria contradição, sendo antes sorte de bênção, de bálsamo, poupando sua vítima, exclusivamente confinada ao reino maligno, do cotejo que a faria preferir estar no reino oposto. Sua malignidade está em exercer-se a plenos sentidos, a condição de excelente discernimento de joio e trigo e, o pior, na certeza de se estar em desfavor.

Fato: é profunda a dificuldade de julgar a inveja, em especial quando se é alvo dela. Tampouco suas vítimas estão aptas a fazê-lo, ou se encontrariam a um passo da cura: do contrário, sentem-se tomadas de legítima revolta ao experimentá-la, da qual não lhes ocorre de pronto fugir. É claro, há invejas injustificáveis, essas originadas na falta de discernimento, quando há desejo mórbido de possuir o que se tem de sobejo. Tolerá-las é fonte de confusão, como quando se admite haver ao menos ponta de despeito em todo sentimento de admiração.

Refiro-me não a estas últimas, mas às nutridas em completa lucidez. Gracián nos dá um exemplo de especial crueldade: "espere pouco dos que têm defeitos físicos, pois gostam de se vingar da natureza por tê-los honrado tão pouco". Tendo-se em conta a finalidade da obra em foco (a de oriente em meio ao comércio humano) e o lugar e o tempo em que se escreveu (Espanha em meados do século XVII), ainda que perversa, é no mínimo atilada a observação. Permito-me esclarecer um pouco mais: não obstante sua condição clerical, da qual se veria constrangido a exortar os desafortunados à tolerância, quando não a regozijarem-se com os reveses (pois nestes supõe a igreja promessa de bem-aventurança post mortem), o autor toma direção contrária, por decerto dar ouvidos antes às evidências que às presunções santificantes da fé católica, uma vez a realidade desses infelizes a essa época ser eivada de sofrimentos, o principal dos quais a acentuada dependência do favor geral, fonte a alimentar temperamentos acerbos.

Por essa e por outras tantas tiradas análogas o realismo do jesuíta, assombroso, poderia ser dito sem exagero como espécie de maquiavelismo plebeu, uma vez dirigido não a déspotas, como o do florentino, mas ao vulgo. Pondo de lado a severidade disciplinar de sua ordem, a qual proíbe exposições públicas dos seus membros, não era outro o motivo, segundo parece, para que assinasse seus trabalhos com pseudônimo e para que alguns tivessem condenada a publicação, sujeitando-o às sanções costumeiras até morrer. Doutro lado, isto faz de Gracián produto legítimo do iluminismo humanista - que elevou a circunspecto paroxismo - cultivado pelos sectários de Inácio de Loyola, esse cuja práxis tanta celeuma provocou ao longo da colonização ibérica das Américas.

Seu senso de realidade um tanto ácido aproxima-se deste utilizado na prática psicanalítica hodierna, sorte de medicina cuja sabedoria retira os pensos de chagas abertas, arejando-as em detrimento do pejo universal de tê-las à vista. Mas não o faz sem antes ter à mão unturas eficazes no avio da cura, de todo distintas das prescritas na fé. Aos defeituosos, bem como aos sãos, nem resignação nem a incerta recompensa póstuma por se terem resignado: ministra-lhes Gracián medicamento dos mais empregados na atualidade, distribuindo-o racionalmente nas composições de múltiplos ítens de sua botica de prudência, a auto-estima. Todos estamos informados dos prodígios desse fármaco ancestral, em uso na produção de verdadeiros heróis na superação das perversidades do fado e que, embora faltos de membros e órgãos ou das funções destes, são recebidos em Olimpia como os que a excelência aquinhoou. Muito se deve dessa transformação às condições propiciadas pelas técnica e indústria advindas no mundo atual, conferindo significativa ampliação das atividades independentes dos portadores de imperfeições, determinante direto do apreço pessoal.

A inveja, mostra o jesuíta, mesmo nutrida com motivos justos (como os aleijões), é de grande poder infeccioso: qual faca de dois gumes, faz vítimas somente quando, instalando-se em alguém, atinge também um alvo ao menos. Até aqui discorreu-se sobre como frei Baltasar socorre as primeiras; entretanto, sabendo ele da inutilidade das curas isoladas nesse caso, trata de acudir também a outra parte.

Saca, portanto, do seu alforje filosofal, de primeiro, a indiferença, medicina em verdade preventiva, de pouca valia quando já se foi atingido pelo mal - adverte-nos. Em seguida mostra, sem traço de afetação, outro frasco, e o apresenta como o continente de elixir definitivo, eficiente na profilaxia tanto quanto na debelação das crises agudas e dos estados crônicos nos tocados pela inveja alheia. Da naturalidade com que nos exibe o composto depreende-se a sua certeza de o conhecermos suficientemente, mas em vista do pasmo geral, recita um a um os componentes: generosidade, o principal, à qual se adicionam em diversas proporções complacência e, naturalmente, amor-próprio, ali constituído de mérito e talento. Já advertido de nossa fraca memória, o frade finaliza enunciando os efeitos colaterais, infensos apenas aos verdadeiros enfermos da inveja, esses dos quais ela emana, para quem a mistura tem o efeito dum dobre de finados.

De curioso nos tratamentos é se fazerem ambos com o uso da auto-estima que, enquanto agente no invejado, é nefasta para o invejoso que não a ingeriu ainda. De efeito miraculoso também, se ministrada apenas neste último, poupa igualmente o outro dos sintomas malsãos. Conceda-se uma distinção crucial: a estima de si indicada aos invejosos não é a mesma prescrita aos invejados, uma vez a dos primeiros ter de forjar-se em puras vontade e imaginação em continuado esforço de negar a evidência decepcionante, enquanto a dos derradeiros tem o frescor da realidade ditosa, dispensando artifícios quaisquer para se hipostasiar. Eis segredo somente acessível aos versados na alquimia sútil do espírito!

Nada mais natural do que o olho desconfiado seguido de explosão biliar do catolicismo em face das práticas desse físico de almas, seu sectário. Semelhante fúria se justifica somente nos cria-cobras confiados em pedagogia de falso liberalismo cujos fundamentos são a inépcia e o comodismo dissoluto. Picada pelos reformismos de meados do século XVI, à fé católica houve por bem tolerar o inaciano, haja vista o luterano ter-se afastado por conta própria. Via-se então, cerca de cem anos depois, desafiada por outra renovação, desta feita no seio daquele que escolheu indulgenciar, pondo em xeque um dos esteios católicos, terceira das virtudes teologais, a caridade, o que, por força da fraca engenharia dos alicerces religiosos, debilita os restantes.

Atropelando Francisco de Assis e tantos penitentes como os seus confrades jesuítas amargando febres e silvícolas num Mundo Novo, Lourenço - firma temporal do monge Baltasar, audaciosa o suficiente para se apresentar com o seu próprio sobrenome - desdenha dessa forma transfigurada de amor ao próximo (a piedade, sentimento que ensina sorte de dolorosa mescla de sujeito e objeto) subjazendo ao ato caridoso, dizendo: "não se tornar infeliz por compaixão aos infelizes". Apenas Borges, no fragmento final dum seu evangelho apócrifo, faria possível concisão maior: "felizes os felizes"!

Tanto, não obstante, não diz tudo. Sobreviver à inveja seria tão-só uma etapa - grandemente compreensiva, é verdade - na obtenção da felicidade, cujos postulantes deveriam gozar também de plenas discrição, perspicácia, sensibilidade, sensatez, coragem, cautela, honestidade, verdade, prudência, entre outros atributos numa cadeia de virtudes de que é merecedor exclusivo o 'herói universal' (para certo despeito do Zaratustra e para o deleite de Schopenhauer, Godwin e Feuerbach), saudável e sábio como só um santo pode ser. Um santo do século no século. Assim seja!

Waldemar Reis - 24/09/04

domingo, setembro 19, 2004

Caprichos

"A arte é vã se não exerce uma influência." (Atribuída a Francisco Goya, quando admite o próprio erro de ocultar - temendo a Inquisição - a sua série 'Caprichos')

I
A velha tese da "arte inútil (vã)" em oposição à da "arte engajada (influente)"...Ambas são primas, não muito afastadas, das idéias de "arte-arte" e "arte-não-arte".

Uma vez eu me perguntei, vindo de um debate de filosófos(!), o que seria, de fato, inútil no mundo. Ora, você me diria: lá me vem o "absoluto"! Nem querendo - redargüiria eu: como posso lidar com o "absoluto" senão como fantasia, como quimera da pirrônica lógica, isto é, do pensamento, num mundo que é o reino do "relativo"? Utilidade, em suma, diz respeito a um sujeito, sempre; trata-se de um valor, tão-só. "Inútil", por conseguinte, só teria sentido figurativo, meramente retórico, o que, em se tratando de assunto seríssimo como o é a arte, tende a enfumar o entendimento. Dizê-lo em circunstâncias como essas é indício da falta de um olho ou de indolência, bastando quando muito um passo para se deparar, do outro lado, com a utilidade. E que utilidade! Tudo é útil, em última análise, restando saber para quê.

Seguindo o raciocínio da tese enunciada no princípio, sendo "inútil", salva-se a arte se é "engajada". Então repito aqui a pergunta acima, usando o artifício matemático de substituir apenas as variáveis, no caso, "inútil" por "não engajado" e, antes mesmo de você fazer muxoxo para a sombra do "absoluto" parecendo retornar, dou a resposta: é também impossível qualquer ocorrência não engajada com as demais suas coetâneas.

Tudo, por conseguinte, seja ou não arte, é útil e engajado. E essa oposição "inútil" versus "engajado" relativa à arte sempre foi indício, para mim, da meia coragem de certos oprimidos por regimes ditatoriais: como o poder é composto sempre de gente burra (visto ser burrice detê-lo), nem sempre se inteira das cifragens que urdem os "engajamentos' nos seus "objetos de arte" e, quando o faz, ainda há a chance de o "artista" sair pela culatra das múltiplas interpretações, o velho "qual é, meu irmão? não é nada disso!".

A utilidade da arte, acima das esferas comezinhas de oposições como essas, sempre foi e será a do despertar do conhecimento, a do fazer por simplesmente ser possível esse fazer (dado o material utilizado prestar-se a manipulações e a combinações a que se presta) e, mais ainda, feito o objeto, a do dizer-se o sujeito que o aprecia (seja ou não quem o urdiu), para si, 'isto é bom' ou 'isto não é bom', a despeito de sujeito outro discordar.

Todo o resto é questão pura de mercado ou, dizendo-o de outro modo, de arrebanhar o maior número possível de indivíduos em torno a uma certa preferência com vistas ao acúmulo de riqueza de outro determinado indivíduo. Só. Nesse contexto tem maquiavélico sentido a oposição "arte e não-arte", como o querem as atividades 'críticas' dos srs. Romano de Sant'Anna e Ferreira Gullar.

O artista lança ao mar mensagem numa garrafa: não sabe se a encontrarão e se, lida, será sequer entendida, diga-se, se o destinatário vai 'vibrar' na mesma freqüência em que 'vibrou' quem a compôs. Os de pura têmpera não acalentam a menor esperança de resgate em seu isolamento ou nem mesmo o querem, sendo seus textos quase sempre unívocos: 'deixem-me em paz!'

Uma observação final: embora o negue a Estética de orientação hegeliana, o "belo natural" é certamente o modo mais à mão para o exercício do estopim do conhecimento (a arte), bem como está provido, contra o que postulou o alemão, do "Espírito", pois o "Espírito" (esse sucedâneo de "História") está por necessidade em quem o vê, quem o aprecia: a Natureza não é aos seus olhos, meu caro amigo, a mesma que foi ao olhar de Lucrécio. E tanto assim o "belo natural" o é que vem sendo objeto constante da cobiça imitadora do "belo artístico" ao longo das eras. Vem-se tentando superá-lo - ao "belo natural" - como se por si não fosse ele capaz de mover, no sujeito, o conhecimento, de suscitar-lhe os juízos "bom" e "mau" dos quais este se constitui. Vã pretensão. No fundo, seguindo esse caminho, é possivel que o "belo artístico" nos tenha prestado um escabroso desserviço, condenando-nos a progressiva (e espero que reversível) insensibilidade, contra a qual só mesmo os reality-shows, os espetáculos terroristas ao vivo, entre outros, funcionam.

II
É à consciência da duração da obra de arte e da missão final da sociedade humana que devo o bom gosto de recusar a arte-panfleto, a arte-denúncia, a arte-choramingas, essa representante de circunstância cujo destino tem de ser o imediato esquecimento, o mais autêntico desdém.

Concebida como o é a vida, para durar enquanto possível for, a obra aspira à perpetuidade, à perene juventude do seu potencial evocativo do ser da consciência, que é o perene conhecer. Tem de estar, portanto, a serviço dos valores imorredouros, não daqueles que quer o humano ver extintos o quanto antes.

As condições tirânicas, assolando a comunidade humana ao longo de eras, podem parecer merecedoras - por tanto durarem - do olhar do artista. No entanto, figuram em meio a tudo quanto quer o homem ver banido de sua convivência pois, podendo ser até logicamente dedutíveis do conceito mesmo de grei, estão em contradição com a idéia que, humanos, alimentamos de nossa própria condição, e, se devem integrar o discurso artístico, que o façam como o fazem os seus possíveis materiais, como o são o barro, o som, as tintas, as palavras, as idéias, e tudo mais existindo no mundo. Que não se lhes erijam estátuas, por mais degradantes que nestas estejam representadas, que nem mesmo se as execrem, pois isto é ocupação dos arrazoados, da filosofia. No mais, que sejam tratadas com a indiferença com que se pintam as gramíneas numa paisagem, que sua necessidade na poesia não exceda a dum artigo definido cuja presença pode, ademais, ser suprimida num sem número de casos: são apenas parte daquilo sobre que, inevitável e lamentavelmente, temos de circunstancialmente nos apoiar enquanto não encontra o pé sítio de legítima firmeza onde pisar.

Por fim, sendo possível, o aconselhável mesmo é que se lhes passemos ao largo, que as ignoremos com toda a sinceridade, pois as condições tirânicas alimentam-se de tudo quanto se lhes é lançado - seja contra, seja em seu favor - e em especial do que há de nefasto, de pútrido, de negativo, que a ingenuidade ou a incúria podem num rasgo deixar escapar. No mais, que isto seja tomado como tão-só um manifesto de gosto muito pessoal, muito embora procurando fundar-se em princípios que tanto a Ética quanto a Estética podem facilmente comprovar, como o imperativo de equanimidade no trato dos homens e a vocação para o eterno intrínseca à concepção da obra de arte, ainda que eternidade possa significar, para muitos, a intensidade de um grito, a pungência de uma dor, a efemeridade de um suspiro.

III
Devo de fato ter sido inexplícito! Nem o maior esforço dedutivo, untado ou não dos favores da retórica, parece capaz de trazer a lume em sua pureza a idéia fermentada no isolamento do indivíduo. Inserta no comércio dos homens, é trocada de mão em mão, às vezes sem sequer um olhar de viés, sendo amarfanhada, feita em pedaços, findando seus dias dispersa em outras idéias, em geral suas opositoras, que os mais canhestros expedientes logram aglutinar para serem dadas em seqüência à bulha indiferente e ignara, e assim para todo o sempre. Não obstante, persisto.

E não vou empregar-me no arrazoado devido, por certo o melhor para o auxílio da estutltícia sinceramente empenhada em ilustrar-se. Atenho-me, enfim, a argumento único de prova singela. Que fique clara de um só golpe a utilidade seminal das idéias estudadas na hoje alcunhada Estética, entre elas a de arte, na formação disto que você é, leitor, seja para bem, seja para mal. Sim, e é o gosto - a preferência - o indício singular de elas existirem de fato. Não, não são delírio: em absoluto. Assim tem sido desde o princípio, o seu e o meu, o de todos: gosta-se ou não das coisas, cada qual nutrindo suas preferências. Por conta disso - por favor, continue a seguir-me, não se deixe flagrar colhendo provas para o evidente! - tudo o mais, como eu principiava a dizer, por conta disso se faz possível: a fome e a saciação, o desprezo e a paixão, a música, a poesia, as promessas, as deduções, e mesmo a guerra se faz por se gostar mais ou menos das coisas.

Vem-se ao mundo em branco, cá começando a riscar-se a história de cada um. De sabedoria inata não se traz muito: quem sabe a capacidade de distinguir o antes do depois e a de reter o que nos impõem sem descanso os sentidos. Naturalmente somos dotados de um só poder, o de, segundo a conveniência, dizer não: não aprecio, não concordo, não faço; sempre segundo certos pressupostos, parte dos quais só com tempo e continuado esforço você seria capaz de discriminar, todos, indiscutivelmente, referidos no seu gosto. Dado tanto, vá tomando as peças com o máximo critério, sem a menor precipitação e, quem sabe ao cabo de pouco mais ou pouco menos de um punhado de lustros você chegue a si mesmo! Indo um bocado além, caso a fortuna lhe falte para todo o sempre, em sua inefável melancolia você porventura encontre toda a ciência, quase inteira a sabedoria, as quais lhe serão, suponho, inúteis em vista da circunstância de sua pessoal eternidade. Veja aonde chegou: a quase tudo, havendo muito mais em função do quanto dure você. E isto a partir de quase nada, corrijo-me, a partir do quanto na estrutura ou na essência da arte é vital!

É para isso que ela serve: para mantê-lo sempre novo, como se a sua história começasse a se escrever a cada instante; para conservar ativo, ágil, o mecanismo de sua sensibilidade. Pois, mesmo sendo - do seu ponto de vista - má, uma manifestação de arte jamais deixará de ser arte enquanto houver alguém que a aprecie como tal, nada perdendo, de um modo ou de outro, em utilidade. Continuará útil para você, que a despreza, visto que o encorajará ao desfrute de outras manifestações de arte e, não encontrando uma sequer do seu agrado, ainda poderá conduzir seu olhar para o mundo, para a natureza donde ela e suas congêneres vêm.

Portanto, não esqueça: você está aqui para o puro desfrute. Não vá se meter em encrenca. Se não der por ora, por certo depois dará. O mundo o convida insistentemente.


IV
Erro histórico: 'belo natural' versus 'belo artístico'. Ora, você me diria, ninguém mais pensa segundo semelhante critério: Hegel, nesse pormenor, está morto e enterrado. Ledo engano! A oposição ainda está presente, se não de forma explícita, em asserções como: 'isso não é arte'. Exagero? Não. Há, evidentemente, o que não é arte, mas o critério para distingui-lo não pode ser: 'é ciência', 'é filosofia', 'é esporte', 'é comércio', entre muitos. O motivo é simples: embora possam ser individuadas, tais áreas de conhecimento ou de atuação não possuem limites muito precisos, imiscuindo-se umas nos terrenos das outras, entre os quais o da arte. É comum ouvir dizer de alguém ter feito de uma ocupação qualquer 'verdadeira arte', evidência que pouco diz, não obstante, pois pode aparecer quem pense em contrário, às vezes considerando outrem como 'artista em seu ofício'.

Há duas coisas a considerar a partir do exposto: a primeira, que tudo quanto se disse dos outros fazeres e de sua imbricação com o fazer artístico pode aplicar-se confortavelmente ao objeto natural; a segunda diz respeito à questão do sujeito, o verdadeiro responsável por essa aparente baderna na determinação do que é ou não é arte.

Começo discorrendo um pouco mais sobre esta última consideração, em princípio fazendo apenas uma observação: é inegável a preponderância de um sujeito no estabelecimento do que seja artístico, sendo suficiente aparecer alguém dizendo 'isto é uma obra de arte' para que todos nos voltemos à apreciação disto cujo status foi de súbito alterado. Muitos aceitam prontamente a nova designação, enquanto outros se põem a disseminar dúvidas na forma de, por exemplo, 'por que isto é arte?' ou 'ora, se isto pode ser arte, então aquilo também pode!' Salta aos olhos, enfim, a pergunta: 'o que faz algo ser tomado como artístico?'

Respondê-la foi em parte a intenção do "Capricho" antecedendo imediatamente o presente. Retomo-o, porém: é profundamente pessoal o que chamo de 'a outorga do rótulo de arte' a objeto qualquer, havendo entretanto algo em comum a todas essas outorgas particulares, a saber, a circunstância de o tal objeto haver desperto num sujeito a experiência valorativa fundamental para que este, enquanto repositório de conhecimento, incluso o de si próprio, enquanto consciência, portanto, se faça viável. É na apreciação dita 'da arte' que se exercita, do modo mais fundamental possível para uma consciência já preenchida do tecido vário do viver em todas as dimensões (como a social, a biológica, a psicológica, entre incontáveis outras), o potencial de dar-se conta de si e do mundo. Nesse transe apreciativo o sujeito 'pega no tranco' como se, à imitação dum automóvel muito usado, estivesse 'afogado'. Por isso, nem sempre se espera pacientemente pelo advento de alguma 'pura' manifestação artística, apressando-se em elegê-la em meio ao que de mais imediato se dispõe.

Num estudo - de nome em extremo complicado para ser repetido sem melhores motivos - escrevi que o processo de outorga do rótulo de arte às coisas possui uma outra vertente, simultânea a esta e que produz a outorga do rótulo genericamente chamado de 'objeto do afeto', a qual se volta com exclusividade para o que entendemos como 'seres'. Assim a 'afetividade', aqui tomada de uma maneira mais abrangente, recorta o mundo em duas classes de existentes, ambas merecedoras de nossa apreciação: a dos seres, nos quais é possível aplicarmos a etiqueta de 'amados', e a das coisas, etiquetadas oportunamente como 'artísticas'. Familiares, amigos, animais e plantas de estimação fazem parte do primeiro grupo, enquanto os mais diversos objetos inanimados e mesmo ações (teatro, dança, cinema) pertencem - ou podem pertencer - ao segundo.

Como é evidente, passamos a vida nesse exercício compulsivo de pôr a funcionar os lastros do conhecimento, os lastros da consciência. Não há um momento sequer de pausa, exceto, é possível, o do sono sem sonhos! À mesa, diante do espelho, escutando uma canção, lendo um livro, realizando bem o nosso trabalho, passeando ao ar livre e, no caso de insatisfação extrema com todo o passível de ser amado ou apreciado como artístico, inventando ou criando algo que - segundo cremos - suscite em nós esses sentimentos! Outra curiosidade salta aos olhos: sendo tudo passível de se tornar ser amado ou objeto de arte, a depender do arbítrio exclusivo de cada sujeito, cai por terra de uma vez por todas a distinção de arte e nâo-arte, uma pulseira de miçangas só possuindo mais valor do que um cerâmica de Picasso para alguém em particular e em certas circunstâncias. Uma questão simples de mercado!

De volta ao 'belo natural', Hegel disse ser impossível apreciá-lo como se o faz com o 'belo artístico' pelo fato de nele, o 'natural', não estar presente a 'Idéia', ou seja, sendo embora 'belo', não é o 'belo ideal', produzido por quem urdiu a 'história', o ser humano. Estive convencido disto por tempo suficiente para hesitar confessá-lo! Embutido em correntes que prevalecem até recentemente, o hegelianismo foi grosso retrocesso, pois um senhor muito meticuloso, do tipo que passeava diariamente a certa hora a ponto de os relógios serem acertados segundo os seus passos e cuja filosofia maior se manifestou já em plena maturidade, já havia apontado o caminho mais confortável para os afeitos a jornadas como a presente: já muito velho, quando resolve investigar a fisiologia do 'juízo', todos o tomam por senil, mormente porque suas elucubrações determinariam a demolição da prevalência, na determinação do que seja 'belo', 'arte' e outros valores mais, do criador, do autor, colocando em pauta este outro sujeito, sem o qual tudo, tenha ou não um criador reconhecível ou nominável, não pode ser 'belo' nem 'artístico' ou, a rigor, não pode ser nada.

É verdade, esse senhor (I. Kant) ainda estabeleceu, quando investigouo conceito 'belo', a distinção cuja eliminaçâo a arte futura, em especial a do século XX, viria dissipar, falo do 'belo natural' e do 'belo artístico', a qual assume, no pensamento hegeliano, função de lastro. Semelhante deslize, natural uma vez existirem objetos aparecidos da natureza e outros urdidos pelo homem, deveria ser dissipado em vista do que desenvolveu em torno ao papel do sujeito, esse cuja apreciação, na qual está em jogo o 'gosto', é o rito que confere ao objeto assim apreciado o valor pertencente a si apenas e do qual pouco se pode inferir, menos ainda se nele se faz a distinção entre o que se produziu pelo homem e o que se encontrou assim como está no mundo. A presunção de deverem ser apreciados de maneiras diferentes os objetos oriundos do homem e da natureza, se levada a miúdo (como o fez Hagel), traz a questão da arte de volta ao centro no qual se considera o objeto como dotado das características que autorizam a apreciação, que a suscitam em a direcionando para o modo artístico, para apreciá-la como arte em oposição a outros cuja estrutura nos determinaria a apreciá-la como objeto da natureza: tal centralização no objeto, já abandonada em Descartes e em Hume, é inútil pois num sem número de situações é indecidível a questão da origem, não obstante a apreciação ocorra ou possa ocorrer indiferentemente, como se mostrará mais abaixo.

De que lhe adiantaria, leitor, eu estar escrevendo isto daqui se você não o lê agora? Sim, falo somente do seu ponto de vista, porque do meu, além de ser quem o escreve, sou também quem primeiro o lê. Não o torno em arte, tampouco você, por tão-só o ler, mas é possível que um de nós - tantos são os que não o criaram mas o leriam - o faça! (Ainda há esperança!) Hegel esqueceu que a tal 'idéia', por certo verossímil, não está nas coisas, mas em quem as percebe. O ideal está no sujeito, a este fornecendo os critérios para as escolhas e rotulações que produz.

Estive, faz tempo, em Campos do Jordão durante o inverno, numa sala de extraordinário pé-direito na residência de um conhecido. Isolado em imensa parede, um quadro pequenino demais para o vazio ao seu redor. Desconheço o motivo de minha atenção voltar-se periodicamente para ele durante a conversa, aliás, muito interessante. Tratava-se de paisagem - a despeito do tamanho da moldura e da distância para um olhar míope como o meu - realista. Passado um tempo, cessou a fumaça da chaminé na casinha dentro da paisagem, o que tomei por ilusão, visto as pessoas me chamarem mais a atenção do que a pintura onde, uma hora ou duas a mais, se fez noite! Estupefato, fui tirar a limpo as impressões e, perto do estranho objeto, percebi tratar-se de uma janela, não menos surpreendente pelo seu tamanho relativo à parede do que o tinha sido o suposto quadrinho. Eu passara umas poucas horas apreciando uma obra de arte que, ao fim, realizei ser mera janela. Cheguei até a esboçar alguma crítica à localização do quadro, ao motivo e, não menos surpreendentemente, ao 'estilo', do qual pouca informação possuía em virtude dos meus olhos insuficientes.

Pensemos agora em quantas florestas, morros, vales, lagos, praias, cujas configurações podem ser devidas à interferência mais ou menos intencional do elemento humano por ali de passagem. Assim como os mapas obsoletos e milhares de objetos cuja função se deteriorou (incluindo as obras de ciência que a evidência fez inválidas), podem um dia vir a enfeitar uma parede numa residência ou num museu (ou, no caso dos tratados científicos falseados, ser admirados apenas pela escritura do autor a despeito - ou em virtude - de versar sobre o improvável), qual o impedimento, de olharmos para o mundo indiscriminadamente como se o faz com a arte? Seria por termos de lhe supor um criador? As paisagens que sofreram a intervenção humana seriam menos artísticas do que os jardins de Babilônia ou um jardim botânico qualquer por conhecermos destes últimos seja os seus autores, seja a intenção por trás das obras?

Ao valorizar a intencionalidade, presente na distinção 'natural'-'artístico' relativa a 'belo', Hegel (e em certa medida Kant também) exige de um objeto qualquer, para ser tomado como arte, que possua um autor. Sendo ele desconhecido ou ignorada a sua intenção, como saber se estamos em presença de algo feito com o propósito de cumprir a função de arte? Eis a razão de, no passo do hegelianismo, muito da estética escolar ter como esteio as biografias dos artistas e o inventário de seus propósitos no exercício do seu trabalho, e de na ciência (e na história, por que não?) haver quem se inquiete com os impeditivos das provas da existência de Deus! É inegável a importância de tais informações, caso possíveis, não obstante muito possa dizer-se na falta delas, boa parte do que - espero não causar espécie ao afirmá-lo - diz respeito a você mesmo, quem se põe a investigar ou apreciar o mundo.

Waldemar M. Reis

terça-feira, setembro 07, 2004

Cantada

(texto originalmente publicado na edição de setembro/outubro de 2004 do jornal ParaTodos, da ESPM-Rio)

A edição de agosto último da revista 'Superinteressante' - conhecida divulgadora de ciência e tecnologia - traz reportagem a um tempo lisonjeira e desconcertante sobre música. De um lado, mostra que a divina arte está presente, sem exceção, em todo canto do planeta e enumera alguns de seus efeitos (todos observados e comprovados como manda o figurino científico, digo, valendo-se de medições exaustivas), entre os quais o aumento significativo de sinapses (o nome dado pelos cientistas às conexões de neurônios), o que, trocando-se em miúdos, faz do usuário e, mais ainda, do praticante de música pessoas cujas massas encefálicas estão aptas a realizar, com grande rapidez, número maior de operações que as demais. Sim, parece que músicos e seus ouvintes regulares são de fato muito inteligentes, ou assim querem crer os pesquisadores! Por outro lado, após esse caprichado lustro nos nossos egos, a matéria não pode deixar de puxar o tapete, quando informa que a utilidade da música, infelizmente, ainda é por completo desconhecida, em resumo, ela não serviria para nada. Ora, de tudo quanto até aqui se disse, parece óbvio concluir que, se puxaram algum tapete, esse foi o da própria ciência, pois a música termina servindo, se não para outra coisa, ao menos para aumentar a inteligência!

Uma abertura assim deixa claro que toda esta conversa tem por alvo levar, no mínimo, a um maior consumo de música, não bastassem as pilhas de cds e dvds, as trilhas sonoras de novelas, filmes, publicidade, e as horas incontáveis nas filas à entrada dos concertos que são parte da vida de qualquer um. No mundo moderno, se depender do volume musical despejado em nossos ouvidos a todo instante, antes de mais inteligentes, tendemos mesmo é a ficar mais loucos, em especial se considerarmos o aspecto qualidade.

Não, não se vai desfiar aqui um receituário estético, pois isso é, a despeito do quanto se diga e se queira provar, uma questão pessoal. Cada qual sabe o que quer e pode pôr para dentro de casa ou das orelhas (pois agora tudo tem de vir com bula, embora quase sempre em tipos praticamente ilegíveis, é bem verdade)! E qualquer gênero de arte, não apenas a música, tem seus representantes mais e menos nobres, fato de conhecimento universal. O objetivo aqui, portanto é outro: nada de crítica, de censura, nada de mais estímulo ao desbragado consumo já existente.

Trata-se, em suma, de convite à produção. Sim, a passar de consumidor a produtor de música. De especial, na convocação, o seu caráter irrecusável, e para tanto espero contar com um mínimo de sagacidade, prometida na ciência, propiciada pela imersão musical a que venho me submetendo por toda a vida. Tamanho cuidado tem justificativa: um sem número de objeções ostentadas por quem, em última análise, ainda não rompeu com a inércia de ser somente ouvinte. Estas, de modo geral, têm aparência convincente e entre as mais comuns está, em primeiro lugar, a falta de tempo; depois vem a dificuldade presumida na aprendizagem da música, o questionamento da própria aptidão e, mais para o fim da interminável lista, o fato de alguns, de modo circunstancial e descompromissado, já fazerem música (todos temos nossos momentos de karaokê, de rasqueado, de caixa de fósforo).

Dessas possíveis recusas, a mais forte - por incrível que pareça - é a derradeira, pois, no caso, se está, bem ou mal, na posição de músico - daquele que a produz - e assim incrementando as próprias ligações neuronais em escala maior do que quem apenas escuta. Entretanto, essa prática não difere muito daquela de quem acha que exercita convenientemente os músculos com apenas uns poucos movimentos além dos exigidos pela moderna vida sedentária, em contraste com a dos que se consagram regular e conscientemente a algum esporte, por exemplo. Embora ainda não seja de domínio amplo, o exercício de toda arte é, ao contrário do que ainda se crê, a adoção de certo grau de disciplina. Na música, atividade em princípio auditiva, além do discernimento de sons estimula-se a coordenação motora em todos os níveis e, no caso dos instrumentos de sopro, entre os quais a voz, é vital para todo o trato respiratório, sem falar no aparelho fonador. Como toda arte, em suma, promove um maior auto-conhecimento, instrumento precioso em tempos como o nosso em que o individualismo não passa de escudo empedernido para as invectivas de um meio em extremo insidioso.

Portanto, alegar falta de tempo para realizar algo tão importante para si é como dar tiro no próprio pé. O mesmo se diga da impressão de não se possuir talento suficiente para a música, de não se ter ouvido: esse é um triste sintoma da falta de auto-observação, pois todos nós falamos, entendemos o que o outro fala distinguindo, inclusive, os diferentes modos de o fazermos, os sotaques: a linguagem falada, antes de mais, é um tipo de música, de extrema complexidade, inclusive. Já somos músicos desde o berço e não nos damos conta. O instrumento, a voz, que não ocupa espaço extra nos nossos já acanhados lares e do qual possuímos substancial domínio. Para complementar, canto é, em geral, partilhado, digo, é praticado em grupo, circunstância excelente para o exercício consciencioso da condição gregária de nós humanos, progressivamente distorcida, amarfanhada ao longo desta interminável era individualista. Enfim, faça música; na falta de outro instrumento, cante; e torne-se mais sociável, mais consciente de si, auto-confiante, em suma, mais inteligente, proporcionando a quem o escutar benefícios equivalentes!

Neste ponto o leitor atento pode começar a rever de memória todas as pessoas que conhece e então encontrar aquele músico amigo, sujeito desligado de tudo exceto do seu instrumento, desempenho qustionável na escola, magrelo e de pouca ou desajeitada conversação, mas de presença imprescindível nas festas, onde rouba as atenções (em especial as femininas), mesmo estando quieto num canto, atendendo a pedidos sem fim das ouvintes incansáveis: um personagem assim leva à suspeita de que a ciência cochilou durante a pesquisa (ou seria o show?) e de que o autor aqui exagera no seu convite. Para finalizar, entretanto, peço a quem se dá a tais considerações que não se precipite e pondere um pouco mais, em especial se a música não é um de suas atividades preferidas: é possível que, na verdade, seja você quem não está alcançando o tal amigo...

Waldemar Reis

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