domingo, agosto 20, 2006

O que dizer de Bertold?

Personagens para quase-atores: o corpo é a parte visível do fantoche, em cujo interior a mão do texto atua. Por vezes o boneco se insurge contra o que o anima, por outras ri-se de sua vida fajuta, canta e suspende com sarcasmo o próprio roupão em cumplicidade com a platéia.

Cenas para quase-público: ninguém se convence mesmo de o boneco ser alguém. Tampouco se quer senão resvalar no real, fazer pouco dele, atitude única cabível à massa de impotentes.

Verdades para quase-crenças: dali, distando umas poucas portas do restante do mundo, quem acreditaria nessas falas que não dizem muito, quem ousaria dar fé de sua frágil mensagem se, passada a farsa, retornarão todos para suas casas, passando por calçadas, miseráveis, meliantes, rufiões, sacerdotes, ou no interior de ônibus e táxis observando automaticamente manchetes sangrentas, coexistindo em inevitável harmonia?

Rio, 20/08/2006

Waldemar Reis

quinta-feira, agosto 10, 2006

Quase tudo

O que dizer? Todo o passível de dizer-se é por demais óbvio e repeti-lo, se não inútil, é decerto aviltante. Aviltante para quem diz, aviltante para quem lê. Para quem lê, por razões evidentes: é colocar-lhe diante espelho de reflexo cristalino o bastante para ali enxergar a própria deformidade, circunstância insustentável. Para quem diz, porque diz, porque dizê-lo é prova suficiente de tolerar em boa medida a imagem grotesca impingida ao outro no espelho - do contrário lhe daria as costas - enquanto desfruta do verso do mesmo, no qual nada se reflete; e é prova direta de ser essa tolerância assentimento ao quanto produz semelhante aberração, o embate interno de dever e desejo. E é tamanho o aviltamento, tão universal, que o da face vítrea acredita olhar tão-só através de janela donde vê não a si, mas quem lhe apresenta e segura o objeto revelador, enquanto o outro sequer suspeita de, caso se atrevesse a olhar o lado refletor, ali dar com visão horrenda que jamais admitiria como sua. Dizer, enfim, por pouco que seja, é dar seqüência à comédia cuja renitência só faz irritar. Melhor seria calar, ou melhor, nada escrever, apresentar aqui o já clássico manifesto da arte moderna da protestação, um espaço em branco, ícone do vazio tanto quanto índice do todo: tudo dizer dizendo nada.

Pois não conhecemos o certo? Não nascemos - como o afirmava e demonstrava um sábio antigo - dotados do sentido para ele? Aliás, não nascemos com os sentidos para o localizarmos perenemente, para o perseguirmos até o obtermos? E é tanto verdade que dele falamos o tempo inteiro, em geral na forma de cobrança a outrem que, por seu lado, não sabe fazer diferente conosco. Em nome disso, correção, chega-se, já entrevistas desde o dedo em riste e desde mesmo uma ponderosa argumentação, quase sempre às vias de fato quando se possui os instrumentos necessários para chegar-se de fato às vias, sempre. Não faço aqui má antropologia, chula interpretação da ciência arqueológica, mas mera observação das ocorrências corriqueiras cujos relatos reiteram à agonia a condição universal de enredamento dos indivíduos: estamos montados, amontoados, uns sobre os outros numa espécie de pirâmide impossível, reciprocamente abaixo de quem está embaixo, acima de quem está por cima, de tal modo, num tão inefável equilíbrio que, é bem verdade, a ausência de muitos nem sequer se faz notar. Entretanto, não é preciso estar fora da teia ou mesmo em vias de ser dela extirpado para se experimentar em imaginação o sentido disso. E ainda assim brincamos do jogo perene do desterro alheio mesmo em vista do risco de em algum momento sermos nós os desterrados.

Não, não acreditamos em promessas que jamais nos fez a senda civilizatória: elas eram mesmo consenso, estiveram sempre embutidas na misteriosa força tornando-nos grei. São parte de sua lógica, são evidentes. Por isso tão grande o protesto, tão silencioso deve ser. Sendo preciso continuar e, continuando sem mesmo saber por que é preciso, sendo imperativo gozarmos de alguma coerência, justificamos: é a natureza. Embalde nos esforçamos por nos mantermos de parte dela, em nicho seguro donde, atingido o átimo da compreensão, no instante do completo entendimento, proclamar-nos-íamos redimidos desse prolongado pecar: mas dalgum injustificável modo ela se imiscui no trabalho incerto de nossos teares e, apropriando-se da urdiduta para sempre incompleta, no limiar de completar-se, ali aplica sua leis. A natureza tem leis irrevogáveis, misteriosamente promulgadas, executadas com rigor. São observadas em quaisquer partes do seu reino e desafiam os propósitos mais obstinados de sequer revisá-las. Em compensação, conferem impunibilidade a quem as observa e tranqüilidade às respectivas consciências : a despeito de todo ideal, somos - da primeira à última instância - cidadãos do mundo, garanta-se nele quem souber ou puder. Pecadores? Sim, mas sem culpas! E sem vontade também!

Como dizia, não faço pífia antropologia nem pior arqueologia: não começamos essa milenar história com anseios por justiça, pois sequer a conhecíamos, mas por mera fraqueza, por temermos a inconstância dos céus e a fome das feras, a fúria do mar e a sanha da terra. E então, enredados uns aos outros, em presumida segurança, sonharíamos a equanimidade, a óbvia e translúcida equanimidade emanando da própria teia, de que somos o fio, onde nos guardamos do inevitável para apenas o assistirmos - impotentes, fracos como só nós - exercer a sua lei. A natureza de que pensamos fugir sabe assomar do interior da horda humana, nela reinstaurando a noite, a selva, o vendaval e o maremoto, fazendo dum indivíduo o raio e de outro sua vítima, dum terceiro as fauces e do quarto a carniça, no conhecido espetáculo em que o consolo é não termos culpa.

Como sugeri, deveria ter dito nada, mas disse: pouco. E pouco, entre nós, é quase tudo.

Rio, 10 de agosto de 2006

Waldemar M. Reis

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