terça-feira, maio 20, 2008

Para pensar Deus – metáfora de humanidade

O biólogo Dawkins escolheu para opositor central personagem particularmente frágil: a versão de divindade da tradição judaica. Tal fragilidade se deve a todos os malefícios, de exclusiva responsabilidade dos humanos, praticados em nome dela. E o discurso desse autor parece evitar o reconhecimento dos incontáveis serviços prestados à ética pela invenção abraâmica.


Entre suas teses está a da plena possibilidade de correção de caráter na ausência total de deuses, mas a principal delas parece originar-se na combinação de resultados dos diversos ramos da ciência natural, a saber, a de não ser demonstrável a precedência da inteligência com relação às coisas (ao universo), mas sim como resultante da evolução delas. Sendo a teoria evolucionista critério nevrálgico de sua contestação, seria razoável imaginar-se da parte de Dawkins, ora, o reconhecimento do papel de Javé no processo evolutivo das sociedades humanas ao tempo em que foi proposto como legislador da conduta. Não teria sido o Deus de Israel, enfim, passo necessário no processo de achamento dos princípios éticos?


Sim, é provável que seja Deus passo necessário na evolução humana e quiçá passível de descarte em tempos atuais, quando cremos ser melhores do que os homens de passado remoto. Feuerbach, há mais de cento e cinquenta anos, já ensejava com rara consistência dizer o mesmo. Mas é igualmente provável, em vista dos percalços da filosofia (sempre às voltas com antinomias atalhando-a em virtualmente toda questão possível de formular-se), que o tema do divino seja de fato incontornável na atitude humana de pensar. A idéia de Deus parece não ser descartável com provas advindas dos métodos das ciências da natureza e o motivo pode ser o de o pensamento - instrumento crucial na iniciativa científica - mostrar-se irreversivelmente contaminado por essa mesma idéia.


Para sugerir a supressão dos cultos à divindade Feuerbach também tinha como respaldo o cientificismo, ainda na infância à época de sua proposta, mas talvez por força do repertório incipiente de certezas da ciência natural de então tenha escolhido como fundamento espécie de psicologia universal, que sacou da própria idéia de deus cunhada pelo homem nas mais diversificadas manifestações culturais que foi capaz de criar. Entre os principais traços da psique humana arrolados por ele destacam-se por certo dois: o sentimento de dependência do indivíduo perante o quanto considera como exterior a si próprio e a antropomorfização da idéia de deus, não raro intermediada por zoomorfizações que, nada obstante, já se haviam sedimentado a partir de antropomorfizações dos comportamentos animais, bem como daqueles dos vegetais: se deuses assumiram as formas doutros bichos é porque o comportamento destes já havia passado pelo crivo da assemelhação com o comportamento humano ou da mera relação de ambos, àquele tempo já consagrada.


Em vista de tal, não é excessivo afirmar que Feuerbach ofereceu ao seu século e ao seguinte paradigma recorrente na formulação de sistemas profundamente marcantes de interpretação de indivíduo e sociedades, como a psicanálise e o socialismo. Desnecessário observar, se não a persistência intocada desses sistemas, ao menos a de sua essência. Pois, ora, num mundo onde o homem presume decifrada, enfim, a alegoria milenar com que costumava referir-se a uma idéia recorrente de seu ato espontâneo de pensar e que designou, entre outros, com o nome de Deus, num mundo como esse só há lugar para a auto-gestão, para a mais pura responsabilidade, tornando assim desnecessários os instrumentos de dominação usados em todo o espectro de suas intensidades para o exercício das governanças. Afinal é do próprio homem a inteira responsabilidade por todos os traços com que foi pintada a divindade, evidência disto sendo as marcas de antropomorfismo em cada um deles.


A metáfora, possivelmente exclusiva do raciocínio humano, caso aproxime, no ensejo de significar, coisas quaisquer, aproxima-as em primeiro lugar do homem, embora seja mais preciso dizer que opera o reverso, levando as singularidades de nossa espécie a designar existentes tidos como distantes de si em tempo, espaço e idéia. E se em inúmeras ocasiões os três reinos da natureza também carregaram para nós o significado de deus, isto se deu por já estarem carregados da acepção de homem.


De todos os traços que reconhecemos em nós, decerto como o mais característico elegemos a capacidade de compreender. É possível seguir as transformações a que foi submetido em sua história, por exemplo, Deus de Abraão, de princípio criando uma sua imagem, pura assemelhação, supostamente física (seja como isto possa compreender-se) que, nada obstante, discrepava de si em caráter, por tal não merecendo habitar o Paraíso. Assim, sendo-lhe concedida a aparência do criador, da criatura exige-se em seguida imitar-lhe também o modo de agir, isto não significando inexistir no homem o quanto idealizou em Deus, do contrário: talvez não sendo predominante, mas com certeza existente e, por conseguinte, percebida, elegemos essa parte nossa como objeto em cujo sentido evolvermos. O termos plasmado semelhantes traços num ser de abstrusa superioridade, de paradoxais presença, potência e ciência, justifique-se porventura na forçosa atitude paternal a que nos vemos coagidos no cuidado com a progênie, outra face da condição animal e, mais especialmente, da nossa, humana, que igualmente apusemos a Deus. Sem a imposição todo-poderosa, habituada como estava a humanidade a curvar-se ante o domínio pela força, provável é que a empresa evolutiva da mente como hoje a desfrutamos sequer começasse caso não absorvesse também as atribuições da paternidade.


Do viés evolucionista, por conseguinte, e em se partindo do pressuposto consagrado na filosofia de Feuerbach, o de ser a divindade produto da imaginação humana premida pelos revezes de que se via depender o indivíduo na imposição endógene de sobrevivência, as transformações por que passa a idéia recorrente de origem comum de todas as coisas parece ilustrar, além do processo evolutivo da humanidade no reconhecimento de seus próprios atributos, o papel ativo do homem na seleção daqueles quanto creu condizerem com suas aspirações de desenvolvimento pessoal. A seleção natural parece contar também, ao menos no caso humano, não exclusivamente com fatores exógenos, ou melhor, tudo parece indicar o papel decisivo do sujeito humano na escolha dos instrumentos com que responderia à exigências do meio à volta. Eis porventura uma idéia, se não ausente do darwinismo, por certo esquecida por seus cultores: o traço designado como inteligência não é só auto-referente, mas também dominante e exclusivista na evolução do homem.


Uma análise deste tipo pode outrossim levar novas luzes à tese central de Dawkins, a de o entendimento – a inteligência – ser resultante e não causa do processo evolutivo. Ora, do modo como o compreende, o ser humano o toma como traço distintivo seu, isto significando que o ato de apô-lo a coisas quaisquer – e mais especificamente aos deuses – enquadra-se como mais uma de suas iniciativas de antropomorfização do meio. Inteligente ou não, a mecânica intrínseca do universo trouxe-o de fato a configurar-se como atualmente o observamos, em toda diversidade e complexidade. E que reconheça como diversa e complexa a sua determinação de pensar, pela qual não apenas absorve as coisas ao modo de informação, mas também urde estratégias para lidar de maneira útil com elas, em suma, que o homem associe a capacidade de sua inteligência produzir com a exuberante produção testemunhada à volta, tal não significa existir no meio capacidade igual, assim como tantos outros atributos da humanidade usados para fins análogos.


E mais do que sintoma de incontido antropocentrismo (termo aqui utilizado com todo o peso que possa conter da idéia de egocentrismo), o uso humano de metáforas sacadas de sua própria condição é antes recurso pelo qual investe na decifração do desconhecido – ou do pouco conhecido – com instrumentos a si familiares, usando-os como medida geral. Desse modo a atribuição da inteligência ao universo deixa de ser uma presunção formulada sem o cabido vagar e com o fito de tão-só tornar procedentes certas ilações em torno à divindade para mostrar-se como unidade métrica pela qual pode o homem expressar e quantificar a exuberância constatada no seu entorno.


Iniciativas semelhantes se apresentaram no correr do tempo desde pelo menos a Antigüidade, como o atestam os sistemas de filosofia atribuídos a Xenófanes e Protágoras, o deste último, através da máxima que faz do homem medida do todo, como que demonstrando o pressuposto central do anterior, de ser o "noûs" princípio universal. E se erro há nisto, é do mesmo gênero do cometido com freqüência compreensível no âmbito das ciências da natureza, a que se é determinado pela imposição indutiva, pela qual somos instados, nem sempre oportunamente, a projetar os resultados obtidos no processamento das informações do passado no presente contínuo descortinando-se à nossa frente. Quase nunca o jogador, papel que assumimos por destinação, pode elaborar o suficiente o próprio lance na urgência com que se acredita premido pelo entorno a responder-lhe os desafios. Pode-se pensar: precipitação milenar essa de atribuir ao mundo ou aos deuses inteligência, poder criador. Sim, deve-se admitir. Mas qual outra maneira apresentaria a bastante eficiência em expressar essa admirável conivência de nossa capacidade abstrata de conceber e a supostamente espontânea geração na natureza? Não há, pelo menos em princípio, erro intrínseco em utilizar-se uma medida em lugar de outra na interpretação da natureza, mas sim nos fins dados ao resultado de tal operação.


Doutro lado e por fim, desnecessário fosse talvez sinalizar para um especialista em processos biológicos a íntima conivência da estrutura autônoma organizando a matéria e sua resultante inteligência humana: talvez não convenha chamar as duas pelo mesmo nome, assim como não é adequado chamar de ser humano os genes em seu interior, senão como recurso poético. E não se despreze, na empresa de compreender os meandros da decifração da natureza pelo homem, a presença do que hoje denominamos poesia, em particular quando as idéias de ciência e sagrado ainda eram uma só. Se definida, de maneira rasa, como a forma de aproximar, em discurso, o quanto no universo é tido por estar demasiado apartado, ou seja, de pôr em relação o que no mundo não parece relacionar-se ou, em suma, de criar metáforas, a poesia tem tomado para si o papel do batedor atrás do qual pode seguir a caravana da ciência no seu ritmo próprio, embora nem sempre cauteloso, como quer fazer crer a quem simplesmente a vê passar.


Rio, 02 de maio de 2008


Waldemar M. Reis


Arremate


O texto acima apareceu quando eu ainda lia o livro de Dawkins sobre Deus. Veio na forma de reação ante uma seqüência de argumentações intoleráveis, mormente quando formuladas por profissional da ciência. Refere-se, por conseguinte, à parte até então conhecida por mim do trabalho desse cientista, muitas de cujas assunções iniciais são retomadas nos capítulos finais, ganhando apenas maior nitidez, não maior poder de persuasão. Tratou-se, de minha parte, de exercício dedutivo do que seria como um todo a obra a partir do conhecimento de uma de suas seções, talvez a mais substanciosa e significativa, embora não a mais feliz. Deixei-o como o concebi e reservo para este arremate informar que Dawkins, mais adiante no livro e sem o esperado brilhantismo, trata a crença em Deus do viés evolucionista, sim, e conclui ser ela não um dos traços adaptativos, mas manifestação inconveniente de alguns deles. Argumenta com o exemplo da navegação noturna de vespas e outros insetos, que tem por guia os corpos celestes, e o poder mortal exercido pelo fogo sobre esses animais por contarem com semelhante habilidade. Num processo análogo a autoridade divina seria manifestação equívoca da inclinação da natureza humana para o respeito pelos indivíduos mais velhos em vista de sua experiência, do conhecimento que detêm: desse viés Deus é demonstrado como o são as doenças congênitas, ou seja, como desvios, nem sempre inúteis de todo, na rota adaptativa da espécie.


Rio, 20 de maio de 2008


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