terça-feira, outubro 07, 2008

O mundo acabou?

E nós temendo, faz poucas semanas, uma hipotética hecatombe iniciada no novo acelerador de partículas. Antes fossem fundadas tais premonições. Ao menos seria catástrofe instantânea, diga-se, inteiramente imperceptível, como asseguram os físicos. Um espírito polêmico sentir-se-ia à vontade para perguntar: não teria ela ocorrido de fato e não viveríamos agora no tão sonhado e temido Além?


É impossível responder-lhe com acerto, mas sendo mesmo este o caso, pouco se observa de diferente da vida passada, permanecemos no Purgatório, com a particularidade de alguns de seus aspectos parecerem agora mais veementes: a atmosfera sofre de um certo exagero, com tufões gerando-se em questão de minutos e mantendo-se no ar por dias ou dissolvendo-se logo que transpõem o horizonte, gélidos meios-dias cheios de sol e a bolsa - meu Deus! - a louca bolsa desgrenhando-se em meio à plácida fartura das linhas de montagem e do deslocamento incólume das multidões na densa névoa de Pequim. Sim, continuamos no Purgatório, embora - quem sabe? - tenha-nos mesmo pulverizado a curiosidade da ciência ao produzir mero arremedo do fiat primevo. Continuamos no Purgatório por não existir, talvez, senão Purgatório, misto de abundância - dádiva celeste - e insaciabilidade - sua contrapartida infernal. Talvez seja o caso de o mundo continuar o mesmo depois de acabado (por lhe ser impossível inexistir, segundo afirmou alguma filosofia), apresentando somente uma alteração na intensidade das coisas.


Isto é o suficiente, entretanto, para tirar dos trilhos, além dos cinco básicos, o sexto e mais crucial dos sentidos: o da premonição. E como o provocou uma flutuação quântica, useira e vezeira em inverter a seta do tempo, seus efeitos se fizeram sentir antes mesmo das causas: pressentimos catástrofe, é verdade, mas não a do retorno do mundo ao pó; antevimos a pulverização do quanto pensamos dele, o vasto sistema de valores erguido ao longo dos dois ou três últimos milhares de anos. E então testemunhamos o desvario dessa senhora sobre quem pesou guardar a integridade do castelo de retângulos de papel, discos de metal e cartões em plástico cujo colapso tirou-lhe o tino.


Vendo-a assim, parece não haver dúvidas de que enlouqueceu de vez, mas diante da universal e continuada indiferença para com sua aflição é possível notar um certo exagero em como a demonstra, um tom de encenação (pois mesmo para a loucura são impostos limites). Peregrina nos dias úteis ao redor da Terra que, por girar sem descanso, obriga-a ao cumprimento de jornadas noite adentro, quer, em resumo, cooptar a comoção geral, suscitar o desespero mundial pelo desmoronamento de seu efêmero fortim; quer cumpridos os termos pelos quais nos apalavramos, ver ruir também cada parte do mundo que as peças de seu castelo representam.


Até há pouco não merecia senão a piedade circunstante e por seguidores não tinha mais do que os conhecidos arautos do apocalipse. Mas tamanha é a insistência do desvairado cortejo que se observam, com o passar dos dias, novos adeptos: abandonam seus afazeres para lhe fazerem coro no conhecido bordão com que ora pede, ora suplica, ora exige que tudo pare. Caso sucedam os seus planos, em breve estaremos todos na comitiva e, quem sabe, ajudamo-la a reerguer o edifício de papel, discos metálicos e matéria plástica, recebendo pela tarefa algum soldo, que de pouco ou nada nos servirá até voltarem à ativa engrenagens e arados. Enquanto isso poderemos restaurar outros aspectos saborosos da vida, como a circulação de promessas, essenciais na constituição da certeza de possuirmos algum futuro.


De momento a reconstrução do mundo oferece ainda pouca vantagem e portanto não há motivo para empreender nada. Além da saciação da fome e da sede, o que se promete a quem nos provê do alimento? Muito pouco, avalia-se. Por que? Por tratar-se, ora, de crise, e de crise do essencial, do pressentimento. Em tempos dela todo o mais perde a importância, inclusive o viver! O mecanismo é simples, lógico, fácil de entender: o futuro só existe para quem é capaz de pressenti-lo, mesmo que sem o esperado acerto, não havendo instrumento tão eficaz no estímulo de pressentimentos quanto as promessas que, mesmo insustentáveis e conseqüentemente descumpridas, mantêm sempre aberto o caminho para as cobranças. E cobros de prometidos são exercícios infalíveis da construção do futuro, mesmo sendo ele rancoroso e triste.


Estão em crise nossos futuros por não sermos capazes de concebê-los de outro modo; projetamo-los muito além do que somos capazes de divisar; há mais promessas do que possibilidades de honrá-las. Crise de futuros só se dá no rastro de crise outra, esta mais séria, mais grave e porventura perene, mas constantemente contornada pelo trabalho incansável de legisladores e com freqüência subestimada enquanto não acomete o pressentimento: trata-se de crise da honra mesmo, sustentada em sua latência pelo pendor humano para o ludíbrio, este gerado pela universal propensão para a indolência, que não pode senão ser controlada, jamais extinguida. Em tempo de incêndios como este pouco se obtém no rescaldo, a não ser a certeza resignada de que praticamente nada se queimou, pois nada havia para queimar senão vaidade insustentável, equilibrada sobre esperteza de tipo efêmero, incapaz de manter-nos convencidos da segurança que inspiram os seus cofres de papel. Tempo promissor, sim, embora as dádivas que anuncia não tenham o apelo das antigas.


Parece que a ciência conseguiu mesmo dar fim no mundo - e isto é tão certo quanto é impossível provar o contrário. Em sendo esta a realidade pós-apocalíptica, prova de a destruição do mundo ser espécie de decaimento em outro semelhante e talvez somente mais atroz, não faltará quem lamente a impossibilidade de ele tornar-se nada.


Rio, 07 de outubro de 2008


Waldemar M. Reis


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