terça-feira, junho 09, 2009

O Passageiro da Caixa-Preta

Nada mais admirável num avião do que a caixa-preta. Um diminuto objeto, para dizer quase tudo, talvez o único de todo o aparelho a escapar da mais variada gama de acidentes com integridade suficiente para revelar o enredo da tragédia. Em termos de resistência o seu conteúdo é dos mais perecíveis de todo o conjunto, incluídos os passageiros, o que por certo parece ser o bastante para justificar o engenho empregado em fazê-la indestrutível ou próximo disso.

Avesso a viajar como sou e sobrevivente de sensações desagradáveis das três últimas de minhas poucas viagens de avião, determinei que só voltaria a voar quando se pusessem à venda lugares nas caixas-pretas e, é claro, caso ali se diponibilizasse também o suficiente para a sobrevivência humana até o resgate. Se algo incompreensível há para mim, isto é a circunstância de ainda não se haver usado a tecnologia das caixas-pretas nas aeronaves por inteiro.

A própria existência de tais objetos, sem falar na cor que lhe aplicaram no nome, me sugere sentimentos tenebrosos. Ela é a prova de que desastres com esse meio de transporte são efetivamente inevitáveis, ou melhor, imprevisíveis. Caso contrário, qual seria sua necessidade? E por ser refratária, ao contrário do restante do avião, a caixa-preta é evidência do maior apreço dos fabricantes, engenheiros e empresários da aviação pela história (a das catástrofes, no caso) do que pela integridade dos seus semelhantes.

Passando ao largo desta última constatação, os demais pensamentos entristecem quando se percebe também que os altos preços das passagens aéreas não referem apenas o ressarcimento da pesquisa por segurança nos vôos, mas, a rigor, a financiam. Somos todos, então, potenciais voluntários de uma perigosa e lucrativa experiência sem prazo de conclusão. Entre suas metas, naturalmente, a integridade dos viajantes - ou assim anunciam. Antes desta, entretanto, está o ganho milionário dos empreendedores - os fabricantes - e seus intermediários - as companhias aéreas.

Nada de errado há em oferecer-se como cobaia para experimentos, mesmo os de risco, exceto quando não se está consciente das adversidades possíveis, quando não se é advertido delas de antemão. Ora, podem contestar-me: os passageiros de aviões, salvo exceções óbvias, estão plenamente informados dos riscos dessas viagens. Dir-se-ia que sim, que é verdade, não fosse a insistente afirmação, supostamente extraída de estatísticas, de ser a aviação o meio de transporte mais seguro do mundo, quiçá o mais seguro de todos os tempos. Um exemplo desse lugar-comum foi o comentário do Joelmir Beting, menos de um dia após o recente desaparecimento do jato da Air France: nos Estados Unidos morre-se mais em virtude de picadas de abelhas do que de quedas de avião. A ironia - ou o sarcasmo - explícita é inerente à fraseologia desse comentarista de economia e finanças.

O quadro se agrava com a observação de que as incautas cobaias pagam - e caro - para fazer papel pelo qual não poucas vezes se paga, prática que se estende a todos os lados de nossa desvalida existência: de medicamentos a telefones celulares, da agricultura transgênica à malha de satélites sobre nossas cabeças. Quase todos os modernos serviços e objetos à disposição são meros experimentos pelos quais pagamos como se se tratasse de produtos acabados. Quando se conhecem as condições de realização da ciência um pouco mais de perto, das quais a principal seja por certo a de ser obra em progresso, é possível não ceder tão facilmente à sedução de seus derivados, a saber, as técnicas, as tecnologias.

O problema está em, nada obstante a maior correção do cientista, exercer-se a ciência em associação com o capital. É o exercício das finanças que cobra do pesquisador a continuada perfídia de modo a manter o fluxo do lucro em volume suficiente para saciar quem investiu inicialmente em seu trabalho. Por conta dessa aliança somos induzidos, os chamados usuários dos produtos e serviços (e, na verdade, objetos vivos de experiências), a esperar de incontáveis destes mais do que o devido, quando não a perecer e, caso a história venha adotar-nos, figurar para o futuro como meras vítimas do destino e não como heróis ou mártires do conhecimento, da ciência, sem cuja iniciativa suicida as gerações subseqüentes - é provável que de cobaias também! - não estariam onde estarão.

Esta seria uma conclusão eufemística ou, para dizê-lo sem eufemismo excedente, hipócrita. Nela está implícita uma imagem adocicada do cientista e da ciência como faz algum tempo não é praticada: desinteressado ofício de sujeitos ocupados apenas do bem da humanidade, descobridores de noções inauditas e em geral vítimas da ignorância à sua volta. Talvez tenha sido assim há milênios, até Sócrates, mas não com Platão. Talvez com justeza tenha o primeiro criticado os sofistas por venderem ensinamentos e não pelos ensinamentos mesmo. Talvez Galileu, da Vinci e uns tantos mais tenham praticado esse tipo de ciência à margem das finanças. Mas já Pasteur é apontado por fraudar - é possível que por vaidade - certos resultados de seus experimentos e daí então tudo - ou quase isso - parece justificar-se em nome da pecúnia.

É ela, nos derradeiros tempos, a puxar o carro da curiosidade humana e a induzir, mesmo que inadequada ou duvidosa, uma aplicação para seja o que se descubra ou invente nos laboratórios sob seus auspícios. Desde que viável em termos de lucro, todo rebotalho ali produzido ganha no mundo alguma utilidade. Nem a onda natural, hoje transmutada em ecológica, escapa desse procedimento, embora - quem sabe? - um dia aufiramos dela algum benefício... Tendo como aliada a propaganda, capaz de com suas artes insinuar-se na vontade geral, conclui-se que o mercado é a única de todas a invenções humanas cuja serventia é passível de previsão mais segura. Quando sai dos trilhos, a razão é evidente, embora se finja dissimulá-la: malversação continuada. Das outras criações do espírito do homem pouco é possível dizer quando desandam. Até os relógios atómicos atrasam (muito pouco, mas atrasam) e mesmo as caixas-pretas, a despeito de sua aludida solidez, podem perder-se para sempre.

Rio, 9 de junho de 2009

Waldemar M. Reis


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