domingo, janeiro 09, 2011

Experimentando a causa final

a Clarão e Tuninho
Há quem prove - ou pense provar - que o tempo não existe: trata-se de apenas uma ideia sem correspondente exato na 'realidade'.Sim, acato – e, engraçado, fala-se assim como se as ideias fossem irreais. Mas não vamos aqui discutir tanto esse ponto. Peço somente que se conceda que, seja o tempo o que for para lá das ideias, é com o auxílio da ideia que se faz dele que o mundo ganha algum sentido para nós. De fato envelhecemos depois de termos sido jovens, fomos jovens depois de havermos nascido e bem depois de sequer termos sido seja o que fomos quando nossos pais não se conheciam. Tal conjunto de eventos, seja ou não 'coisa real', com ele lidamos com o auxílio da ideia incerta de tempo.

 É preciso, pois, que algo dure, para nos ser possível afirmar que isto existe. Nossos corpos, por exemplo, duram, embora mudem sem pausa, desde quando somos concebidos, até depois da morte, quando continuam seus processos de mudança até se dissiparem, assumindo então forma da qual não nos permitimos mais afirmar que foram ou são aqueles corpos. Mas nós mesmos, ou seja, esses conjuntos ainda pouco compreendidos de corpos e consciências, se é impreciso dizer que começamos a existir em úteros, há generalizada concordância em torno à afirmação de que nos finamos com a morte, apesar de os corpos com que nos compúnhamos permanecerem por mais algum tempo existindo. Cessar de durar é, por conseguinte, deixar de existir, seja lá como isto se entenda por intermédio do abstruso conceito de tempo.

Assim, as coisas têm de durar, ou não existem. No nosso caso é possível acrescentar que também queremos durar – exceção feita, naturalmente, a quem da vida se desencantou, embora até se desencantar tenha-se por certo alinhado conosco, os demais, que têm de e querem durar. Parece ser parte da natureza disto que chamamos de 'estar vivo' essa obstinação em durar. No meu entender, muito naturalmente. Pois, como já concordamos, se não dura, não existe, com a diferença de que o ser vivo existe por si e também por querer, por fazer por onde.

Ah, claro, a ciência e - principalmente - a filosofia já provaram - ou acreditaram provar - que os indivíduos são outra ficção. Sem dúvida, mas este é mais um ponto por que teremos de passar sem o levarmos muito além. Infelizmente somos também constrangidos por algo na nossa natureza a ver o mundo como amontoado de coisas distintas umas das outras, embora por vezes sejamos capazes também de vê-las todas como uma coisa só – ou melhor, somos obrigados a 'engolir' isso em virtude de tudo diante dos nossos narizes transformar-se em qualquer outra coisa com o passar do misterioso tempo, em virtude, enfim, da impressão de que a rigor há algo de fundamental na composição de tudo, algo em que tudo com o tempo se desfaz. Enfim, temos aqui de admitir, sem maiores considerações, que há para nós o mundo como um todo, bem como há as coisas no mundo, seja qual for o motivo de tal ocorrer conosco.

 Então: indivíduos quaisquer existem para nós em virtude de durarem e, no nosso caso, além de termos de durar, também o queremos. E existir, ao menos para os que não se enfadaram da existência, é em princípio algo que sem pestanejar qualificamos de bom. Sim, às vezes não se quer matar-se e, por outro lado, não parece preciso afirmar que existir é bom. Nesse caso trata-se de quem está a transpor a linha dividindo quem gosta e quem desgosta de existir. Nada obstante, enquanto do outro lado não estiver, estará dizendo nas entrelinhas que reconhece haver na vida ao menos o bastante para tolerá-la ou, ainda, que há o suficiente de bem no viver para impedi-lo de estourar os miolos imediatamente.

 Tanto se disse para mostrar que a vida, ao menos para quem não se deprimiu, é um bem. Mas ela não é de fato nada: é a vida, somente. Prova disso é que pode ser desprezada por um sem número de viventes. E embora seja tão-só viver, quem dela se agrada o confessa afixando-lhe um rótulo, o rótulo de bem. E, claro, de tudo faz para permanecer vivendo. Quanto aos outros, os descontentes, não se pense entretanto que discordam por inteiro dos demais: não! Só que para eles, indivíduos em aparência mais exigentes, a vida tem de ser efetivamente boa. Ora, não apenas para eles: para seja qual for o vivente, a vida só é bem se for boa. Aqui entra em cena outro ponto indiscutível, embora tema de incontáveis discussões: a boa vida é questão de tolerância. Uma dor, por exemplo, uma lancinante, no caso: há quem a suporte indefinidamente e quem sequer tolere imaginá-la sem pensar em desaparecer. (Curioso é ter de admitir que quem prefere a morte a um viver menos – ou nada – prazeroso deve ter alguma noção de como é inexistir e essa noção lhe indica tratar-se de coisa melhor do que o existir – pois imaginamos que naturalmente declinaria da escolha caso supusesse tratar-se de algo pior.)

 Enfim, concordamos em que em si o viver não é lá muita coisa, só sendo um bem quando é bom (ai!, geme o lógico – e desta vez o ouvimos), e em que, mesmo em se desprezando a vida, isto se faz na suposição de que a outra condição, a de não viver, é um bem maior - ou simplesmente um bem. Resultado: parece-nos que, até aqui, pouco importa a forma sob a qual ele nos apareça, estamos constantemente no encalço do bem ou, concedo, se não do BEM ele mesmo (espécie de Papai Noel da filosofia), ao menos de algum bem, digo, de parte desse bem de gorro e botas vermelhas. E não se trata só de ir atrás do dito cujo, mas de fazê-lo aparecer, ou mais, trata-se até de criá-lo, de trazê-lo à existência, sintoma este do já menciondo querer viver.

Um sujeito faz sinal na penumbra e indica não concordar. Parece meio sem jeito, não quer mostrar-se, mas como aqui garantimos a livre expressão, aos poucos vai ficar à vontade para expor o seu ponto: ah, sim, uma ressalva: já tentou de tudo para mudar, mas tem de admitir que continua apreciando - o quê? Ah, claro: o sofrimento alheio. Aprecia, então, o sofrimento alheio e - o que mais? Sim, está seguro de produzir o mal. Senhores, senhores, por favor, não riam; é evidente que encontraram a chave: naturalmente a encontraram, ou não teríamos concordado tanto até aqui. É que o amigo lá de trás não percebeu como formulou a questão: disse gostar de fazer o mal. E, claro, não se gosta senão do que é bom. O o cerne do problema, se os senhores bem observaram, está no gostar do que para um outro é mau. Este, entretanto, é outro assunto por que teremos de passar sem virá-lo do avesso: deve por certo haver um viés especial por cujo intermédio nos é possível entender este e semelhantes casos, mas temos de deixar para outra ocasião o encontrá-lo. Então, em miúdos se tem, enfim: seja qual for a causa ou o motor de seu gosto, gosta disso, digo, isso lhe é um bem.

Um outro indivíduo toma coragem e se levanta: não nos alvorocemos, amigos, seu caso pode ser diferente. Como? Certo: detesta o mal – como a maioria de nós afirma detestar – e, no entanto, por mais que busque para todos o melhor, acaba sempre restando de suas ações algo condenável por alguém. É, o inferno parece mesmo estar cheio das melhores intenções. Vejamos: em princípio somos levados a crer que de fato todos – sem exceção – gostamos de algo, ou seja, procuramos sempre por ou nos esforçamos para realizar algo bom, um bem; entretanto há quem goste de fazer com os demais o que estes – e mesmo ele próprio – detestam (sendo preciso reconhecer que há também quem goste disto para si próprio!) e há quem o faça sem querer, crendo produzir um bem comum. O amigo aqui não parece distinto da maioria de nós: há afinal quem aqui se atreva a lhe atirar a primeira pedra?

Pois bem, há entre nós quem creia enquadrar-se em outro grupo? Ah, sim, o amigo ali. Como? Carrasco? Senhores, senhores! Calma, senhores, do contrário rompemos nosso pacto de livre expressão. Ou prefeririam os senhores que mantivesse ele o silêncio e nos privasse de conhecer o que seria – talvez – uma classe distinta de buscadores e criadores do bem? Como? Claro, funcionário público. Não, não precisa dizer de onde o senhor vem; todos aqui estamos cientes de que os carrascos ainda andam longe da via de extinção. Enfim, o senhor mata, diz não gostar do que faz e que o faz por ser preciso. É verdade: o amigo de há pouco causou-nos consternação dupla, de um lado, por confessar gostar de ser mau e, de outro, por termos tacitamente aquiescido em que tal a nós parece dever-se somente a alguma patologia; o segundo não nos pareceu diferente de nós outros; mas este, meus caros, este nos apresenta uma condição como que simétrica – ou seria complementar? – à do anterior. Vejamos: um faz mal – ou algum mal – pensando fazer somente o bem e o outro está certo fazer um bem enquanto faz de fato um mal.

  Mas entendamos. É evidente que esses bens e males não são universais, não agradam ou desagradam generalizadamente. O que é bom para uns não o é para outros e assim por diante. E eis a lição que aprendemos daí: a lição de que bem e mal não existem – é o que diz a garotinha aqui na primeira fila. Não, não estou seguro de que seja essa a lição: pois, ora, cada um de nós de fato experimenta, sente, o que é bom ou mau para si; não há duvidar de que bem e mal existem. A lição é a de que bem e mal são, sim, relativos, não apenas um ao outro, o que é evidente, mas relativos a quem sente ou percebe os eventos no mundo como bons ou maus. Esta lição já podíamos tirá-la faz algum tempo, desde quando o rapaz ali lamentou-se de não conseguir realizar um bem sem arestas, sem que alguém o entendesse como mal, ou mesmo desde antes, quando falamos da tolerância da cada um de nós para com as dores de viver. Bem e mal, por conseguinte, existem, mas não no mundo lá fora: existem em cada um de nós; é, como diria o amigo filósofo aqui nos prestigiando, um juízo. (Falei certo?)

Há outra lição que se pode tirar ainda neste ponto de nosso debate e já adianto-a: o companheiro carrasco ali não é diferente, de modo geral, da maioria de nós. Aliás, mesmo o rapaz na penumbra, embora, digamos, adoentado, não é também tão diferente de nós na medida em que tem razoável noção do que pratica, ainda que não consiga conter-se. Mas a nossa semelhança com o amigo funcionário público é grande o bastante para causar espécie àqueles de nós menos sinceros. Ele não passa de instrumento usado para perpetrar uma ação comum e, de modo geral (salvo por certos filósofos ou ascetas diversos), grandemente aceita em meio a nós, resumível no ditado que hiperbolizo: olho por olhos, dente por dentes. Sim, visto nem sempre parecer-nos satisfatória a troca de um dos nossos por somente um dos de outrem. Em suma, em maioria (assim espero) professamos o desprezo, a intolerância e mesmo o horror do mal, mas quase sempre não hesitamos em o utlizar quando entendemos de remediar-nos de algo que nos acomete. Bem, Samuel Hahnemann, estou seguro, não se orgulharia de nos mostrarmos assim tão intuitivamente homeopáticos.
Mais curiosa ainda se torna a situação caso eu pergunte aos senhores o que se opõe ao mal, o que se opõe no sentido de dar cabo, pôr fim a ele, ao que sem exceção me responderiam: o bem. A senhora ali no meio murmura - o que? Entendi: "e daí o princípio do dar a outra face". Espere! Não estou convencido de que o dar a outra face seja a fórmula exata do bem para dar cabo de todo mal: talvez no caso do amigo na penumbra, e ainda assim a depender do seu tipo de – perdoe, por favor, a franqueza – sadismo, pois há sádicos que preferem as vítimas que se recusam a oferecer quaisquer faces e seja mais o que for. Se o caso é o do indivíduo comum, que nos faz um mal acreditando sanar um outro que pensa haver sofrido por nossa causa, não creio que o oferecimento da outra face o sacie e é possível que o confundamos então com o sádico típico, se ele continua a maltratar-nos, ou que até faça meia volta, tendo-se dado por satisfeito. A questão, aí, está em produzir algo realmente bom para ele ou em não ter produzido o que o afligiu.

É possível que nossa intuição homeopática seja, no entanto, providencial: em certa medida ela pode ser tida por a única maneira de fazermos ver a quem nos causou o mal o que ele nos fez, mas exclusivamente quando isto se produziu por – digamos – engano. Já o dar a outra face, no contexto em que ocorreu, ensina apenas que diante desse tipo de perpetrador do mal não há alternativa a continuar saciando-lhe a índole sádica; não se tratava nem mesmo de ignorância pura: havia ignorância, sim, pois se ele compreendesse de fato a extensão de seus atos, não os realizaria, mas da ignorância se aproveitava o sadismo para exercer-se. Pois bem, o revide, o olho por olho (ou por olhos), talvez não passe – em certa medida – de um modo de trazermos o outro à consciência, embora nós mesmos, ao praticá-lo, incorramos no mesmo tipo de ignorância. O dar a outra face pode também o ser, a depender da circunstância ou mesmo de a quem a oferecemos. Enfim, ambos têm lá sua probabilidade de sucesso na contenção do mal.

 Bem, adiantamo-nos um tanto, mas já era tempo de fazer entrar em nosso debate a ignorância. Então a pergunta: se conhecêssemos sempre o modo mais adequado de agir, adequado, diga-se, sem que dele resultasse para ninguém qualquer mal, qual de nós – com exceção, é claro, do nosso amigo sádico – se recusaria a levá-lo a efeito? Era o que se esperava: silêncio geral. Assim, se soubéssemos, se soubéssemos...! Mas ocorre de quase nunca sabermos, como há pouco o confessou o amigo incapaz de produzir bens universais. E mesmo aqueles que demonstram muito saber, visto serem mínimos ou quase imperceptíveis os males advindos de seus atos, sabem que não sabem o suficiente para evitarem a imiscuição de qualquer mal nos resultados de suas ações. E eis que voltamos a falar do Papai Noel da filosofia: muitos morremos de velhos na esperança de o depararmos na sala em uma noite qualquer – eis o que muitos de vocês acabaram de pensar. Daí, entretanto, a compactuar com o caos, convenhamos, é um exagero.

 Daí ao perdão indiscriminado, diz aqui a senhora da outra face, é outro pulo. É verdade. Mas há alternativa ao perdoar, digo melhor, há um coadjuvante para o perdão. Sim. Acertou na mosca o senhor aqui: conhecer! O contrário de ignorar: bem contra mal, conhecimento contra ignorância. Dir-se-ia mais, entretanto: educar. Pois se nascemos, como afirmaram alguns filósofos, sabendo o que é o bem, parece evidente não sabermos com a desejada precisão como obtê-lo no e do mundo. E como alguns é pressuposto saberem um tanto, em vista mesmo do seu tempo de vida, nada mais adequado que passem adiante esse saber. E que ensinem, acima de tudo, a conhecer, já que, como vimos, são sempre novas as circunstâncias.

  Por fim, imagino que tenhamos compreendido um pouco a 'mecânica' – podemos chamá-la assim – de bem e mal para, em primeiro lugar, termos ciência de que não somos capazes de praticar o mal e tampouco o bem absolutos; para termos ciência antes, até, de que, seja o que pratiquemos, temos em vista sempre um certo bem, necessariamente (e tendo por alvo a nós próprios, não esqueçamos disto, ou seja, tendo por alvo tudo quanto de nós ou para nós consideramos bom, tudo de que gostamos: o altruísmo não passa de uma instância do egoísmo); para sabermos que só concedemos ao mal por ignorar como evitá-lo e que só o evitamos com a prática de bens, a qual só se logra com o auxílio do conhecimento; e, por último, para conscientizar-nos de que gente como Leibniz e Aristóteles não falaram por falar ou inconsequentemente do melhor dos mundos e da causa final.

Um comentário:

AC disse...

Escrevi um comentário sobre os 3 primeiros parágrafos que ficou longo demais! Então publiquei no Café: http://www.cafeimpresso.com.br/?p=4097


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