quinta-feira, abril 07, 2011

Narciso

a Maria Clara

Verdadeira vítima. Que mal há em desejar ninguém? Mas aos olhos de quem o quis sem esperança de sucesso era o completo arrogante: não mudamos muito desde o seu tempo. Foi amado, sim, é certo que Eco o amou, um amor incomunicável ou somente comunicável quando o outro lhe dissesse antes amá-la. Foi a sorte a que Juno a condenou quando se deu conta de ser enganada por Jove, o marido, que fornicava outras ninfas enquanto Eco a levava literalmente na conversa. Dali em diante a alcoviteira só repetiria o que ouvisse e, o pior, apenas os derradeiros sons. Como era de se esperar de figurinha assim, foi oportunista, aproveitando-se do que dizia Narciso ao notar que o seguiam ás escondidas; em resumo: precipitou-se, lançou-se nos braços do rapaz e - era de esperar também - foi posta a correr. Mas foi coerente com o que sentia pelo moço e findou seus dias em prantos, transformada em pedra que para sempre reproduz o final do que se diz ao redor.

O responsável pelo destino de Narciso foi na verdade outro moço. Dizem que se chamou Adaminio e terminou por se matar implorando a Nemesis pelo que de melhor ela fazia: vingança. Há quem diga que somente pediu à deusa para dar a Narciso amor não correspondido. Pedido, concedido. O cenário foi escolhido com critério, fonte límpida, intocada, protegida dos reflexos excessivos do sol, lugar perfeito para que se cumprisse o vaticínio estranho, pois formulado em condicional, que lhe fizeram ainda nos braços da ninfa sua mãe: viveria muito se não se conhecesse. Um detalhe crucial: é inverossímil que Narciso, caçador solitário por escolha, tenha jamais se debruçado sobre poça d'água, que seja, para saciar a sede; talvez não estivera diante de uma tão cristalina quanto a que lhe ofereceria a deusa, mas é certo que de alguma mais opaca, o suficiente, entretanto, para ter uma idéia do quanto de si sabia impressionar quem o desejava. Segundo o poeta é fato que até se envaidecia um tanto de ser cobiçado por ninfas, mas tal poderia não passar de mera constatação das cortes que lhe faziam e que por vezes o aborreciam, é natural, fomentando o seu perfil público de imodesto. Enfim, conhece Narciso a si, conhece a própria beleza, não o suficiente para desencadear a condição de sua sorte adversa, com certeza, mas se conhece. Vê-se por aí a quantas já ia o tino grego desde bem antes de Platão quando o assunto era conhecimento: conhecer é conhecer bem, por inteiro (ou o mais próximo possível disso), ou não passa de simples opinião. Daí a fonte límpida, sem os exageros do sol e intocada.

O resto é história bem conhecida, embora muitos pensem que Narciso morreu sem saber que se apaixonara pelo próprio reflexo. Quanto a isto o poeta não deixa dúvidas e é pródigo nos detalhes da tragédia a partir desse ponto. De tanto ficou uma das mais assombrosas e ambiciosas meditações acerca do amor-próprio quando levado a sua expressão hiperbólica. Não há, em primeiro lugar, culpa alguma em Narciso. Como se disse no início, trata-se de vítima - como a maioria dos personagens trágicos na Grécia antiga - do destino. Um destino que o fez belo e lhe prometeu vida longa caso permanecesse ignorante de si (como, aliás, queriam que ficasse ao lhe chamarem Narciso, sonâmbulo ou, do modo como usamos o possível radical do nome hoje em dia, narcotizado, entorpecido) e lhe pôs no encalço verdadeira horda de fanáticos por sua aparência, capazes, pelo visto, de qualquer artimanha para se verem deitados com o efebo ou para se desagravarem do não conseguido. Depois, a esperteza cruel de Nemesis, que entende ser improvável encontrar no mundo alguém a impressionar o auto-suficiente Narciso senão ele mesmo e lhe oferece então a visão perfeita, o perfeito conhecimento de si, que lhe reverteria o destino possível de longevo ignorante.

A fábula também faz cotejar som e luz quando refletidos: o amor de Eco só se comunica e se consuma como reflexo do amor alheio, enquanto o de Narciso é impossibilitado por ser reflexo aquilo que ama e, por conseguinte, não o refletir - enfim, o não corresponder; uma não pode refletir o amor do outro, pois inexistente, e este ama o reflexo que não pode amá-lo de volta. Infelicidades simétricas. Ovidio não é claro ou mesmo omite o porque de haver Juno escolhido esse castigo para a ninfa, mas é de supor que a condenou a perpetuar o quanto fazia para distraí-la das fugidas de Júpiter: alongar ao máximo a conversa com a deusa, na certa aproveitando-se do final de um assunto para incitá-la a emendar noutro correlato. Assim, de qualquer modo, Eco é vítima dos próprios atos, mas Narciso o é dos atos e cobiças alheios, sem mencionar os de uma divindade que usa espada e porta uma ampulheta, mas possui asas, contrariando as expectativas que criamos na convivência com uma sua parenta menos ágil e de olhos vendados.

O tema do exagerado amor-próprio é central na alegoria, mas ao seu redor gravitam outros de peso equivalente, como o do conhecimento, por exemplo, sem falar no do desejo, que confina com outros como o da inveja e assim numa cadeia praticamente interminável. É suficiente contemplar o mito para ir dando com eles um a um, às vezes amontoados, esquema classificável como interdisciplinar por um especialista em matéria de conhecimento em nossos tempos. A história de Narciso é mesmo exemplar no quanto concerne ao escopo da mitopoiese (ou a composição do mito, segundo o jargão técnico). Às vezes breves, esses relatos se entrelaçam uns nos outros e é pressuposto a urdidura resultante representar o funcionamento das coisas, um modelo do mundo, de modo análogo ao que supõem atualmente as ciências fazer, talvez distinguindo-se apenas quanto à linguagem usada, mas não quanto ao interesse e mesmo à precisão. Os temas aparecem evidentemente revolvidos, discutidos, ponderados ou expostos para serem assim tratados por quem do mito se inteirar, de modo correlato ao que em mais de dois mil anos a filosofia vem tratando os seus.

A reserva com que o auto-conhecimento é apresentado, no caso, surpreende, em particular quando confrontada com o 'conhece-te a ti mesmo' do anedotário socrático. Espécie de despertar propiciado, em princípio, pelo artifício da deusa, talvez não por qualquer outro de seus sortilégios, e configurado com os elementos do sentido visual, pode ser estendido sem constrangimento a toda e qualquer parte do sujeito passível de percepção e conhecimento pelos sentidos restantes - inclusive o sentido somatório dos demais, o pensamento. Quantos narcisos há imunes a espelhos, mas não ao som da própria voz, à textura da própria pele e mesmo ao quanto tramam ao pensar? Veja-se, no mito mesmo, o sentido da presença de Eco. Seu amor só é dado a conhecer como reflexo do amor alheio externado - só pode manifestar o seu a quem primeiro manifesta amor por ela; não pode cortejar dizendo amar ou, mais ainda, pode ser obrigada a dizer amar a quem não ama de fato, apenas por assim determinar a maldição de Juno. Trata-se de uma variação do próprio Narciso: o amor que pode dizer nutrir pelo outro é em verdade um amor a si mesma, pois amor do outro por ela, Eco: só pode dar a conhecer o seu depois de conhecer o amor alheio: ama, portanto, esse amá-la*. E não se perca de vista o medium a que Eco foi designada, o som, a despeito de a imagem permanecer como elemento fundamental na montagem do mito.

A assimilação de conhecimento e amor é outro ponto notável: seria de fato o conhecer um amar o conhecido? Comparemo-la ao 'amor ao saber', tradução do termo 'filosofia', de cunhagem atribuída a Sócrates. É evidente, o amor de Narciso por seu reflexo perfeito é hiperbólico e mesmo doentio, segundo algumas compilações de patologias psiquiátricas. Haveria então limite para o conhecer-se, para o amar-se? Sim, limite, visto o amor a si ser inextirpável do indivíduo, findando quando este finda. E os gregos já estavam perfeitamente inteirados disto: o estoicismo observava que o primeiro conhecimento, o conhecimento inato, era o do bem. Nasce-se sabendo-se o que é bom e mau, o que apetece e desgosta. Vê-se que os fazedores de mitos já sabiam de antemão o que filósofos demonstrariam depois de trilharem os caminhos instáveis da metafísica: conhecer só é possível por intermédio do amar, esse primeiro julgar, de que viemos dotados ao mundo: é, enfim, o somatório do quanto experimentamos na condição de viventes, espécie de códice pessoal, interno, onde se inscrevem todos os sabores e dissabores atribuídos ao percebido. Essa discussão ressoará forte em Teeteto e terminará, como praticamente tudo na obra platônica, indecidida.

Mas não parece duvidoso afirmar que, se o perceber e o julgá-lo não são ainda conhecimento propriamente dito, são o seu estopim. E perceber é perceber-se, é perceber-se percebendo, ainda que não se esteja sempre inteirado disto em ato. O mesmo pode ser dito do conhecer. Ora, Narciso conhecia-se antes de condená-lo Nemesis; segundo o poeta, estava satisfeito consigo mesmo, como se observou: já devia inclusive conhecer ao menos sua imagem embaçada. Mas não adoeceu desse amar. Só ao contemplar-se no cenário escolhido pela deusa definha até a morte. Por que? É possível que por ter-se posto, com clareza e distinção, diante de si, ter-se percebido como outro, ter-se despossuído. O tema retornaria - ainda que sem referir diretamente Narciso, se bem me recordo - em Doença Mortal: um dos graus do pecar, mostra Kierkegaard, está nesse modo narcísico de lidar com a alteridade eventual ou não do próprio eu. Quis Narciso ter quem de fato ja possuía. Viu-se como o viam os demais, que não podiam tê-lo. E, é claro, como esses, foi incapaz de resistir aos próprios encantos. O sortilégio de Nemesis foi pôr Narciso fora de si, literalmente.

Narciso feliz seria aquele que se conhece, sim, mas não como o conhece o outro. Eis, por fim, o perigo do conhecer-se anunciado pelo adivinho: tornar-se permanentemente objeto do próprio conhecimento, esquecer-se de que se é, antes de mais, sujeito. Tal jogo de espelhos pode pepetuar-se ao ponto de susucitar a questão: sofria também o reflexo n'água por ver-se apartado de Narciso? De qualquer modo, era assim que Narciso o via: em sofrimento. Mas a profecia de Tirésias não dá pistas de tanto. Seu enunciado padece ainda de pelo menos dois dos cacoetes clássicos dos vaticínios: é excessivamente lacônico e evasivo, algo contornado pela formulação condicional, esta típica dos enunciados da filosofia e da ciência desde sempre. Não diz 'conhecer-se-á e, portanto, viverá pouco', mas 'caso se conheça, não chegará à velhice': o conhecimento de si como condição da morte precoce. Nisto Tirésias mostra estar bem à frente do seu tempo, tempo no qual a adivinhação ainda não lançara mão do artifício do condicional para evadir-se das charadas e da vertigem de errar: para tanto inclui em sua sentença a escolha de Narciso ou o acaso, o fado. Mas fica por aí, omite os detalhes da natureza do conhecimento que levaria Narciso a morrer tão cedo. Curioso é notar que o conhecer tem como função - talvez - essencial a de ser o meio pelo qual o indivíduo projeta durar (ou permanecer no mundo por intermédio da manipulação deste), por conseguinte sendo - ou contendo - uma forma de previsão, uma espécie de profecia.

Codetta

Há quem pergunte, por exemplo, como o narcisismo é visto pela filosofia. Aqui se procurou responder a isto de modo algo enviesado: como o mito de Narciso se apresenta ao pensamento ou, ainda, como filosofia e ciência - assim como as entendemos hoje em dia - já estavam contidas, cifradas, nesse gênero de relatos, observação esta que, é evidente, em nada as diminui.

*O trecho a seguir é um flerte clássico com o narcisismo de Eco.
"As mulheres, especialmente se forem belas ao crescerem, desenvolvem certo autocontentamento que as compensa pelas restrições sociais que lhes são impostas em sua escolha objetal. Rigorosamente falando, tais mulheres amam apenas a si mesmas, com uma intensidade comparável à do amor do homem por elas. Sua necessidade não se acha na direção de amar, mas de serem amadas; e o homem que preencher essa condição cairá em suas boas graças. A importância desse tipo de mulher para a vida erótica da humanidade deve ser levada em grande consideração. Tais mulheres exercem o maior fascínio sobre os homens, não apenas por motivos estéticos, visto que em geral são as mais belas, mas também por uma combinação de interessantes fatores psicológicos, pois parece muito evidente que o narcisismo de outra pessoa exerce grande atração sobre aqueles que renunciaram a uma parte de seu próprio narcisismo e estão em busca do amor objetal. O encanto de uma criança reside em grande medida em seu narcisismo, seu autocontentamento e inacessibilidade, assim como também o encanto de certos animais que parecem não se preocupar conosco, tais como os gatos e os grandes animais carniceiros. Realmente, mesmo os grandes criminosos e os humoristas, conforme representados na literatura, atraem nosso interesse pela coerência narcisista com que conseguem afastar do ego qualquer coisa que o diminua. É como se os invejássemos por manterem um bem-aventurado estado de espírito - uma posição libidinal inatacável que nós próprios já abandonamos. O grande encanto das mulheres narcisistas tem, contudo, o seu reverso; grande parte da insatisfação daquele que ama, de suas dúvidas quanto ao amor da mulher, de suas queixas quanto à natureza enigmática da mulher, tem suas raízes nessa incongruência entre os tipos de escolha de objeto."

S. Freud; Sobre o Narcismo: Uma Introdução

Fim dos tempos

Para quem ainda não entendeu: o mesmo que eternidade, o que dura para sempre, mesmo porque "o tempo não pára" (algo como o 'fim da história', com a particularidade de que haverá soberano, o de sempre e sem sucessor). Acaba, isto sim, a medida ou a noção da passagem do tempo, isto é, a alternância. Pois, segundo a promessa, só haverá dois lados, incomunicáveis: um de êxtase, outro de desespero. Enfim o que é bom vai durar.

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