quarta-feira, fevereiro 29, 2012

Sobre amizade

Aquilo em que se empenha um homem com diligência, disso ele naturalmente gosta. Empenham-se os homens dililgentemente no que é mau? De modo algum. Bem, empenham-se então no que de todo não lhes concerne? Igualmente não. Tem-se, assim, que se empenham com diligência apenas no que é bom e se estão diligentemente aplicados nisso é por o amarem. Quem quer que entenda o que é bom, então, pode também saber como amar; mas quem não distingue bom de ruim e o que nem bom nem mau é de ambos pode ter o poder do amor? Amar, então, está somente em poder do sábio.

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Pois universalmente, não estando enganado, todo animal não se apega a nada tanto quanto ao seu próprio interesse. O que então lhe parece impedimento a tal interesse, seja isto um irmão, um pai, um filho ou amante, ele odeia, despreza, maldiz: pois é de sua natureza nada amar tanto quanto o seu próprio interesse; isto é pai, irmão, parente, pátria e Deus. Quando os deuses parecem ser impedimento disso, são execrados e têm demolidas suas estátuas e queimados seus templos, como fez Alexandre, mandando incendiar os templos de Esculápio quando seu amigo querido morreu.

Por esse motivo, se um homem pôs no mesmo lugar seu interesse, santidade, bondade e pátria, pais e amigos, tudo isto está assegurado: mas se põe em um ponto seu interesse e noutro seus amigos e pátria e parentes e a própria justiça, todos estes desaparecem sob o peso do interesse. Pois onde o "Eu" e o "Meu" estão, para ali o animal tende: se na carne, ali está o governo: se na vontade, é aí que ele está: e se é no que lhe é externo, é lá, então. Assim, se estou onde está o meu querer, só assim serei o amigo que devo ser, e filho, e pai: pois isto será meu interesse, o manter-me fiel, modesto, paciente, abstinente, ativamente cooperador, atento às minhas relações. Mas se me ponho num lugar e noutro a honestidade, então a doutrina de Epicuro se fortalece, essa que afirma inexistir honestidade ou ser ela o que diz a opinião.

Epicteto, Discursos, Livro 2, Capítulo 22
Versão da tradução de George Long

(On friendship

What a man applies himself to earnestly, that he naturally loves. Do men then apply themselves earnestly to the things which are bad? By no means. Well, do they apply themselves to things which in no way concern themselves? Not to these either. It remains, then, that they employ themselves earnestly only about things which are good; and if they are earnestly employed about things , they love such things also. Whoever, then, understands what is good, can also know how to love; but he who cannot distinguish good from bad, and things which are neither good nor bad from both, can he possess the power of loving? To love, then, is only in the power of the wise.

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For universally, be not deceived, every animal is attached to nothing so much as to its own interest. Whatever then appears to it an impediment to this interest, whether this be a brother, or a father, or a child, or beloved, or lover, it hates, spurns, curses: for its nature is to love nothing so much as its own interest; this is father, and brother and kinsman, and country, and God. When, then, the gods appear to us to be an impediment to this, we abuse them and throw down their statues and burn their temples, as Alexander ordered the temples of AEsculapius to be burned when his dear friend died.

For this reason if a man put in the same place his interest, sanctity, goodness, and country, and parents, and friends, all these are secured: but if he puts in one place his interest, in another his friends, and his country and his kinsmen and justice itself, all these give way being borne down by the weight of interest. For where the " I" and the " Mine" are placed, to that place of necessity the animal inclines: if in the flesh, there is the ruling power: if in the will, it is there: and if it is in externals , it is there. If then I am there where my will is, then only shall I be a friend such as I ought to be, and son, and father; for this will he my interest, to maintain the character of fidelity, of modesty, of patience, of abstinence, of active cooperation, of observing my relations. But if I put myself in one place, and honesty in another, then the doctrine of Epicurus becomes strong, which asserts either that there is no honesty or it is that which opinion holds to be honest.

Epictetus: The Discourses: Book 2: Chapter 22
George Long, translator)

Ciência e desespero

O cosmos é imperfeito. Nada é perfeito. Postular ou supor o contrário é mero sintoma de lassidão que, por sua vez, é sinal de ser o indivíduo consciente de sua impotência em face das coisas. Essa consciência é especial, pois sabe ter ao menos algum poder sobre elas, poder equivalente, em verdade, ao de animal qualquer: o de produzir não mais do que alguma modificação no entorno, a suficiente, em geral, para lhe manter a condição, de vivente. Pois tudo refere, em última instância, o prolongamento possível do fio vital. A vida só quer viver - teria dito um poeta. Eis o único paradigma possível de perfeição.

Justo aí começa o pasmo, o assombro do deparar-se com a idéia da totalidade: começa no contraste entre a irredutível complexidade constatada no universo e o destino inexorável do que o constitui, a extinção. Tudo se extingue (quiçá mesmo a totalidade), nada obstante ter a vida por princípio - ou por essência - prorrogar-se pela eternidade. Daí, por derivação de sentido explicável talvez na constatação da impotência para obter o que de fato importa (a eternização da vida), o assombro é entendido como deslumbramento, processo semelhante àquele por que passam uns torturados, ao fim amando quem os torturou.

Outra explicação para esse desvio de significado: vaidade, prazer de contemplar visão exclusiva das coisas, à qual se chega por obra própria da compreensão. A maravilha não estaria, assim, na estrutura labiríntica, abstrusa, do que se observa, mas na capacidade de observá-la desse modo e de se o ter feito por esforço próprio, seja como indivíduo, seja como espécie. O universo como espelho para a inteligência, como o foi para Narciso a fonte.

Há algo além. O conhecimento traz implícita a perspectiva de o indivíduo melhor manipular o mundo e com isso a esperança de chegar ao fim que lhe interessa. Isso é o maravilhamento. Por outro lado lhe ensina o que de fato é diante de tudo mais: peça, tão-só, de mecanismo indivisável na totalildade e, em consequência dessa grandeza, imune a todo controle, salvo o de umas poucas partes, essas ínfimas como ele mesmo. E aí está o pavor.

Em última análise o conhecimento só nos provê do modo como as coisas findam. Por isso define. A única ciência - a única possível - é a escatologia. A idéia de que por seu intermédio se chegará a reverter a finitude não passa de lenitivo. É a maneira de a consciência suportar, na condição irreversível de conhecedora, a decepção que lhe oferece o conhecimento: mero auto-engano.

Hipótese do espírito

(breve dissertação à maneira de Antonio Caetano)

Espírito talvez seja o que ocupa os interstícios abismais da matéria sem, entretanto, preenchê-los. É possível que não passe mesmo desses vazios, os quais se espraiariam, caso os transpuséssemos para dimensões visíveis, por miriâmetros de miriâmetros em torno de âmago não maior do que mero caroço de ervilha. Daí veria o espírito o quanto de hábito é passível de ser tangido - pelos sentidos (em suma, o quanto lhe é perceptível) -, mas a cujo respeito, em vista do distanciamento, só lhe restaria supor, imaginar.

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