sábado, março 17, 2012

Que a lógica é necessária

QUANDO um dos presentes lhe disse, Persuada-me de que a lógica é necessária, ele respondeu, Você quer que eu o prove? A resposta foi --Sim. --Então tenho de usar de demonstração. --Concedido. --Como então saberá você se eu não o engano com meu argumento? O homem permaneceu silente. Você vê, disse Epicteto, que está admitindo a necessidade da lógica, já que sem ela não se pode saber se ela própria é ou não é necessária?

Epicteto, Discursos, Livro 2, Capítulo 25
Versão da tradução de George Long


(That logic is necessary

WHEN one of those who were present said, Persuade me that logic is necessary, he replied, Do you wish me to prove this to you? The answer was—Yes.—Then I must use a demonstrative form of speech.—This was granted.— How then will you know if I am cheating you by my argument? The man was silent. Do you see, said Epictetus, that you yourself are admitting that logic is necessary, if without it you cannot know so much as this, whether logic is necessary or not necessary?

Epictetus: The Discourses: Book 2: Chapter 25
George Long, translator)

Para cristão ver

O dar a outra face, descontado o quanto de sublime daí se tirou, deveu-se por certo à circunstância e nela tenha servido talvez para pôr a nu maldade contumaz - por certo, também, inutlimente, ou não acabaria em calvário. Desse viés, foi gesto provocador, que absolve inculpando, de violência comprarável, aliás, à fúria no templo.
Perdão incondicional? É evidente que sim, mas tendo as coisas em seus devidos lugares.
Daí ser impossível que protagonista de atos tais ainda viva e "à direita do pai" aguarde incólume o "fim dos tempos" para pôr ordem na casa. Sua humanidade, em vista disto, teria sido completa, desintegrando-se como tudo mais, e a história restante, obra de loucos - eles mesmos santos, é bem provável, santos loucos, ingênuos de Deus cuja herança se confiou, entre outros, a patifes.
Tudo em nome da livre vontade: em nome de que, ora, tudo sempre se deu (como se alguma vez pudesse a vontade dar conta de concertar o mundo): para isto, então, o teriam consubstanciado: para no fim deixar ao acaso o que ao acaso sempre estivera - prova essa da inutilidade de tudo antes que da confiança no que haveria de ser (ou fé); para dar corpo e voz ao enredo que lhe urdiram os profetas, certos de assim pavimentarem o acesso dos homens à aliança, aliás, antiga, consabida e que de vontade ignoraram; e para entregar-se às atrocidades com que didaticamente ilustraram as cenas finais de sua existência, a serem emuladas e esmeradas nos mais de dois mil anos depois de as encenar, e que ensinam o que qualquer dor ensina: que depois de estancada, é o paraíso.
Acaso o único feito de sua biografia tenha sido o de servir de símbolo em torno do qual se buscaria o unânime repúdio a tudo quanto é bestial entre os homens e, se a História não mente, não terá sido o primeiro nem o último, tampouco o maior, embora exemplo dos mais visíveis do que à brutalidade  é possível. O que vem mesmo a ser o cristianismo?

CRISTO EN LA CRUZ

Cristo en la cruz. Los pies tocan la tierra.
Los tres maderos son de igual altura.
Cristo no está en el medio. Es el tercero.
La negra barba pende sobre el pecho.
El rostro no es el rostro de las láminas.
Es áspero y judío.
No lo veo
y seguiré buscándolo hasta el día
último de mis pasos por la tierra.

El hombre quebrantado sufre y calla.
La corona de espinas lo lastima.
No lo alcanza la befa de la plebe
que ha visto su agonía tantas veces.
La suya o la de otro. Da lo mismo.
Cristo en la cruz. Desordenadamente
piensa en el reino que tal vez lo espera,
piensa en una mujer que no fue suya.
No le está dado ver la teología,
la indescifrable Trinidad, los gnósticos,
las catedrales, la navaja de Occam,
la púrpura, la mitra, la liturgia,
la conversión de Guthrum por la espada,
la Inquisición, la sangre de los mártires,
las atroces Cruzadas, Juana de Arco,
el Vaticano que bendice ejércitos.

Sabe que no es un dios y que es un hombre
que muere con el día.
No le importa.
Le importa el duro hierro de los clavos.
No es un romano. No es un griego. Gime.
Nos ha dejado espléndidas metáforas
y
una doctrina del perdón que puede
anular el pasado.
(Esa sentencia
la escribió un irlandés en una cárcel.)
El alma busca el fin, apresurada.
Ha oscurecido un poco. Ya se ha muerto.
Anda una mosca por la carne quieta.
¿De qué puede servirme que aquel hombre
haya sufrido, si yo sufro ahora?
(Jorge Luis Borges)

quarta-feira, março 07, 2012

Se a escutassem Castillo e Sábato

A voz. Há embargo nela, perceptível somente quando a atenção não se exila no que diz - os sonhos, o oriente, a fábula celta, um oráculo, o mesmo crepúsculo, uma peleja - e que recorta com precisão da massa informe que é o mundo, justo com os instrumentos que usam os demais para extrair das próprias peles o mero sangue, as inúteis entranhas. O embargo é o cuidado e o vagar com que escolhe as palavras (que o prolongam indefinidamente), mostrando os motivos que - acaso permitisse - teria para chorar. Nunca o faz; jamais lhe encontro lágrima a induzir outras em quem a escuta, embora aqui e ali alguém deixe alguma escapar e mesmo não contenha um soluço - sinais de haver atinado para o embargo sem o observar. Pois  é vã a penitência, sugere o embargo, exceto a que imputa o existir (e que não nos merece ênfase), cabendo ao dizer nada além do apontar seja o que for, inclusive ele mesmo, conjugando-o, reencenando sem pausa o assombro, que se indefine por ser inato e prenuncia o incerto prazer.

domingo, março 04, 2012

Por punição, a recompensa

A Marcos Pompéia
 
Se a notícia de grilhões em ouro encantou e entreteve nos derradeiros séculos, a circunstância de terem por fim evidente a coibição não os distingue tanto de seus similares em metais mais resistentes, menos nobres, ou dos confinamentos em geral. A rigor, os princípios legais de Lugar Nenhum(1) são análogos aos que conhecemos, e apenas - talvez - mais esmaecidos, atenuados - diga-se assim - por uma compreensão maior da inutilidade e da vergonha dos atos punitivos para a sociedade que os pratica: inutilidade, por não prevenirem recidivas; vergonha, por indicarem a permanência de motivos para que crimes se cometam. Tacitamente concebemos a sociedade ideal como aquela que logra inibir infrações, não por perpétua vigilância, mas por não ensejá-las com atos consentidos. E desse viés o infrator se apresentaria qual dedo em riste para as condições impeditivas de sua natural atuação no meio, e o seu delito como exercício próprio da justiça, por assim dizer. Na comunidade ideal a contravenção é questão médica.

Não há propriamente médicos entre os Nhenhenhém. O curandeiro é presença figurativa, assim como o chefe. Mantém-nos lá para não se distinguirem demasiado dos vizinhos, dos quais conservam cauta distância: a recíproca é verdadeira, mas são evitados, além de, igualmente, por cautela, por reverência. No mais, todos sabem safar-se das mazelas comuns e a ordem imperturbável da tribo não carece de quem medeie dissensões ou remedeie suas - por vezes - dramáticas consequências, pois inexistentes. Cumprem todos com o que lhes cabe, sem distinção de sexo ou idade, como se cada qual soubesse desde sempre do que estará incumbido. Digo 'desde sempre' por não ter atinado com o modo de dividirem as tarefas, visto serem também obstinadamente econômicos com a fala. A língua, aliás, não lhes parece instituição das mais importantes, donde o nome que lhes dão - e aceito com dignidade - sugerir pilhéria. Afirmar ou negar lhes basta, em particular ao tratar com estrangeiros; entre si, raro é trocarem palavra. Entretanto não são sisudos; sorriem pouco, é verdade, mas conservam bom humor, sempre atarefados sem darem mostra de aborrecimento ou cansaço com o que fazem.

Crianças parecem aprender por imitação; nunca sequer lhes apontam para onde se dirigirem. Em geral imiscuem jogos e brincadeiras nas tarefaz que aprendem, envolvendo inclusive os adultos. São muito acarinhadas e recebem constante atenção. Não se fica inerte entre os Nhenhenhém: ao quinto dia de chegada fui cativado por sua determinação e, de pequenas tarefas auxiliares, uma semana à frente já cumpria uma rotina. Refeições nem sempre são coletivas, salvo a noturna, que tem caráter de festim, mas frugal. Usam da bebida só até lhes soltar um pouco a língua, quando então, além de alguma conversa, cantam e contam histórias. Esporadicamente louvam ou agradecem aos deuses, isto por estarem certos de não serem estes loucos ou tolos para perseguirem ou prejudicarem por motivos vãos as únicas criaturas no mundo conscientes de eles existirem. Creem ser inata a atitude religiosa: para ela os teriam criado, sendo homenagem bastante ao Criador o estarem vivos. Assim, jamais maldizem a divindade ou sequer dela reclamam, pois para tanto nunca encontram motivos.

É de imaginar e compreender que, assumindo aqui o papel do Arauto de Disparates(2), eu ficasse tentado a contrastar com esse meu antecessor chamando esta terra e sua gente de O Bom Lugar(3) ou, ainda, O Melhor Lugar. Ao cabo de quase um ano entre eles, não havia observado sequer uma expressão, alteração da voz e mesmo atitude que me remetessem a manifestações usuais de desagravo, aborrecimento, desaprovação. Mas isto somente até presenciar comportamento exclusivo e de difícil detecção, dado entre os Nhenhenhém ser frequente a troca de gentilezas: jamais se carrega fardo sozinho, há sempre alguém para nos esfregar as costas no banho e de bom gosto servem um ao outro durante as ceias. A exclusividade da circunstância não estava nas atitudes que a compunham, mas no quanto se repetiam e um tanto na ordem em que se davam - é possível, também, que na expressividade de algum gesto, o que não notei. Só depois de testemunhá-la meia dúzia de vezes, dei-me conta de ser o correlato do que entre nós se chama 'processo judicial'. Um pouco decepcionado, tive de admitir minha ingenuidade e a impossibilidade de convivência sem regras, lei de que os Nhenhenhém não seriam exceção. Fiquei igualmente apreensivo com o tratamento tácito dado a seu 'código legal', receoso de havê-lo infringido alguma vez, mas fui tranquilizado ao saber que ignoram a noção de 'perdoar', ou melhor, têm-na por sinônimo de 'esquecer' ou 'não perceber'; que a ignorância mesma é "esquecível" (ou "não merece ser percebida"), pois só se ignora o que é de somenos importância; e que somente ao 'descaso', ou a quem o comete, é devida a 'atenção'.

A importância secundária que, parece, atribuem os Nhenhenhém à linguagem não a torna instrumento menos sofisticado. Ao contrário: combinada às ações que a acompanham, ganha significados precisos cuja versão para idiomas como o nosso é grande estorvo. Dizem, por exemplo, ser possível perceber sem dar atenção, pois dar atenção é sinônimo estrito de cuidar, preservar. Detalhe: as gentilezas que reciprocamente distribuem nada têm que ver com a 'atenção', assim como a entendemos, sendo antes atitudes incontornáveis, necessárias, naturais da condição gregária. Compreendem mal a presença de conflilto em sociedade, estando em paz mesmo com os estrangeiros (entre os quais os vizinhos), aos quais se sentem associados ao mero contato. Em consequência, ninguém lhes faz guerra, o que me confirmou um visitante de outra tribo com a narrativa de um raro incidente de caça, que ouviu do avô: um Nhenhenhém fora morto por flechar o animal também na mira de um vizinho, que ele não viu. Já preparada para a guerra, a tribo do assassino, que desconhecia os Nhenhenhém (pois o traslado de aldeias para o pouso da terra de cultivo eventualmente possibilita encontros inéditos), foi surpreendida pelo cortejo de oferendas noite adentro e nos dias seguintes. Por uma semana ou mais foram poupados de trabalhar, de banhar-se e mesmo de comer por conta própria até que, tomados de vergonha, imploraram por 'perdão', no que foram prontamente atendidos.

O relato serviu para aclarar aquilo que eu já presenciara tantas vezes sem me dar conta do que fosse. Sem motivo aparente alguém se tornava alvo seguido de 'atenções' progressivamente maiores: muitos ou todos o serviam às refeições, ofereciam-se para carregá-lo à menor intenção sua de deslocamento, era banhado e à volta de sua rede acumulavam-se presentes. O comportamento tinha duração imprevisível, mas podia ser interrompido após repetidas recusas do favorecido. Tratava-se, como disse, do 'processo judicial'; e, como o nosso, compreendia etapas diversas. A primeira delas, a da acusação, cujo início nunca detectei, evidentemente, visto a amabilidade ser moeda corrente entre os Nhenhenhém: imagino que se configure com gestos sutis, pequenas variações da norma. A melhor resposta que obtive depois de indagar a respeito foi a de que a consciência do descaso (ou da infração) é em primeiro lugar do autor, o qual, por isso, concorda em ser servido. É natural, é seu direito inato recusar os favores. Caso isto se dê, tem lugar a segunda fase, a da defesa, mera sucessão de recusas às ofertas e que termina quando um dos lados deixa de insistir, encerrando-se o processo ou continuando-o na fase seguinte, final, correspondente ao cumprimento da sentença, que é sempre única, a exclusiva aceitação dos presentes, variando somente quanto à duração e cuja interrupção, igualmente, cabe com exclusividade ao sentenciado. Dignas de nota são as condições em que tudo ocorre, em princípio indistinguíveis das normais, ao condenado sendo permitido praticamente tudo, desde que obediente ao protocolo de sua pena, que nada tem de excepcional, visto ser sua a iniciativa de interrompê-la a qualquer momento - ou quando ele e todos entendem ser oportuno, ao que parece.

Se algo entendi dos meandros do tema, faço o esboço a seguir :

1) Por que não falam dos seus princípios legais: primeiro, por os entenderem como evidentes, inatos; depois, porque, sendo na verdade um só, quando enunciado quebra-se em uns poucos, o que obriga ordená-los, o que induz á hierarquia, a qual é fonte do engano.

2) O descaso é o escândalo: o indivíduo sabe que infringe a norma, não depois do ato (o que, no caso, constituiria ignorância - merecendo, portanto, não mais do que o 'esquecimento', o 'não-percebimento'); sabe que a infringe antes do ato infrator (quando se decide a - ou se permite - praticá-lo) e, principalmente, enquanto o comete. É evidente, a infração só é percebida pelos demais depois de ocorrida, assim dando início ao procedimento legal descrito e cuja primeira função é investigar se de fato a houve.

3) Quanto a em que consiste a falta, como observei, nunca tive oportunidade de presenciar o cometimento de alguma nem de ouvir sua descrição para arriscar dizer seja o que for. Então busquei na razão o que a circunstância omitiu, e ainda assim é indiretamente que o menciono:

     a) A completa ausência de ofensas recíprocas entre os Nhenhenhém induz a pensar que em meio aos seus princípios está esse, atribuído aos judeus, mas que é provável os preceder: 'fazer ao outro apenas o que se permite fazer a si mesmo'.

     b) Entretanto o exame cuidadoso do princípio revela um problema: se é o masoquista quem o observa, por exemplo, será fonte de constantes desavenças. O processo judicial descrito aqui sugere que os Nhenhenhém estão a par disso: cada parte se dispõe a interrompê-lo a qualquer momento, tendo por critério do 'jogo', ao que tudo indica, a tolerância da outra parte. Assim, observam uma forma corrigida do princípio e a têm por inata: 'jamais exceder a tolerância alheia'.

    c) O novo preceito justifica a conduta amável dos Nhenhenhém, ou seja, veta a possibilidade de conflitos, já que o observam à letra. Mas se não há ofensa recíproca, se não se excede a tolerância do outro, o que puniriam com as oferendas? A solução do impasse se apresenta somente quando é posta em evidência personagem quase desaparecida em meio às solicitações daquela que de hábito protagoniza as considerações legais: o 'eu', esse 'objeto' da lei, quem tem de observá-la, o coadjuvante do 'outro', o 'sujeito' dela, que o acusa de infringi-la. À exceção do matar-se, por que o punimos acaso falhe em realizar, do 'eu' cobramos tacitamente toda sorte de sacrifícios a cuja submissão se associa sua honra (esse nome de pompa para a vaidade), restando-lhe, além de entregar-se aos suplícios, a vergonha de fugir ou, excedida sua tolerância, o suicídio mesmo. Os casos extremos do herói e do santo, únicos a nos merecer a admirada consternação, impedem-nos de notar os demais, os dos obreiros, dos funcionários, das mães, dos médicos, dos professores e enfiada sem fim de indivíduos onde é certo estarmos você, leitor, e eu: supliciados menores, esperados, quase invisíveis. Os Nhenhenhém os percebem. Por isso, ao preceito 'jamais exceder a tolerância alheia'  teriam acrescentado: '...nem a  própria'.

Notas:

1 - A expressão indica que o autor refere desde a primeira frase o clássico de More.

2 - Raphael Hytholdaeus.

3 - Num comentário à obra, More admite mesmo a expressão ("a place of felicitie") como ainda mais adequada para qualificar o país imaginário do que a usada no título.

sexta-feira, março 02, 2012

Relata o visitante

... creio ter sido por volta da décima visita: tive a ligeira impressão de ser a mesma de sempre a coleção de papéis que deparava sobre a mesa, mas não me dei inteiramente conta. Ainda retornaria cerca de outra dezena de vezes antes de ter a suspeita por hipótese a ser investigada: tudo já estava - sempre estivera - como ali se dispunha e seriam então os meus olhos, alterado o estado do espírito em face do maravilhoso, a vê-los assim diferentes, renovados a cada excursão, a produzir a ilusão de variedade, do novo. Hoje tenho quase por certa a incômoda idéia de estarem abandonados desde que os escreveram e então me rio das inúteis preocupações com demorar-me ali ou com apagar os indícios de minha passagem, com sequer tocar o alimento, sempre fresco e como a me esperar, e com a pressa de partir tão-logo voltava a mim no intervalo de substituir diante dos olhos uma página pela seguinte, com o receio de ser pilhado ao sair e com a firme e reiterada decisão de aguardar, escondido num desvão da mesa, o retorno do autor. Além desse espaço monumental, dos escritos maravilhosos e do silêncio, talvez ninguém, senão eu e talvez algum animal errante, tenha-se esgueirado pelas ranhuras do piso ou misturado às sombras sem fim das portas quase inamovíveis, não fossem as dobradiças responsivas ao meu toque insignificante como se por milagre. Por momentos ignorei os papéis na busca de peças de vestimenta que me confirmassem as dimensões do dono, já intuídas do mobilliário; pois nada, além da cama, igualmente rústica e dum armário inviolável, bem como da mesa e da cadeira - que me dava acesso, embora penoso, aos escritos - traíam a possibilidade de o lugar ser habitado. Observei depois as frutas - o cacho tinha o tanto de bagos maduros que noutra excursão - e o queijo - macio e odoroso como d'antes: sempre ali, como a me esperarem ou a qualquer outro visitante, indiferentes e intencionais. Nem tanto ao receio de me revelar devo a reserva em tocá-los, mas ao temor de me afogar em seus sumos. Voltei assim aos papéis, umas visitas mais tarde, e tentei decifrar os seus traços: era evidente haver letras, que de tão próximo dos olhos não figuravam palavra, mas como que caminhos que trilhei vez ou outra na esperança de lhes achar o sentido. Foi somente quando logrei pendurar-me na lamparina presa à parede que pude confirmar tratar-se de notas margeando desenhos, alguns traçados com precisão de instrumentos da geometria. Sim, eram planos, mas numa língua que desconhecia, ou melhor, numa língua cujos termos não conseguia vislumbrar em conjunto, dado estarem ainda muito perto. Semanas de estudo me forneceram o meio seguro de atingir o teto: penderia do cordão quase esquecido à volta duma viga no telhado. Só assim entenderia que, se estavam num vernáculo, este era o do mundo, no qual em inesperada harmonia vocábulos de línguas diversas se alternavam em seus respectivos alfabetos e ideogramas: além do provável tamanho, era também pantagruélico o poliglotismo e - constataria mais tarde - a polimatia do autor. Quanto ao que os ilustrava, em traçado leonardiano, uma paisagem e como se a anatomia de um pássaro. As visitas seguintes dediquei a adaptar o dispositivo de cordas e varas para do meu ponto de observação poder mover as folhas sem sair de onde estava, deslilzando-as para o chão, onde permaneceriam intocadas até quando as vi da última vez. Ocorreu-me também de copiá-las, guardadas as limitações do meu engenho, e submetê-las a algum sábio disposto a decifrá-las. Era constante o pentagrama, no qual se inscreviam um homem, mas também um símio, um lobo, o jaguar, e em outras abundavam as esferas - sobre as quais havia mapas, um deles, do planeta - e que por vezes se agrupavam em sistemas como o solar, além de nuvens espessas de pontos sugerindo objetos ignorados. Paisagens figuravam por vezes seccionadas, exibindo as entranhas em que, num ciclo de setas sem princípio nem fim, a seiva das árvores fluía para os veios dum vulcão cujas cinzas pareciam animar o vento que se esgueirava pelos escuros dum céu estrelado refletido no mar à guisa de peixes e equinodermos, e assim por diante, para sempre. Sequencias inteiras não eram ilustradas e ali as sentenças pareciam fazer seus sentidos usuais; umas emulando frases célebres, que reconhecia quando era familiar o idioma. Muitas estavam em sânscrito, outras em chinês e hebraico - penosas de reproduzir - e só ao fim de várias centenas de folhas desfrutei do conforto de reproduzir o alfabeto latino, embora pouco ou nada entendesse do que escrevia. Na esperança de encontrar algo compreensível, pus abaixo páginas e páginas seguidas para somente assim observar que parecia interminável a modesta pilha, que apresentava, a despeito do quanto a desbastara, espessura semelhante, se não igual, à de sempre. Já as demais, espalhadas pelo soalho, davam a impressão de serem mais numerosas do que as que ainda se empilhavam, ou melhor: davam a impressão de serem em maior número do que a soma de todas quando ainda sobre a mesa. Retornam os desenhos num certo momento, os textos reduzidos: havia agora exércitos, hordas de miseráveis e seus reis ou generais, não sei precisar, pois vestiam-se do inusitado, ás vezes parecendo nus ou cobrindo-se demais; vi máquinas volantes e bólidos incandescentes rasgando os céus em direção a lagartos imensos, o apagar de sóis e um amanhecer igual aos outros em todo lugar; e uma mansarda, representada dum ângulo aéreo, familiar: a cama, o móvel, a cadeira e a mesa onde papéis se empilham e se espalham pelo chão.

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