sábado, julho 06, 2013

Em que tem de crer

Sim, crê num deus. Não tem escolha sempre que se inteira de ter vindo de alguém e de que estes vieram, por sua vez, de outrem; sempre que se inteira de que tudo parece vir de outra coisa, sem exceção. Em vista disto, arrisca supor que o mundo, em sendo coisas saídas de outras, em algum tempo possuiu coisas primeiras, as quais não foi capaz de imaginar incriadas: assim, visando talvez e somente dissimular para si essa incapacidade, supõe um criador dessas primeiras coisas, mas apenas para se dar conta de agora estar nele a sua ignorância do princípio de tudo. E percebendo que alimentar semelhantes suposições é trilhar caminho sem termo, alentar vertigem sem cura, contenta-se com acreditar ser esse o primeiro a ter criado, o deus.

E então apareces, acoimando-o por achar que o deus em que crê - em que teve de crer - é diferente desse em que crês e que alegas ser único. E lhe demonstras tal singularidade pelos mesmos passos que deu para encontrar esse em que, para conforto de sua ignorância das coisas, teve de crer. E, ora, fossem ainda distintos dos seus os passos que destes para encontrar o teu, é incompreensível que o condenes: pois ou falam do mesmo indivíduo, ou ele não é como o afirmas, único.

No mais, a despeito de tentado, esquiva-se de imaginá-lo como seja para além da unicidade, idéia que acata, embora não veja o por que de a criação não ser obra de muitos: conceber um só, entretanto, é ao menos medida da forçosa economia de uma mente inábil, como a que tem, para com mistérios dessa monta. Dizer mais é enveredar por idéias de que não dá conta, algumas de cujas conclusões, inclusive, desmerecedoras da obra e de quem a fez. Sequer pode mesmo afirmar que não passa esse deus de uma idéia, visto ter sido capaz de conceber um sem número de coisas cujos pares no mundo já deparou e outras que permanecem ímpares. Contenta-se, então, com achar que, se existe, não quer ser conhecido para lá da intuição de que criou e, se proclamou leis, fê-las perceptíveis sem necessidade haver de ser invocado, compreensíveis do próprio entretecer das  coisas. Contenta-se também com se inteirar de teus avanços sobre a natureza divina, não os acatando, no entanto, e espera não vejas nisso igualmente motivo para estranhamento, salvo tenhas gosto por continuar contrariando o que tu próprio afirmas, como dela teres intuído, entre tantas preciosas coisas, a compreensão, a compaixão, a misericórdia.

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