sábado, dezembro 13, 2014

Onto-epistemologia da fé em Paulo, ou do sentido laico de 'fé'

"Ora, a fé é o firme fundamento das coisas que se esperam, e a prova das coisas que se não vêem."
Hebreus 11:1

Paulo é apontado como responsãvel por alguns desserviços à moral em termos gerais nos tempos de hoje, entre os quais pregar o desprezo pelo corpo e uma de suas consequências mais funestas, ainda ressoando amplamente no meio da religião que ajudou a criar, a misoginia. Mas que seja bem lembrado por ao menos essa definição, que parece ter sido o esteio sobre que se ergueu a epistemologia cristã com seus três eixos interdependentes: fé, esperança e amor (ou caridade).
A sentença estrutura-se com elementos da filosofia grega, visíveis nas noções de 'fundamento' e 'prova', sem falar na ideia de 'ver', esta imbricada no conceito de 'teoria', que para os gregos antigos era somente uma maneira de olhar, uma visão geral, ampla, de seja o que for.
Com precisão surpreendente - e certamente insuflado pela verve oratória - Paulo define 'fé' como isso que fundamenta a esperança (o que se espera), ainda que nada se saiba a respeito (nada se veja) do esperado, uma vez que ela mesma, fé, é também a prova disso que se espera (e ainda não se vê): enfim, é prova porque fundamenta a espera e é fundamento porque prova haver esperança.
Embora o sentido do verbo 'esperar' não pareça induzir um juízo acerca do que é esperado, pois é possível esperar o bom como o ruim, a palavra 'esperança' parece capaz de corrigir essa imprecisão, mostrando que o esperado só pode ser aquilo que é bom, do contrário será 'inesperado', 'desesperado' (e tal a despeito de vivermos num mundo em que o futuro tem sido pintado com frequência de modos sombrios): Paulo mostra, portanto, que ninguém, ora, ficaria mesmo esperando, não de livre vontade, pelo que sequer suponha ser mau, o que parece evidente, embora - insisto - haja quem tente convencer-nos de esperar o pior (o que equivale a cooptar-nos a desistir da fé, que por seu lado é o mesmo que convidar-nos a abrir mão de viver).
Além de estabelecer, como se disse, a teoria acerca do conhecer (ou epistemologia) do cristianismo, a frase paulina fala na verdade de como se existe, ou seja: à espera do melhor, sendo isto o que estimula - como costumo dizer - a que demos o passo, a que pisquemos os olhos, a que façamos, enfim, projetos para minutos ou décadas à frente, a despeito de não sabermos - pois, sim, estamos advertidos da possibilidade - se quaisquer desses projetados atos se realizarão. Assim, ao lado da epistemologia cristã, a frase de Paulo é também a base para para um modo particular de formular um 'existencialismo' (talvez 'o' existencialismo) e a ontologia cristã (pois em sua sentença 'ser' é atributo conferido a seja o que for por somente ser 'visto', 'conhecido' - sem o que não há ser nenhum: como disse o grande Quntana, "Terra... meus olhos... foram os teus pintores"): existe-se nessa espera do que ainda não se vê, nesse contínuo projetar intuído mesmo como sequência infinita.
Em suma, segundo Paulo, é a fé o que nos torna eternos, imortais, enquanto durarmos, sendo sua ausência sinônimo de morte.

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