quinta-feira, novembro 02, 2006

Discurso liberal

a um amigo

Ora, meu amigo, é uma maravilha esse mundo liberal! Como indica o próprio nome, é tudo quanto pode alguém desejar: liberdade, direito inalienável com que nascemos e pelo qual nos é permitido fazer o que desejamos de nossas existências, até mesmo errar, se assim for necessário ou acaso apenas assim o queiramos. Pois só se é livre quando é possível escolher, inclusive o pior. Sem ser isso da conta de ninguém.

Ou você preferiria o mundo onde alguém lhe dissesse o que fazer, o mundo sem escolha, pronto e acabado a despeito dos seus anseios particulares? Sendo esse o seu desejo, é bom se apressar: não há mais tantos lugares onde tais experiências são feitas e em breve nenhum restará. Mas não vá, depois, reclamar, pois isso é malvisto por essas bandas, se não impossível. Nem me venha dizer que eu não avisei.

Um dos pontos notáveis do liberalismo diz respeito diretamente ao significado mesmo do termo. É-se livre para dar-lhe aquele que se acredita ser o mais cabivel. São possíveis tantas idéias liberais quanto houver de indivíduos a concebê-las, havendo para tal, em aparência, somente o limite da interdição ao aparecimento de novas: em vista dessas premissas, a única proibição tolerável por um espírito francamente liberal só pode ser a de proibir, ao menos e em particular a concepção do que seja a liberdade. Semelhante panorama, como é previsível, se apresenta como a convivência, nem sempre pacífica, tampouco inteligível para a maioria de nós, de idéias em franca oposição, em aberto conflito. E ao liberal autêntico, é natural, não inquieta semelhante composição. Do contrário, nada mais livre do que a profusão, ainda que conflituosa, de convicções.

Dado o fato de tais juízos dizerem respeito, por necessidade, ao modo idiossincrático de cada indivíduo entender e lidar com a realidade, é de esperar o recurso freqüente às vias de fato na dirimição das divergências. É claro, há regras moderando o uso de tal solução, havendo também um sem número de objeções e de reparos às mesmas, propostos com o fito de conservar o equilíbrio ideal de duas forças contrárias (pois no liberalismo, reiteremos, é-se livre para virtualmente tudo que não cerceie seu princípio seminal, o da liberdade), redundando todos no favor incontornável a uma delas. Eis, ouso afirmar, um dos problemas genuínos enfrentados na experiência liberal do cotidiano.

Correntes mais realistas do liberalismo, entre cujos bordões está o uso da silenciosa ironia num dos cantos dos lábios constantemente dirigida aos liberais afeitos ao idealismo, costumam justificar essa insubmissão das regras a todo esforço corretivo como a emergência da lei natural do mais forte, contra a qual é impossível insurgir-se sem pôr em risco a continuidade do princípio liberal. O indivíduo, evidentemente, é livre para manifestar-se como é, e se a posse de maior força é sua condição originária, nada poderá coibi-la sem o fazer de enfiada com sua própria liberdade. É de esperar que num ambiente de liberdade semelhantes situações sejam contornadas de maneiras igualmente livres, mas uma dessas contingências - talvez só explicáveis nas leis da físicas contemplando o comportamento imprevisível de partículas dispondo-se segundo padrões simples e determinados a despeito de se moverem aleatoriamente - tem produzido a adesão em massa, se não total, dos adeptos do liberalismo à convicção de haver também um equilíbrio intrínseco a essa lei natural do mais forte provendo cada indivíduo de força particular cujo emprego adequado pode levá-lo a superar a de outro semelhante. Assim convencidos, professam ou demonstram o livre direito de cada um ocupar, segundo o uso conveniente das próprias capacidades, as posições mais elevadas - as mais cobiçadas por praticamente todos - na estrutura da sociedade liberal.

Só mesmo um tolo, é óbvio, escolheria viver num sistema não liberal, seja ele qual for (pois não há, para algumas correntes do liberalismo, senão ele mesmo em oposição a uma profusão de versões inconsistentes do seu contrário, o não liberalismo). Onde mais, senão cá, seria possível prevalecer sobre os iguais, ainda que por período incerto? Onde mais se toleraria a submissão senão onde existe a perspectiva de, algum dia e a depender da própria habilidade, submeter também? Há quem prevaleça por lustros consecutivos e mesmo quem o faça por décadas ou séculos e, nada obstante contestados e até combatidos, gozem do merecido respeito dos seus contendores, garantido no princípio liberal. Tornam-se história, exemplo, esperança para gerações de submissos no aguardo de suas horas ditosas de preeminência. São, tais ícones, prova definitiva da liberdade de meios usados para atingir os seus objetivos. Para comprová-lo é suficiente consultar suas biografias, cuja reunião, aliás, é o objeto central da ciência histórica.

No cerne do pensamento liberal, é consabido, está a noção de erro. Ali o erro é apresentado como o direito maior ao qual fazemos todos jus. Em particular pela compreensão de que a todo erro cometido num certo âmbito corresponde um acerto noutro. Imperdoáveis, entretanto, são os erros do indivíduo cometidos consigo próprio, tidos como manifestação de incontornável fraqueza e merecendo, quando menos, o escárnio universal. Os demais, todos decorrentes da passividade, são inteiramente compreensíveis, tanto que para designá-los adota-se o eufemismo 'engano', pois os cometeram quem procedeu com acerto para si, induzindo os restantes aos equívocos ditos perdoáveis. Sem errar tornar-nos-íamos inertes, seres desprovidos de qualquer desejo de movimento, fadados à sucumbência, se não pela depressão, decerto pelo suicídio. Motivados pelo temor de semelhante marasmo, há mesmo quem admita o perdão para os erros imperdoáveis como alternativa para evitá-lo. Mas os autênticos pensadores liberais, convencidos do império incontornável da liberdade (pelo que nem mesmo preocupam-se com criar-lhe dispositivos protetores), não reservam para estes desesperados senão o mesmo sarcasmo de canto de boca lançado ao liberalismo idealista.

A seguir à risca o pensamento desses genuínos liberalistas chega-se à conclusão inelutável de que a consideração de outro princípio fundamental da ética que não o da liberdade, como o da igualdade, por exemplo (precipitadamente associado a ele no fervor renitente de revoluções), é apanágio dos desprovidos da força, da astúcia ou do poder bastantes para alguma vez acharem-se no ponto mais alto na roda de fortúnio, confinando-se indefinidamente à parte submersa dela mesma. É o caso de quem não logra escapar de moto próprio ao erro alheio recaindo sobre si ou de quem erra contra a própria pele. Só estes, segundo essa filosofia, são capazes de imaginar, como o faz quem tem sede no deserto, modelos perfeitos de eqüidade com os quais iludem-se em massa, configurando em seu delírio ameaça suficiente para aqueles cujos poder e habilidades para conservá-lo são congênitos. Tendo conseguido mudar de posição em esforço coletivo, dominando quem antes os submetia, percebem-se, esses fracos, quase de imediato regidos - ainda e de fato - pelo princípio liberal, reconhecendo como secundários aqueles outros princípios que os guiaram a prevalecerem, passando de imediato a proceder como é de esperar e, caso não hajam aprendido de sua experiência de ascenção a perspicácia para manterem-se onde estão, descambam de volta nos submundos donde a custo se ergueram. Em vista dos fatos, para o liberalismo realista a conclusão óbvia é a de não haver pensamento outro a refutá-lo nem iniciativa alguma a destituí-lo.

Rio, 02/11/2006

Waldemar Reis

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