terça-feira, maio 15, 2007

Fides et Ratzinger

A meu pai, em seus oitenta anos, no décimo quarto ano de ausência de minha mãe.

No princípio, era a confiança. Apenas confiança, mas num sentido do qual você e eu não guardamos mais do que uma noção descorada, confiança em sentido absoluto. Hoje é sentimento atribuído aos parvos, indivíduos dotados da coragem, a eles conferida pela ingenuidade, para confiar cegamente, confiar simplesmente, a priori, quiçá sem garantias. Confiança assim só se deposita, é natural cogitarmos, em quem de certo a malversará jamais. E de espantar é que tenha havido quem a merecesse ou que tenha alguém acreditado em sua existência.

Mas, conta-se, teria de fato existido tal sentimento. E veio ele à tona, diz a história, quando um homem e seu clã deixaram para trás o lugar onde nasceram em busca de uma promessa. Foi por nela confiarem que seguiram caminho e de passagem testemunharam a destruição de cidades sem sequer um olhar, a transformação de um dos seus em estátua de sal, entre outras mostras impressionantes do preço de não confiar.

Muitas são as provas por eles deixadas do quão firme foi sua confiança. Jamais esqueceremos da saga do pai conduzindo o filho à imolação depois de abandonar às portas do deserto um outro, o primogênito, com a mãe, sua antiga concubina, designada por seu Deus para lhe dar a descendência negada pela constituição física de sua esposa e meio-irmã, a quem por duas vezes vendeu em troca da própria vida e por duas vezes restituiu em meio a riquezas incalculáveis. Fraqueza, diriam os incautos, diriam os incréus leitores de sua sina; loucura, completariam. Mas o fariam por não mais confiarem, não no sentido daquela confiança de quem estava seguro de não haver lugar senão para o bem, para o bom, neste mundo de desígnios imponderáveis. Foi suficiente tolerar o peso do revés para que o ventre vetusto da esposa inesperadamente concebesse, para que o filho por dever renegado se tornasse patriarca do povo do deserto, para que um anjo viesse conter o braço antes do golpe do punhal.

Como se não bastassem essas e outras mostras desse confiar (não esqueçamos daquele pai cuja firmeza não se abalou com o decesso de toda a família, a penúria extrema e a temporada no estômago de um cetáceo), como se fossem insuficientes para o entendermos, séculos adiante, ou melhor, livros à frente, a história nos dá um pregador de cujo delírio brota a ambígua noção que doravante orientará a razão, mas também a desrazão, do homem. Em nome dela, fé (como passou a chamar-se a confiança), segundo a definiu Paulo, apóstolo tardio dum Cristo já ressurgido, milhares, quiçá milhões, pereceram sob a acusação de não a possuírem, de não a exercerem: eis um dos mais bem acabados exemplos da demência. Pois como é possível sequer suspeitar de haver quem seja destituído de fé? Como é possível conceber vida sem fé? A estas interrogações entregaram-se os espíritos verdadeiramente lúcidos, embora não dessem com outro meio para evitar os inúteis suplícios senão oferecendo às prováveis vítimas, os supostos destituídos de fé, o objeto sobre que depositarem a que sempre tiveram e que de fato existia, embora não a percebesse o clericalismo irracional, decerto por tratar-se de fé em estado bruto, aliás, como a quis Paulo mesmo, a saber, a espera do que não se pode ver.

Cristo, imagino, dar-se-ia por contente se seus seguidores apenas se inteirassem da fé que sempre possuíram e que sempre possuiriam em sendo viventes, tomando cada qual, em seguida, caminho próprio. Creio, entretanto, ter em mente o Cristo ideal quando assim o digo, o Cristo coerente com a pregação que lhe atribuíram. Não sei se para o mesmo fim posso invocar o Cristo histórico, personagem dia a dia emergindo da pertinácia ou da fantasia de arqueólogos e historiadores, cuja suposta vaidade teria levado ao paroxismo, no breve intervalo em que viveu, a corrompida sociedade desse tempo e cuja recompensa foi inserir-se na história, a passada, com a qual fez coincidir cada um dos seus passos desde que adentrou Jerusalém em lombo de jumento até a crucifixão, e a futura, a habilidade de cujos escribas o tornou em lenda.

Por que se daria por satisfeito o Cristo ideal com a contrita diáspora de seu rebanho? Por ser um visionário, como o confirma em boa medida o Cristo histórico assim como o esboçam. O Cristo coerente estaria lasso das invectivas dos poderosos sobre o comum acusando-o de desligado, sua meta seria a de livrá-lo de uma vez por todas desse tribunal insano. Mas desligado de quê estaria o comum? Ora, de sua natureza primeira, de sua essência imaterial, de sua origem na divindade. Não é outra a premissa religiosa, de seja qual for a religião. Mesmo a etimologia do termo, em sua ambigüidade, pende ao fim para delineá-lo como o esforço de fazer tornar o indivíduo ao essencial, em suma, de reatar seus laços com o que não percebem os sentidos nem alcança a razão. Como se possível nos fosse escapar ao incognoscível e ao paradoxo enquanto vivos e conscientes! É verdade: a empresa religiosa padece cronicamente da presunção de estarmos tecnicamente apartados de nossa origem, a despeito de atribuir-lhe poder, conhecimento e presença absolutos. Em sua opinião teria Deus criado o universo e o povoado de criaturas capazes de eventualmente apartarem-se disto que criou, não obstante tudo, absolutamente tudo, seja criação Sua. Em suma, é simples a dedução: para onde quer que tais supostos fugitivos pensem rumar, permanecerão sempre confinados à Sua obra. Enfim, os pressupostos religiosos jamais justificaram ou justificarão as conclusões que deles se retiram e muito menos os atos determinados pelo que se concluiu.

 Até onde alcanço, só vislumbro uma causa única para a profissão religiosa: o vício da dominação. E melhor viceja sua semente onde antes adubou a ignorância aterrada com o fado dos viventes. Pois o mundo é útero e túmulo, berço e esquife, palco e cadafalso, saciedade e penúria, de que, mais dia, menos dia, vamo-nos dando conta. Mas se vem à luz com uma imcumbência, uma só, contrariadora da metade - a metade indesejada - disto que o mundo é, a incumbência de cá permanecer o quanto possível for. E, não importa o tanto que se perdure, não há quem ou o que cumpra por inteiro a tarefa nem quem ou o que dela deixe dívida: todos o sabemos, intuitivamente; sem qualquer pressa a vida no-lo ensina. Tememos tudo cujos efeitos desconhecemos ou não logramos mensurar, dos eventos da natureza aos pensamentos de terror que estes nos infundem, frente aos quais só duas atitudes se mostram possíveis: a obstinação perquiridora, naturalmente decorrente da incumbência - ou, melhor dizendo, da imposição - de perdurar, e a submissão incontornável aos fatos, cuja continuidade termina por extinguir-nos. A vida é a temporada durante a qual oscilamos entre uma e outra posições e talvez sua duração se relacione diretamente com a eqüidade com que nos mantemos mais na primeira, visto ter a outra a função de mera pausa antes do impulso pelo qual penetramos mais e mais no conhecimento das coisas. E é nesses momentos de dúvida, quando por qualquer motivo se enfraquece a confiança que temos de ter no que somos capazes de saber, é em tais hiatos - por vezes mais duradouros do que desejávamos - que as admoestações religiosas se vêm imiscuir.

Suas ofertas não são de todo despreziveis: convencendo-nos de estarmos desgarrados, acenam a seguir com a reentrada no mundo verdadeiro, segundo o concebem, para tal ofertando-nos o conhecimento total e instantâneo da realidade. Abstenho-me de julgar o teor ou o valor desse conhecimento, pois tal só se mede tendo em vista um sujeito e o quanto isto lhe tem serventia. E de hábito não é raro topar-se com 'religados' cuja vida sucede à sua satisfação, prova esta porventura considerável do valor do que conhecem. Arrisco-me inclusive a reputar tal conhecimento, em essência, o melhor, o único mesmo. Mas recuso conceder-lhe o acabamento às pressas arranjado pelos doutores das religiões para torná-lo palatável ao indivíduo em dúvida profunda, convencido de estar de parte da Criação. Prefiro restringir-me à letra da palavra de Paulo em Hebreus (11:1), para quem a fé é a forma da esperança e a prova do invisível, descartando os objetos que a tradição a ela apôs à guisa de isca para os destituídos de paciência e imaginação. Pois o objeto da fé, da fé que é apanágio de todo vivente e não apenas dos devotos desta ou daquela religião, não se constitui senão na espera que o desvela infinitamente em sua infinita perfeição. Bem aventurados os que não se apressam em pôr no seu lugar qualquer coisa que, no incessante desvelamento, dá à fé a impressão de ser como uma árvore, o trovão, o mar ou as divindades. Pois ela é tudo isto e muito mais, é qualquer coisa, é todas as coisas. Mas só o é por haver quem - por haver um sujeito - a exercê-la, sem o qual é nada.

A fé é a prova de estarmos, desde sempre e enquanto durarmos, ligados com as coisas, ligados nas coisas. É desejo, vontade, indução; é o passo que darei a seguir sem qualquer garantia, mas com a certeza plena de que o darei. Em sua audácia a fé tem mesmo um objeto último, extremo, mas do qual possuímos, quando muito, um nome, Deus, e uns poucos atributos óbvios, embora paradoxais. E de pouco nos servem tais elementos: por certo de estímulos para o exercício mais vigoroso, mais entusiástico, da continuada e imperiosa fé; jamais como justificativas para o antagonismo que o arrebanhamento de homens em torno a cleros distintos costuma suscitar, menos ainda para promover a servidão. A fé nos constitui igualmente, pelo que somos livres e fraternos. É o que viemos descobrindo, ao passar das eras, a despeito da massa ainda orientando sua fé para os objetos impostos por conventículos cujo fito não é outro senão mantê-la submissa. A passos módicos, nada obstante, evolvemos, e prova-o o modo como findamos por designar tal objeto maior possível à fé, objeto indivisável por inteiro, mas perpetuamente descortinando-se aos nossos sentidos, mesmo os mais recônditos: Deus, atributo de gênero antes que nome de espécime.

O Cristo ideal, dizia, satisfar-se-ia com entendermos apenas isto: é impossível 'desligar-nos', não havendo necessidade, por conseguinte, de religamento; só se desligam os decedidos, pois em seus corpos não mais habita a fé, isto que nos mantém aderidos ao mundo; por conseguinte, somos feitos de fé, por cujo intermédio tudo é possível conceber, nada excedendo, embora, a idéia de Deus, cuja propriedade é a de constituir-se enquanto fé houver, enquanto vivo se for. E uma vez aprendida lição assim singela, que tome cada um o seu caminho no mundo, tratando de mantê-la, transmitindo-a às gerações vindouras, de modo que em pouco sejam esquecidos todos quanto fizeram e ainda fazem da fé instrumento de servidão.

Rio, 15 de maio de 2007

Waldemar Reis

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