domingo, fevereiro 22, 2009

Darwin, pecador

Darwin não soube em que se metia. Avaliou mal as conseqüências de sua hipótese. No seu rastro vieram a selvageria esclarecida dos mercados, a eugenia e argumentos capciosos justificando o racismo. À exceção da entropia, tudo parece evoluir no mundo feliz dos seres superiores.

Apesar de todo o cuidado, toda a parcimônia por que pautou sua existência, não pôde evitar certas conclusões. Sabe-se lá como no fim da vida justificava para si próprio a postura anti-escravidão de sua juventude!

Seu pecado, entretanto, não foi exclusivo, tampouco inédito. Toda uma civilização cantava e ainda canta a igualdade de ’progresso’, ’aperfeiçoamento’ e ’evolução’, nada obstante tenha sempre sabido que doenças e outros malefícios também progridem ou evoluem e mesmo se aperfeiçoam.

Fora decerto melhor se seguisse os antigos chineses e um conhecido químico francês, dizendo: tudo se transforma. Mas enquanto homem deixou prevalecer a vaidade e enquanto europeu a cor da própria pele. Esqueceu-se de ser nossa superioridade semelhante à das abelhas e formigas e de que abandonados e solitários na natureza virgem poucos de nós sobreviveriam.

É verdade, sim, entendemos ou procuramos entender o mundo, exercemos um falar complexo e produzimos livros. Em que, entretanto, isto nos tem ajudado a escapar da sina comum a toda forma de vida?

Resultado: nem mesmo chegamos a ver-nos sós na mata ou escaldados no deserto e a menos de duzentos anos de sua morte já contávamos com progressiva escassez de recursos provocada por um mercado inteirado de ser ele também uma força da natureza, devendo por conseguinte obedecer-lhe as leis, essas mesmas cuja ação teria posto o homem no topo da escala evolutiva.

Isto para nos darmos conta do quão perigoso é o uso dos conceitos. Como na aplicação da matemática, é suficiente um sinal a menos, um ponto fora do lugar para mudar a rota de uma nave ou pôr uma casa no chão.

A despeito dos tropeços, no entanto, proporcionou-nos - em parceria com muitos de seus contemporâneos, não esqueçamos - a abertura de uma porta efetivamente dando para paisagem compreensível e ampla, sulcada de caminhos que, decerto por milagre, dão voltas, voltas e mais voltas antes de darem no precipício além do qual, dizem, para sempre espera Deus.

Rio, 22 de fevereiro de 2009

Waldemar M. Reis

sábado, fevereiro 21, 2009

De literatura, caos e pensamento (um caminho possível entre três temas)


"Que a rosa não se desfaça em borboletas e da macieira não brotem diamantes, não é mais surpreendente que a rosa, as borboletas, a maceira e os diamantes". Antonio Caetano


O fantástico é o único ramo possível da literatura, já dizia Borges. Por mais realista que tente ser um autor, inevitavelmente produzirá situações inusitadas ou não causará interesse. A rigor é a vida mesma fantástica por natureza, por ser imprevisível.

De hábito o fantástico é definido em oposição ao corriqueiro, àquilo de cuja verdade cremos possuir provas bastantes. Seu sinônimo constante tem sido o inverossímil. Mas o que, nesse mundo turbulento, há de mais fantástico do que o comezinho, a repetição? Como não espantar-se também diante da verdade?

Embora não nos demos conta, o habitual e o verdadeiro são autênticos milagres, principalmente quando é possível conhecê-los de antemão, digo, quando é possível prevê-los. O normal é que nos inteiremos de que são um e outro depois de serem fatos e depois de experimentarmos longa ignorância quanto ao que haveria de vir. Em fim de contas o verossímil termina por ser das expectativas a mais incerta.

Assim, se é mister classificar as literaturas e evitar as discrepâncias imediatas na conceituação das classes, que se o faça de maneira mais trivial, por exemplo, segundo a temática: a do cotidiano, no qual se incluem as paixões; a da especulação técnico-científica; a do mistério ou suspense, que abriga desde os crimes até o sobrenatural; a das idéias, como os ensaios, a filosofia e a vulgarização da ciência; e por fim a variada. A rigor é muito difícil encontrar obra exclusivamente classificável num único tipo.

Em virtude da natureza promíscua do modo verbal de o pensamento expressar-se, todos os temas perpassam com mais ou menos contundência toda e qualquer obra; o fato de predominar um tipo não impede a participação dos demais. O problema está em saber se tal ocorre de modo procedente. Por exemplo: se numa ficção científica a tecnologia, a ciência e a filosofia aparecem torcidas, isto é de somenos importância, o mesmo ocorrendo no caso de nos temas fictícios do cotidiano filosofar-se de maneira canhestra ou ocorrerem aparições do domínio sobrenatural.

Estranho, se não mesmo incômodo e intolerável, é o tema das idéias ser pontuado de argumentos sem consistência ou informações enganosas, salvo se está usando do artifício da ironia. Isto decorre do caráter de crônica desse tema, o único de entre os listados a ter compromisso incancelável com a verdade, com a realidade. No caso de insistir-se no uso do termo ’realismo’ para classificar alguma das literaturas, talvez seja este o tipo que mais o merece.

Semelhantes ocorrências derivam de circunstâncias variadas, visto a vulgarização da ciência ser em geral atribuição de leigos, jornalistas mais ou menos especializados no tema, ou de cientistas que, se fluem nas linguagens usadas nos respectivos ramos da ciência em que investigam, de hábito articulam mal essas idéias na linguagem comum. Há exceções, é natural, mas em vista de sua raridade fazem história, caso como o de Asimov, que terminou por dedicar-se exclusivamente à literatura, deixando de lado a prática letiva da ciência.

Entretanto as imperfeições na divulgação da ciência, se não mesmo na própria ciência, se devem ao manejo canhestro dos conceitos. O problema começa já na filosofia, responsável, na estrutura acadêmica, pelo estudo destes. Passando ao largo das recentes publicações destinadas ao público em geral, algumas das quais de boa qualidade, freqüente-se por exemplo o repertório de ensaios de filosofia ditos profissionais para se ter uma idéia do que é não fazer idéia daquilo sobre que se discorre. Justiça feita às exceções, pode-se dizer que o fantástico se manifesta ali sob a forma do absurdo, quando não cede lugar ao irrelevante.

É natural também que se exercite diante de quaisquer textos, e não apenas nos deste último tipo, o viés crítico, o qual não passa do continuado cotejo com a experiência pessoal com vistas à estimativa do que ao leitor parece mais ou menos próximo ao que considera como realidade. Na literatura de divulgação científica isto é de importância particular na medida em que somos circundados por quantidade crescente de artefatos derivados do estudo metódico do mundo, e não apenas para termos idéia de como manejá-los, mas também para o fazermos com a devida cautela.

Um dos exemplos mais recentes da penetração das descobertas de físicos, químicos e biólogos no quotidiano é a idéia de que ’tudo é quântico’, embora boa parte de quem o afirme o faça sem qualquer idéia do que ’quântico’ vem a ser - e imagino que se o soubesse mencioná-lo-ia com maior parcimônia. Já se tornou senso comum explicar o mundo por meio do funcionamento ainda pouco compreendido do que vai no minucioso abismo hoje tido por cerne da matéria, atitude em nada censurável em vista do padrão universal de raciocínio do homem, que não encontrou ainda alternativa eficiente para a lógica causal.

Assim, se admitimos que, embora organismos estudados e descritos na biologia, somos constituídos de substâncias que, por sua vez, derivam das combinações de outras elementares, derivando o comportamento destas da mecânica da estrutura em seus cernes, ditos atômicos, e estes, por fim, funcionando tal e qual o prescrevem os invisíveis efeitos em dimensões ainda menores, chamadas as dos ’quarks’ e similares, ora, então não deve haver dúvida quanto a estar tudo determinado desde esse universo quântico. É natural que de muitos eventos se encontrem as causas em dimensões mais imediatamente observáveis, equivalentes ou mesmo maiores do que a dimensão em que esses eventos se dão. Mas mesmo estas terão sido causadas ou podem ter suas causas atribuídas a essa dimensão ínfima, talvez mais em virtude do hábito do pensamento de acreditar que do menor deriva todo o maior do que do fato de ser precisamente assim que a realidade é.

Dado o repertório de conceitos fundamentais - com os quais se torna possível todo e qualquer raciocinar - ser um e o mesmo para o leigo e para o experimentado cientista (embora utilizado por um e por outro de maneiras distintas), e desde que é a própria ciência a responsável primeira por esta recente ’moda quântica’, nada mais natural que se pense no cientista como o primeiro a estar seguro de ser ’tudo quântico’. Tal não me pareceu ser verdadeiro, entretanto, à leitura de um breve artigo sobre pesquisas interdisciplinares de biologia e física quântica: só agora esses pesquisadores começam a assegurar-se de que somos mesmo determinados pelas atividades inusitadas dum mundo percebido apenas nos sintomas de maquinaria que só outras máquinas são capazes de detectar.

Constatar tão tardia certeza por parte da ciência, já passados mais de cem anos da predição da mecânica quântica e mais de oitenta de efetivo aparecimento do seu estudo, causou-me o espanto de quem pilha a si no curso de uma indiscrição ou dos que de súbito se inteiram de a realidade ser inteiramente diversa do que sempre acreditaram. A sensação é comparável - e o digo sem temor de incorrer no menor exagero - á descoberta, em obras de outro gênero literário, do que tornou Bentinho num Dom Casmurro ou de que o amor de Riobaldo não era outro homem. Em que acreditava a ciência antes de certificar-se de que até mesmo o pensamento parece dever-se ao comportamento de quarks, múons e outras subpartículas? Será que, na contramão do que afirmou Laplace, a ciência mais recente ainda tinha Deus por hipótese de causa universal passível de investigação por meio de instrumental ainda tão tosco? Ou esperava ela dar com outro conjunto de eventos com maior grau de probabilidade de ter atribuído a si o status de causa primeira?

Afora o desfrute dessa emoção típica da apreciação de obras da literatura de qualquer tipo, há também aquelas resultantes das especulações privadas em torno à constatação. Em primeiro lugar a de a realidade - a que nos habituamos considerar como ordenada, como um cosmo, e a despeito de com constância experimentarmos eventos inclassificáveis - ter por lastro uma dimensão na qual as ocorrências têm de ser interpretadas, desde esta dimensão vivenciada por nós, como enigmáticas ou contrariadoras do senso comum. Desse viés o tempo parece mesmo operar exumações cíclicas de idéias, como a dos gregos antigos de ser o caos a semente do cosmos.

Até o pensamento, em cuja pressuposta ordem somos induzidos a apostar, se de fato organizado, o é por obra de força ou esforço ainda hoje desconhecidos. O artigo mencionado centra-se nas observações do comércio de substâncias no interior das células, de como tornou-se possível flagrar a formação de processos regulares a partir das operações dos quanta, das quais logramos estimar apenas a probabilidade. Começa a ter-se alguma idéia de como o que chamamos de acaso se configura no que cremos ser constância. Em seguida os depoimentos dos cientistas entrevistados migram para especulações na área do funcionamento mental, é claro, visto conhecer-se o papel das interações químicas na constituição de vários de nossos pensamentos, como as emoções, e inclusive os manipularmos com substâncias exógenas já faz algum tempo.

Aponto ao menos mais um dos sentimentos experimentados à leitura do artigo e já referido acima quando se ponderou o desconcerto que pode advir de uma consideração menos parcial do comezinho: não é à toa que a regularidade seja mais assombrosa do que o acaso, já que em aparência é filha deste e em aparência o contraria, embora no momento - e justo pelo mesmo motivo - pareça assombroso que tal nos possa assombrar. Pois começam enfim a ruir as barreiras separando caos e cosmos, coisa que nos é possível realizar desde há muito, já que de há muito estamos de posse dos instrumentos para o fazer (desde, pelo menos, os tempos dos antigos gregos). Além do mais não é de hoje que descobrimos, por exemplo, nossa incapacidade de exprimir com precisão a medida de algo tão prosaico como uma barra de metal, de dizer com a exatidão desejada o momento de ocorrer um fenômeno qualquer e, enfim, de fazer corresponderem as respostas invariáveis fornecidas pelos números e a inquietude das coisas. E pensar, enfim, parece ser tão-só um desejo, o esforço de constituir-se em algo que ele não é, o desejo de escapar da natureza caótica e tornar-se numa quimera que, em face do comportamento mutante de todo o universo, não se sabe o que o inspirou.

Rio, 15 de fevereiro de 2009

Waldemar M. Reis



domingo, fevereiro 08, 2009

Escatologia pós-bohemiana


... e naquele dia mesmo haveria Deus de estranhar alguns dos resultados da Criação. Mais O impressionou o modo de adaptar-se da cadeia alimentar, certas espécies de bichos habituando-se ao sabor da carne de outras.
Não provera Ele, ora, o enlace incontornável, oferecendo-lhes os frutos em troca do transporte das sementes que abrigam para que germinassem noutros lugares? Era preciso ir além? Passar às folhas? Degustar as flores?
A um animal apenas, pequeno e delicado, mas não indefeso, concedeu aproximar-se destas e, inclusive, de fartar-se com o seu pólen, desde que auxilia o vento a dispersá-lo sobre suas semelhantes. Eram agora devoradas, mal saíam de botão.
Decerto por se demorarem mais no estômago, as folhagens contentavam os gulosos, muitos sequer dignando-se a erguer o pescoço, consumindo aquelas rasteiras, que ali dispusera com o fito de suavizar-lhes o contato do passo com a pedra.
Generalizado, o hábito de servir-se de partes vitais de outros seres teria um só limite, o da ingestão de indivíduos por inteiro, e daí para a animalada toda olhar-se de través foi passo. Entretanto muitos, incontáveis, alegrava-Se de constatar, permaneciam irredutíveis, resignados a não tornar seu o alimento exclusivo da terra.
A rigor, tudo, absolutamente tudo sobre a terra servirá para alimentá-la, mesmo enquanto vivos, regalando-a com seus dejetos que legião de animálculos refinam até o estado puro da substância. A ela cabem inclusive os frutos, os esquecidos ou desprezados pelos bichos: são, por assim dizer, o alimento comum.
Mas somente a ela, a terra, são reservados os seres - a ela e ao quanto vive inumado em seu ventre - e somente depois de mortos. Antes disso têm por missão apenas viver, comprazer-se da condição de vivos, assim como Ele próprio, que não tem escolher.
Nisso, pensa, reside a semelhança, a imagem de Si dispersa por tudo quanto há: o imperativo de existir, de persistir, da vida. Pois inevitável é que deixe marca Sua no que cria, nada havendo a ser imitado, de princípio, senão Ele mesmo. Faça-se o diferente, foi o que pronunciou, mas eis que depara ser que, se distinto de Si, o era por meramente ocupar espaço diverso do Seu: o Outro.
Muito tempo se passaria até convencer-Se Deus de que, se Lhe era o Outro infinitamente semelhante, nada obstava serem igualmente numerosas suas diferenças: pouca oportunidade sobrava a Si e ao Companheiro de privarem, dada a faina interminável de criar.
Iniciada, a obra não teria termo, perduraria: com o Outro vem à luz o lugar onde estavam e a percepção recíproca; vem à luz, por conseguinte, a própria luz e com ela miríades de ocorrências derivadas que por vezes O fazem sentir-Se qual mero observador do modo de se encadearem, mero descobridor das conseqüências do ato único, este, sim, criativo de fato.
Assim teria de ser. Uma questão de... Vontade - foi atalhado. De vontade. Em que, do mundo, não perpassa Tua Vontade, Pai? Por isso, imitando-O, tudo cria ou assim o crê. A bem dizer, re-cria. Mas seja o que for, o faz por querê-lo. E por tal transgridem-se Tuas regras, se é que as há. Por teres multiplicado - diversificado - a Vontade, confinando-a em cada partícula de Tua Obra.
Com insondável humildade meneia a cabeleira e sorri. Também nisto diferiria do Outro: ao menos por ser mais antigo, por ser O Criador, mas certamente por Lhe importar pouco a questão. O que é Ele sem mais nada? Nada, é evidente. Nem Ele próprio. Eis o que foi até criar.
No entanto, foi Algo, Algo na iminência vertiginosa de nada ser. Algo na ubíqua contemplação de Sua quase nula unidade. Fremia, assim, precipitando-se no abismo sem chão e foi tremente que bramiu o ’Fiat’, do qual jamais se ouvirá o eco pois não existirá confim no qual venha refletir-se. Ainda hoje, passado tanto tempo, apura o ouvido para escutá-lo e admira-se de que tenha assumido diversidade assim de estados, de densidades, a ponto de simular a existência de modos distintos de perceber, como o ver e o tocar, o pressentir.
Já andava longe a aurora do sétimo dia e quando não atentava, era como se houvesse silêncio, como aquele quebrado com O Verbo. E então preferia dar a este ouvidos a ser aterrado pela lembrança anterior, mas quase não o reconhecia como o Seu próprio grito. Revisitava assim todo recanto da Obra em busca do motivo e, embora se encadeasse tudo tal e qual determinara em Seu comando único, singularidades, não menos conseqüentes, teimavam em insinuar-se nos interstícios.
Fizera o bom. Concebeu-o para durar todo o sempre. Com seu urro creu banir a dor e constituir uma trama da qual estivesse ela de todo ausente, um mundo de criação pura, onde todo e cada indivíduo permaneceria, com a condição de auxiliar os demais a permanecerem: daí a idéia de os frutos serem o alimento, não as sementes, não a folhagem, não os corpos. Mas mesmo isto, a subversão de Seus Desígnios Primordiais, parecia aninhar-se entre estes como se eles próprios foram.
Também isto o impressionou, digo mais, impressionou-o muito, muito mais do que os desvios mesmos: que O desgostasse, mas que fosse, por outro lado, capaz de compreendê-lo, de entendê-lo como um derivatório a mais do Seu próprio ato. E, ainda que não entendesse como o compreendia, pascentou-se com o Seu continuado descanso.
Entretanto, intranqüilo e muito breve foi o Seu sono. As vagas do ’Fiat’ chegavam-lhe agora muito desvirtuadas, tanto que despertou. Contemplando a diversidade, percebeu esparsos alvoroços. Aproximando o olhar, deu com cena inimaginável, mesmo por sua infinita capacidade de criar, já que os bichos, embora caçando-se reciprocamente, não mais o faziam como justificavam: para saciar a fome e por se-lhes terem tornado sápidas as carnes dos semelhantes.
O Bem, em nome do qual pronunciara o universo, pareceu-lhe por inteiro dissipado. Responsável por tal fora uma criatura nova, aparecida aquando de Seu breve Repouso Sabatino, criatura singular que, além de matar sem fome ter, dizia fazê-lo para aplacar carências outras, como o agravo e o tédio. Fosse tanto insuficiente, dizia-se ainda feita á imagem e semelhança d’Ele, Pai.
Sentiu Deus, então, desejo de rir, como se para distrair certa cólera que, qual a do princípio de tudo, insinuava apossar-se de Si. E foi assim, rindo, que Se voltou para o lado, ainda esboçando num murmúrio o comentario por fazer, quando Se deu conta de estar só. Só é força de expressão, pois rodeava-o tudo quanto criou. Mas não podia referi-lo sem provocar transtornos, um dos quais, chegara a imaginar, o de estimular a vanidade no interlocutor.
Por isso para a Criação reservara apenas os ouvidos. Escutava-a como música e como música a tolerava, compreendia e apreciava. Havendo de dizer, dirigir-se-ia ao Outro, de constituição robusta o bastante para suportar o vigor de Sua voz. Não O encontrou, entretanto. Não O encontrava, a bem da verdade se diga, desde o meio desse interminável Sabá, desde quando Se deu conta dos primeiros desvios do que criou.
Estendeu, então, uma vez mais o olhar para os confins do todo, certo de encontrá-Lo sem demora: foi preciso mais de uma vez ajustar suas lentes para o diminuto, depois para o gigantesco e assim sucessivamente, até admitir que o Outro se dissipara. Tempos estranhos os que se seguiam: os do infinito Sábado à noite.
Por primeira vez cedeu à própria censura: descansara demais enquanto algo na Criação operara o inesperado e indesejável. A Obra tomara rumos próprios e em aparência incontornáveis. Veja-se só, dizia então para Si, como agem essas diminutas e presunçosas criaturas: em seu delírio imaginam-se concebidos à Minha imagem, embora não saibam dizer como sou (naturalmente, pois jamais me viram!), e matam-se em Meu nome, matam-se por achar cada qual saber mais sobre Mim do que os demais. A isto chamam de desagravo.
Parte deles cria ser bom o Deus que supunha conhecer, sendo maus os deuses conhecidos pelos restantes. Mecanismo demasiado simplista, gracejou Ele. À parte má emprestavam imagens e, aproximando o olho, viu Deus nessas faces a Sua própria, mas pintavam-nas quase sempre de vermelho, bem como ao corpo, e lhes apunham chifres, por vezes serpentes e entre as pernas uma invariável cauda.
E O adoravam! Isto era de fato extraordinário: adorá-Lo. Não fora com esse fim que criara. Quisera apenas companhia, seres que apenas reverberassem a existência, atributo único ao qual devia o ’Fiat’ e a Vontade, que O mantinham a distância segura do nada. Descansara, inclusive, nesse sétimo dia, por confiar nas propriedades desse atributo, a principal delas a meta de alcançar ou produzir o bem. Por isso retirara-se.
Mais adiante ouviu-os remoerem suas dores, delas a maior, para Seu assombro, a ignorância: pelo menos possuem alguma ciência de si, refletiu, não são de todo parvos, portanto. Mas a referida ignorância era singular, visto excederem em desejo o conhecimento deles próprios e do suficiente para susterem suas vidas efêmeras. Sequer os satisfazia a presunção de conhecê-Lo, pois nisso criam-se doutores, cada qual com suas convicções dando cabo dos restantes.
Desejam verdadeiramente conhecer a Minha origem, observa e ri entre dentes na ausência do Outro, para quem o diria. Ora, se nem mesmo Eu posso com segurança - e alguma tranqüilidade - dizer donde vim... Donde teriam sacado idéia tão estapafúrdia? Escutou falarem de profetas, em cujos desvarios ouviram mensagens Suas ou dalgum incercessor Seu. O teor, obsessivamente amargo, girava em torno dessa ignorância singular e repetia-se era após era.
Muito O impressionara o quanto sabiam de Si. Natural era que O intuíssem, pois guardavam Sua própria essência, como tudo mais; mas que conhecessem detalhes tantos da Obra e do Criador, incluindo a presunção de Lhe suporem origem, ora, isto era definitivamente insustentável. Ao fim de tais considerações, lembrou-Se de um certo diálogo, entretido não fazia muito, ainda pela manhã, cujo tema foi Vontade e transgressão.
Soube assim que deveria voltar-se, de imediato e ainda que só dessa vez, para onde dera as costas desde o primeiro dia, aonde não queria nem deveria retornar, mas assim mesmo o fez, mesmo sob o risco de pôr a perder a Obra toda: a mera proximidade seria o bastante. Creu não haver perigo em enviar de Si apenas o olho, mas nada viu.
Restou-Lhe então ir até a borda e usar de toda a Sua força para não ser tragado pela voragem. E ali pressentiu, a distância prudente do abismo colossal constrangendo-se sem detença na direção de ponto ínfimo e inatingível afundando-se no nada, a presença de algo, diga-se, de algo criado, pois como que ouviu ressonância do ’Fiat’ embrenhando-se no remoinho. Tratava-se de sonoridade singular, a de corpo triturando-se misturada a lamúrias ou gemidos de prazer frívolo: Ele não soube precisar.
Num esforço titânico afastou-se com lentidão, não por tristeza, pois não Se permitia entristecer: por profundo assombro. Sustentáculo da Criação, a Vontade obedecia à sua própria natureza, proporcionando a cada existente a determinação de durar. Esta, por sua vez, deu ensejo aos seres de se valerem de não importa o quê para a cumprirem, transmutando Vontade em desejo. Tal desespero, por fim, fez-se em método, estratégias por cujo intermédio melhor se lograva a duração.
E de apenas ser, de apenas o desfrute da Criação, chegou-se ao conhecê-la como condição desse desfrute. Mas o que levara o Outro a lançar-se no vazio? Ser como Ele? Ora, isto nem mesmo Deus era capaz de responder. Pois era o Outro como Ele, era-Lhe infinitamente semelhante - embora infinitamente distinto também. Tal não Lhe bastara? Tinha de saber como iniciara, donde viera, quando nem Ele próprio o sabia? Caso o soubesse, é claro, tudo o saberia como de nascença tudo sabe de Si.
Então percebeu Deus que tais pensamentos mitigavam-Lhe o esforço de esquivar-Se do vórtice. Concentrou-Se por um instante e logo estava de volta ao Seu retiro. Considerou uma vez mais aqueles animais presunçosos e litigiosos, crias de Sua cria, era-Lhe evidente agora, e cogitou de emendá-los. Depois pareceu esquecê-los, estirando-Se de novo no catre, donde mirava boa parte do universo: se assim os fez a Vontade, pensou, a Vontade os refará.
Rio, 08 de fevereiro de 2009
Waldemar M. Reis



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