sexta-feira, agosto 05, 2011

O uso próprio de 'liberdade' segundo Epicteto

Uma provocação para Antonio Caetano

"É a liberdade algo além do poder de viver como escolhemos? "Nada além." Dizei-me, então, ó vós homens, quereis viver em erro? "Não queremos." Ninguém, então, que viva em erro é livre. Desejais viver no medo? Desejais viver em tristeza? Desejais viver em perturbação? "De modo algum." Ninguém, então, que esteja em estado de medo ou tristeza ou perturbação é livre; mas quem quer que esteja livre de tristezas e medos e perturbações estará ao mesmo tempo livre da servidão."
Epicteto - Discursos, Livro 2, Capítulo 1

Em certo sentido o filósofo é um dicionarista. Mas ao invés de apenas coligir as acepções de todo e qualquer termo em uso em determinado lugar e a um determinado tempo, ele parece restringir-se a uns tantos, que acredita atemporais e de domínio universal, procurando afinar-lhes e, em boa medida, corrigir-lhes o significado. Bom exemplo disso é termo 'liberdade'. No diálogo em epígrafe Epicteto é preciso em sua definição ordinária: 'o poder de escolher'. E nas três frases seguintes delineia o argumento que, levado às últimas conseqüências, conclui por em grande medida negar ou, ainda, limitar a definição inicial. Trata-se de argumento imbricado na fórmula aristotélica que iguala o conceito de 'causa final' ao de 'bem': se aceita, então não há escolha e, por conseguinte, ou não há liberdade, ou é impróprio o seu sentido ordinário. Epicteto se esquiva de concluir o argumento que iniciou. Por não tê-lo em conta? É incerto, em especial pelo fato de que em seguida o desenvolve ao ponto de apresentar o único objeto relativamente ao qual a acepção comum de 'liberdade' é aplicável.

Aristóteles não deixa dúvidas quando identifica 'causa final' com o 'bem' e só faz ressalvas quanto a utilizá-la na investigação da natureza: na esfera do humano sua aplicação seria inequívoca. Quer pôr de fora de sua teleologia natural a presunção de intenção consciente, cuidado admirável quando não fazia muito Thales via deuses no interior das coisas: no âmbito da natureza a 'causa final' seria inferida somente do que é repetidamente produzido e apresenta uma função. O olho, por exemplo, teria por 'causa final' o ver: pouco importa que seja criado com a intenção de proporcionar a visão ou que apenas se veja porque se o possui. Já um eclipse se explicaria suficientemente por intermédio da 'causa material' e da 'causa eficiente': não faria sentido encontrar-lhe 'causa final'. Ajunta também que, mesmo nesse contexto, o da natureza, a 'causa final' tem de ser algo bom. 'Bom', no caso, parece indicar precisamente a qualidade do que mostra ter alguma função, alguma utilidade, mesmo não se inferindo intenção de se produzir tal utilidade: ter uma função é bom.

Nos domínios da produção humana a inferência da 'causa final' segue uma linha semelhante, mas há um complicador quanto ao que constitui função ou bem por cuja influência algo aí se produz: a opinião diversa e por vezes inconciliável dos indivídos quanto a de fato ser ou não ser bom o que se produziu. E mais do que objetos quaisquer, obras de arte ou instrumentos, os atos parecem ser o tipo de produto mais numeroso causado pela intenção do homem. Aristóteles demonstra estar ciente desses aspectos por tão-só não apresentar restrições à fórmula da 'causa final' quando aplicada à compreensão da produção humana. Tacitamente assume ser o bem - ou algum bem - o que move a produção humana e ainda que esse produto seja avaliado como mau por muitos e mesmo todos os indivíduos - incluindo o que o produziu. É o caso, por exemplo, de obra cujo autor a repudia depois de rejeitada pelos apreciadores, de um medicamento que por qualquer motivo se revela nocivo após ser lançado no mercado, duma declaração de guerra da qual se arrepende quem a fez e, principalmente, caso do maníaco que incomoda ou mesmo lesa quem não lhe causou nenhum mal e do terrorista que se mata para matar outrem. Todas essas coisas e atos possuem em comum a intenção causadora, que para o perpetrador foi, pareceu de momento ou é de fato boa.

'O inferno está cheio de boas intenções': o ditado pode ser sinal de familiaridade do senso comum para com idéia que, simples embora, é adrede rejeitada por alguma filosofia, para dizer o mínimo. No entanto, não é exatamente de 'boas intenções' que se alimenta o mal, mas de ignorância. Soubessem de antemão, o autor, do efeito futuro que teria o seu trabalho no público - e em si próprio - e quem declarou guerra, que não a venceria, por certo não levariam a termo o que fizeram. Já o maníaco e o terrorista, embora não arrependidos de suas ações (suponha-se que mesmo na morte este último se mantenha inflexível), caso encontrassem, um, algo de diferente e que supusesse ser melhor para fazer, e o outro, um modo mais ameno e igualmente eficaz de externar seu protesto, creio não haver dúvida de que os escolheriam.

Isto se dá por não serem coisas e atos produtos interessantes em si mesmos, mas no quanto deles se infere de bom. Pois o bem, como é corrente, a rigor é um juízo - uma opinião, dissesse talvez Epicteto - afixado no quanto se produz desde que isto é ainda projeto. Como bem o demonstra o cuidado de Aristóteles ao considerar a inferência de 'causa final' de eventos da natureza, bem e mal são exclusivos da esfera humana, que os detecta por meio das sensações de prazer e desprazer. E são inúmeros os tipos de prazer e desprazer, cada qual correspondendo a determinados bens e males, tantos são que por vezes causam grande confusão, de que é exemplo o suicida: ora, estando a noção de bem entremeada nas estratégias de auto-preservação da vida, como pode a supressão, pelo sujeito, da sua própria ter por 'causa final' algo bom? É compreensível, entretanto, que circunstâncias adversas quaisquer possam torcer no sujeito até mesmo o cerne de sua representação do bem, quando o morrer, então, lhe parece perspectiva tolerável, mais do que a de estar vivo, pois crê que ao menos desse modo põe fim ao sofrimento.

É provável que considerações desse gênero tivesse Aristóteles no espírito quando afirmou ser indiferente se a 'causa final' é "um bem real ou só uma aparência do bem" (Metafísica, 5-2): talvez por ser para nós o 'bem real' algo como o norte é para o planeta e a 'aparência de bem' como a bússola que o suscita. Tão poderoso é o seu magnetismo sobre nós que chega a comprometer mesmo a sagrada idéia de escolha. Esta a conclusão a que chegaria Epicteto caso interrompesse o seu diálogo na quarta sentença e acrescentasse apenas mais uma: 'ora, se liberdade é poder de escolha e se jamais se escolhe errar ou, o que é o mesmo, jamais se escolhe o pior, o mal, como então é possivel ser-se livre preferindo-se sempre e exclusivamente um dos termos da alternativa?' Entretanto, ele a omite, é provável que por prudência. Afinal já desafiava o suficiente as preconcepções de sua assistência com o rigor do estoicismo para pôr em xeque assim de súbito idéia talvez a mais apreciada pelo gênero humano, causa que é do imprevisível quando ameaçada. Por outro lado, é possível também que por conhecer a fundo suas implicações - Epicteto foi escravo na Roma de Nero - tenha preferido conservar o significado comum do termo, embora corrigindo os excessos no seu uso. Além disso, ele sabia: na prática, ainda que nos convença a lógica rasteira do argumento, lidamos como se houvesse escolha, desavisados como somos de que a indecisão quanto ao que eleger não passa de efeito da ignorância, que nos embota a percepção instantânea da única possibilidade válida na circunstância. Por isso é paciente e prossegue fazendo o que lhe cabe para contornar ou dissipar a ignorância: ensina - da maneira, em aparência a melhor possível: questionando.

Assim ele procede expandindo o argumento que passa a centrar-se, em suma, na definição de 'erro', de início de maneira direta - é ausência de liberdade - e depois de forma enviesada, contemplando aquilo em que resulta, seus sintomas: medo, tristeza, perturbação. O final parece fugir à conclusão, embora ele retorne ao conceito inicial, de liberdade. Um amigo filósofo confessou-me uma vez seu constrangimento diante da conclusão nos silogismos, esforço evidentemente vão de esclarecer o que claro está desde a premissa. Ponderei dizendo-lhe que talvez fosse justo que assim se sentisse com os exemplares do silogismo escolar, criados com o fito de fazer ver o aprendiz o quanto da premissa interessa de fato para o conhecimento, mas não com os silogismos propostos na práxis, quase sempre apresentados sem a conclusão. Exatamente como procede Epicteto com o seu, a ser concluído por quem dele se inteirar.

Como se observou, apesar de não nos ter dito na quinta e supostamente omitida sentença, a liberdade já fora rechaçada: como a entendemos de ordinário, a liberdade se revela impossível. Então ele prossegue com o argumento do erro, estabelece sua relação com a liberdade e envereda por realçar seus sinais: sinais de que não se agiu como é devido, de que se deixou embotar pela ignorância, de que se realizou escolha - quando a rigor é instantânea para o instruído a percepção do melhor a fazer: e daí as mostras de arrependimento - medo, tristeza, perturbação - à guisa de confissão de culpa. É disso que não se é livre quando se está em erro, insinua Epicteto e o todo de sua doutrina o confirma insistentemente: de culpa e arrependimento. É deles que é mister se livrar. Mas não apenas. Livre é quem cumpriu com o devido, é quem, então, está livre do dever, único uso aceitável da acepção de liberdade. É verdade, e Epicteto e o estoicismo não nos enganam, trata-se de sensação transitória essa da liberdade, caso o sujeito tenha sorte, já que a realidade é pródiga em substituir um dever cumprido pelo chamado de um novo, quando não de nos propor diversos ao mesmo tempo e cujos cumprimentos nunca se alinham a um mesmo instante. Mas essa é a vida segundo os estóicos, restando a nós resignar-nos, jamais curvar-nos à servidão dos deveres não cumpridos e ao rol de infelicidades que acarretam.

Cadenza interrotta

Revisitar o estoicismo - coisa hoje em dia na esfera da obstinação, para mim - é recapitular ingratidão milenar dois de cujos atores significativos são cristianismo e Descartes. Descartes ao menos o aponta, imprecisamente, com vaga metonímia: "filósofos antigos". E dá a 'sua' versão de liberdade: desta feita graduada - como é usual proceder quando da mensuração de continua como quente-frio - e a cujo mais baixo grau estariam confinados os acometidos da incerteza (ou indiferença), estado - aliás - a que ele próprio se submete para gestar suas Meditações. A ascenção de nível do sujeito se dá quando pende para um dos lados do dilema: "seja porque... conheça evidentemente que o bom e o verdadeiro aí se encontrem, seja porque Deus assim disponha o interior do... pensamento(!?), tanto mais livremente" o escolherá e abraçará (Meditação Quarta). Também, como seus 'misteriosos', 'antigos' mentores, omite a conclusão: questão de escola, questão de estilo.

Rio, 13 de agosto de 2011

Waldemar Reis

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