quinta-feira, maio 31, 2012

Em defesa da propriedade

Ao contrário do que pode sugerir o título, estas notas não se propõem refutar Proudhon, mas tampouco endossá-lo. A rigor sua afirmação (« La propriété, c'est le vol ! »), categórica e universal, é de per si falsa, pois parece evidente existir objeto cuja propriedade não envolve roubo, como o corpo original de um indivíduo, relativamente a esse indivíduo mesmo: à primeira vista um truísmo, na prática o exemplo é, entretanto, tratado com reserva, a qual não põe sub suspeita a legalidade dessa apropriação, naturalmente, mas sua condição mesma de propriedade no sentido integral, assim como intuitivamente é entendida, ou seja, algo sobre que tem o proprietário inteiro poder. Em grande parte das circunstâncias o corpo é tratado como propriedade, como quando não se permite que outrem o viole sem se expor a sanções: isto, entretanto, se aplica também a quem o possui. Desse viés o corpo se assemelha ao dinheiro, ou seja, à moeda que, decerto por ser propriedade do Estado (ou conjunto dos cidadãos), não pode ser publicamente destruído, pertencendo a quem o porta somente o seu valor, o qual, por seu turno, é passível das mais variadas formas de dilapidação, a maior parte delas - convenhamos, de passagem - sem castigo previsto em lei. Corpo e moeda, portanto, parecem ser as únicas exceções à intuição do que seja possuir por inteiro alguma coisa: a norma concede aos seus proprietários - se assim se os pode chamar - o fructus e o usus, mas não o abusus. Diferem, é claro, em diversos outros aspectos, mas em particular, concernente a estas notas, em que a posse de uma pode ser fruto de roubo, enquanto a do o outro, não (é claro, por motivos óbvios desconsiderando-se aqui os recentes avanços da medicina e a ancestral prática da escravidão).

Em seu sentido literal, então, a fórmula proudhoniana não carece de contestação, por falseá-la a existência de pelo menos um exemplo, esse que lhe nega a universalidade: em condições normais, pelo menos, se de fato distinto do indivídiuo que o possui, o corpo não lhe pertence como resultado de roubo, isso bastando para invalidá-la (e é provável que não somente este exemplo o faça). Contextualizada, entretanto, como figura de retórica, é perfeita na emulação do repúdio às desigualdades na distribuição de bens no mundo, sentimento predominando - é provável - entre os quanto se sentem desfavorecidos nessa partilha. Como é notório, desnecessário também é endossá-la, sendo bastante para quem duvide do seu valor retórico pôr-se onde muitos foram a contragosto parar e, claro, desde que não o faça como renunciado: se de demonstração dificultosa em termos argumentativos, a validade retórica da afirmação de Proudhon parece evidenciar-se na experiência.

Creio não ser preciso professar alguém o socialismo para dar-se conta de semelhante desequilíbrio cujas vítimas em aparência não merecem o ser. Um cristão, por exemplo, parece o perceber em sua inteireza, agudeza, mas como em tese faz profissão de tolerar, quando muito se permite acudir os desfavorecidos, quando não a com eles compartilhar o prejuízo. Mas, como é possível perceber (e o primeiro parágrafo nestas notas dá uma pequena mostra do fato), definir o que seja propriedade é tarefa para cartapácios cujas conclusões oscilarão para sempre entre o imponderável e o incompreensível. Aliás, como boa parte - quiçá a totalidade - do quanto é passível de definição (se é que se entende o que seja definir, diga-se, "estabelecer limites" - como sentencia um dicionário - para as coisas).

Valha, por conseguinte, para estas notas a intuição vaga que se tem do possuir seja o que for, convicta o bastante, porém, para desencadear e justificar a maior parte dos atos - se não todos eles - na sociedade dos homens. O que importa aqui não é discutir conceitos, não exatamente, mas propor um levantamento, do qual não parece haver ainda notícia, ou melhor, supondo-se que de fato ele inexista, propõem-se estas notas desafiar os recenseadores desse gênero de dados a empreendê-lo, se possível com urgência. Trata-se de estabelecer o mais exatamente possível e em termos de trabalho e valor a elas associados a proporção entre propriedade e proteção da mesma. Em outros termos, trata-se de saber o quanto se despende em defesa da propriedade, distinguindo-se ao menos duas classes de riscos aos quais está sujeita: decorrentes do tempo (que, segundo o ditado, é pai e carrasco), e da alienação (ou transferência, apropriação) indébita.

A idéia de desafio parece adequada em vista do quanto se exige para sequer iniciar o empreendimento e que se enumera nas duas frases anteriores. Ao menos um critério a mais, distinto e mandatório, se ajunta aos anteriores: a delimitação dos dois domínios, o da propriedade e o do que a protege, visto em maioria - seriam todos? - os meios de proteção serem igualmente propriedades. Se outros critérios, diferentes, não se agregam à lista, haverá por certo uns quantos - de observação igualmente difícil - cuja decorrência desses poucos é pressuposta: por exemplo, tomando-se por muito provável e natural que os instrumentos de proteção sejam em maioria propriedades também, mostra-se procedente investigar a existência de proteções sem proprietário (que não pertençam sequer à coletividade) e, caso existam, a demonstração do seu papel nesse balanço; o modo de a defesa interferir no valor do que é defendido; o custo e a quantidade de cada tipo de proteção segundo as classes de ameaças à propriedade (decorrentes do tempo e da apropriação indébita); o custo das sanções às apropriações indébitas etc. É evidente que o maior peso nesse levantamento se dará à classe de instrumentos destinados a proteger contra a apropriação indébita e - é fundamental mencioná-lo - um seu primo-irmão, o dano intencional (o não intencional se alinharia àqueles decorrentes do tempo).

O tema, em sua simplicidade (e, é possível, em sua idiotice), evidencia-se nos detalhes mínimos do dia-a-dia, dos noticiosos às grades nos condomínios, no mundo digital. Atiça a curiosidade a percepção do volume e da relativa transitoriedade da proteção (pois perde o valor ao perder a função, tendo de substituir-se imediatamente). A impressão é a de que o balanço final nesse levantamento seja escandaloso, bem como ridículo, cômico, com o investimento em proteção - em especial contra roubos e estragos intencionais - superando em muito o valor da propriedade. Assim, se Proudhon e outros demonstraram - ao menos da perspectiva dos desfavorecidos na partilha de bens - a inaturalidade do direito construído à volta da propriedade (assim como viemos desejando-a enquanto comunidade), é provável que o estudo aqui proposto aponte - e não apenas daquele ponto de vista - para algo pior: sua inutilidade.

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