domingo, agosto 23, 2015

Escolhe-se entre possibilidades, não entre fatos, por ignorar-se o que é devido e só é possível ser livre de estorvo que, se dever é, tem de ser cumprido.

"Eu posso sempre escolher, mas devo estar ciente de que, se não escolher, assim mesmo estarei escolhendo."

Atribuída a Sartre, a frase parece ser 'falso paradoxo' ou 'falso truísmo' e pode ser trocada em miúdos mostrando-se que dentre as escolhas consideradas aparentemente omitiu-se ou esqueceu-se de mencionar ao menos uma, a opção de não escolher nenhuma das demais. Na verdade o sujeito saiu da circunstância - a de escolher ao menos uma dentre um conjunto de possbilidades - como nela entrou: não escolheu não escolher, mas apenas não escolheu e ponto.

Mesmo que se contasse entre as opções a possibilidade de recusar as demais, foi nessa condição de não ter escolhido (ainda) que ele permaneceu: não ter feito a escolha simplesmente não era uma possibilidade; era já a sua (do sujeito) circunstância. Parece que tanto faz dizer, em todos os casos, que 'diante das opções escolheu permanecer como estava' ou que 'não escolheu (mudar o modo como estava ou nenhuma das novas opções)', mas a segunda fórmula ('não escolheu') parece ser suficientemente informativa além de sucinta. Corolário viável do exposto: a escolha se dá frente a possibilidades, não frente ao que se dá em ato, o qual é possibilidade realizada - que resultou ou não de escolha.

Imagine-se agora um mate em três (meu exemplo preferido), configurado de modo que, exceto um, todos os demais movimentos possíveis redundam em empate ou derrota para quem faz o próximo lance. Diante dele, um inepto e um mestre enxadrista. Para o primeiro há de fato escolhas, uma vez que não sabe, por exemplo, o fundamental, isto é, que aquela configuração é mate em três, pelo que se supõe que continuará calculando qual a melhor peça para mover. Já o outro, para quem o desenho no tabuleiro é familiar, pergunte-se se há algum sentido em ele decidir-se por outra coisa senão desencadear o mate. É evidente que não e que assim ele não tem escolher. Claro, salvo se as condições daquele jogo ou do torneio impliquem alguma vantagem em ele buscar empate ou derrota. Mas aqui o ponto é outro: mostrar que na circunstância e observadas as condições normais duma partida de xadrez o mestre enxadrista não tem escolha, pois seria tolice considerar movimentos que lhe impedissem a vitória.

Conclusão inevitável: a circunstância da escolha é condição da ignorância. Para o sujeito que sabe, que conhece a circunstância como o mestre enxadrista diante dum mate em três, não há outros movimentos possíveis se o imperativo em questão é vencer o jogo, no caso do xadrez, ou agir segundo o certo, em qualquer caso. E se ter opções ou poder escolher é condição de liberdade, como pode ser livre quem não pode, porque não deve ou não faz sentido, escolher o que é errado, ou melhor, como pode ser livre quem não pode escolher senão o que sabe ser certo? É livre de fato?

Mas se agir pelo que é certo (evitando dizer 'escolher o certo', expressão que parece não fazer sentido) é dever, uma vez que não existe escolha, se espaço há para a ideia de liberdade nesse equacionamento esse seria talvez o do dever cumprido. Mas livrar-se de dever com cumpri-lo é fórmula demasiado carregada de censura dirigida ao dever: a ideia de um dever de que se quer ver-se livre conota que seu cumprimento é estorvo para o sujeito que o cumpre ou para outrem que o reconhece enquanto tal, enquanto dever, e nada obstante lhe sofre as consequências. Isto não implica, entretanto, que todo dever o seja, pelo que tê-lo cumprido ou ter experimentado suas consequências não acarreta ter-se livrado dele. Há deveres bons de cumprir, portanto. Mas seja ou não estorvador, o dever é sempre justo, em princípio porque única possibilidade válida (ou, ainda, por não ser escolha). Assim que só para uma classe de deveres a ideia de liberdade parece ter sentido, a classe dos que de algum modo desagradam, são julgados como maus - ou não bons - por seja quem for, e por isto é sempre bom tê-los cumpridos, é sempre bom livrar-se deles. É possível também que não se os cumpra, mas, como se disse quanto ao 'falso paradoxo' ou 'falso truísmo' acima, não parece igualmente fazer sentido afirmar que não se os escolheu ou que se escolheu não cumpri-los, uma vez ser esta a condição em que se está (a condição de não tê-lo cumprido ainda) quando se depara com o dever: mais fácil é, ao menos, além de perfeitamente clara, a afirmação de que se não os cumpriu.

domingo, agosto 09, 2015

Justo a ficção...

... parece ser por excelência o terreno onde busca recompor-se quando se acha violado o sentimento de justiça. Talvez não seja exagero dizer que é o único.

É nela em que podem parecer justos ou explicados os casos da vida para os quais não se vê sentido. E não é à toa também que ali se criam por hipótese, mas como se teses fossem, condições de outro modo intangíveis, fatos perdidos na realidade cujos aparecimentos, mesmo ficcionais, explicam ou justificam o indecifrável. Não que muitas fantasias não façam o jogo inverso, o de por mais sombra onde sombras já havia, ou o jogo comezinho a que, por vivermos, estamos já habituados, o jogo de seja admitir ignorância, seja de produzi-la, ou arrolando o que falsamente introduz mais incompreensão do que se quer compreendido, ou ocultando, menoscabando o quanto pode trazer ao tema alguma luz.

Sim, a ficção pode a injustiça (na verdade pode tudo, virtualmente qualquer coisa), o que não acarreta a negação de ser esforço de - mesmo em fantasia - ter contato com o justo. É que não raro o real indigna e a indignação por vezes só encontra expressar-se em argumentos contraditórios, um modo de protesto, possivelmente.

sábado, agosto 01, 2015

Depois de comentarem Chomsky

Um comentário a uma entrevista com Chomsky sobre Anarquismo e 'Libertarismo' alega que esse filósofo não faz jus em suas explicações ao que o 'Libertarismo' com efeito é ou pretende ser, isto é, uma corrente convencida da verdade de uma ilação antiga da economia, segundo a qual o mercado promove justiça, equidade, se deixado 'livre', ao sabor de suas leis. Libertários advogam, quando moderados, o Estado mínimo e, quando radicais, algo que se chamou Anarco-capitalismo.

Diante do fato de uma escorchante desigualdade ter sido o que resultou de toda liberdade desfrutada pelo mercado (que para o libertário ainda é pífia, uma vez que há impostos e  outras regulações) ao menos nesses derradeiros duzentos anos, salta aos olhos a ideia de 'competitividade' ou de 'competição', tida nessa linha de pensamento por condição incontornável da natureza (a humana, inclusive). Quanto a isto cabem ao menos duas considerações:

a) sendo a condição gregária um modo de afastar da grei ou lhe amenizar a competição que não lhe interessa, mantendo, é claro, outras que lhe parecem úteis, interessa saber qual tipo de competição é tolerável no caso do ser 'racional' humano, digo, qual é o gênero de competição que não esgarça ou rompe o tecido social;

b) é mesmo possível que o conceito 'competição' não seja o que há de espúrio no credo libertário, mas sim o tipo escolhido de competição a ser tolerado pela sociedade, uma vez que se o objetivo fosse competirmos por uma 'absoluta' igualdade dos indivíduos, por exemplo, o elemento desagregador suposto ser inerente ou implícito à ideia de competição, ao que parece, desapareceria.

Mas dessa escolha têm-se mantido à distância mercado e seus defensores (que acreditam, inclusive, numa demonstração impossível do conceito de 'liberdade').

A ideia de igualdade é claramente metafórica nesse contexto. Mesmo em termos orgânicos os indivíduos somos somente muito parecidos uns com os outros. As necessidades do organismo, em princípio o motor ou a causa de todas as demais necessidades pensáveis do indivíduo são entretanto refreáveis pela cabeça, daí o recurso eterno à educação, ao exercício continuado do pensamento. Por isso 'igualar' tem função exclusiva de meta da qual parece ser possível somente aproximar-se, talvez jamais tocá-la.

Mas é diferente do sentido usado em 'liberdade', conceito tido por 'a priori' da condição do indivíduo, ou seja, seríamos por natureza 'livres'. Teórica ou praticamente isso é um contrassenso ou uma impossibilidade: em prol da economia de palavras, tome-se apenas a questão prática para dizer que tal liberdade jamais foi observada, uma vez que os indivíduos estão, sim, atados às circunstâncias, das quais também são partes desde os eventos naturais até as ocorrências sociais e por aí vai; a única liberdade observável - e por isso teoricamente descritível (ou teorizável) - é a liberdade 'a posteriori', digo, é-se atado, aprisionado por condição, por natureza, e o que move o indivíduo é justo o livrar-se dessas amarras, ainda que sempre haja outras incontáveis adiante, por mais que tenha sucesso em desvencilhar-se de quaisquer delas.

Isto é vital para a compreensão do nosso mundo gregário, que a despeito de ainda levar a extremos a opressão (ou escravidão - tirando as peias da língua - mal disfarçada), acredita ter cunhado um conceito com que divertir as massas (e inadvertí-las), do qual se tira, como se de cartola, a questão dos 'direitos': temos direitos enquanto condição originária, direitos natos. Na realidade, teórica e praticamente, temos talvez um único direito de nascença (que talvez seja mesmo uma compulsão, um instinto), o de passar a vida livrando-nos dos obstáculos tendo por paradigma uma concepção de liberdade de que, por sua vez, nem sequer é possível aproximar-se (digo, o caso contrário da noção de igualdade): a cada obstáculo vencido a realidade é exata em apresentar não um outro para substituí-lo, mas centenas de outros, sem falar nos não superados e já coexistindo com aquele que por acaso se deixou para trás. Desse viés a condenação dada a Sísifo é análoga à que se deu ao franco-atirador em 'O Fantasma da Liberdade' (de Buñuel): a liberdade, ou seja, a vida como ela é, em princípio indiferenciável de uma pena de encarceramento ou de um rolar ladeira acima um fardo que eternamente rola para baixo depois de se o ter levado ao topo, ainda que alguma vez não o aparente - quiçá por sermos muito esperançosos ou ingênuos.

Enfim, vista deste viés a ideia de liberdade entranha-se na de 'responsabilidade', pois se é de partida responsável pelo instinto ou compulsão de superar obstáculos e além disso tem-se de ser responsável por não obstar a tentativa de superação alheia dos seus, pois isso termina por redundar em obstáculos adicionais para todos. Essa é em linhas gerais a 'equação da vida', nada simples, como é fácil de constatar em simplesmente continuar-se vivendo, mas é o que decorre de por o conceito de liberdade nos devidos trilhos, o que decorre de tomá-lo pelo que em fato é e em teoria é possível: conceito 'a posteriori'.

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