sábado, setembro 05, 2015

Pelo religamento com o mundo - reinstanciando Feuerbach

A etimologia antiga, descontadas as divergências, é unânime quanto ao sentido de religião, o de 'reunião', que tanto pode referir o agrupamento de fiéis quanto a ligação destes com os objetos de suas fés. O termo sugere, portanto, a recorrência da união ou ligação, de que se deduz que a ocorrência primeira ou anterior de ligação ou união se tinha desfeito.

O sentido de reunir com a divindade não é precisamente o mesmo de reunir para cultuar um deus. Entretanto os dois partilham, em princípio, ao menos a possibilidade circunstancial de em ambos a ação de um intercessor não ser essencial, pois é igualmente factível que indivíduos voltem a reunir-se com ou para o divino por conta própria ou estimulados por outro indivíduo. O modus operandi religioso comum, nesse caso, é eloquente em admitir a intercessão como  estopim para o religamento, seja qual for a natureza deste, fugindo exclusivamente à regra, ao que parece, o movimento dos tremedores, mais conhecidos por quakers, que no entanto admitem possuir um celebrante, único e onipresente nos ritos, ainda que somente descrito e biografado no Novo Testamento.

Assim o sentido clássico assumido nesse livro - o de pastor à frente do rebanho cuidando para não se desgarrarem as ovelhas e não descuidando de incorporar a ele uma ou outra que por acaso encontre vagando solitária - é preciso. A intercessão se dá por o grupo concordar tanto em que os seus indivíduos são incapazes de por si inteirar-se dos desígnios do divino quanto em que o intercessor de fato se comunica privilegiadamente com o além. E se a intervenção é autorizada, outorgada, isto se dá por se ter provado sua eficácia, a qual naturalmente deriva da verificação de fatos tidos por irreprodutíveis ou 'incausáveis' pelo comum nas assembléias, sendo por tal classificados em meio às taumaturgias.

A taumaturgia é ideia imbuída de extremos, um dos mais acentuados o da assumida ignorância incontornável de quem reconhece milagre no que outrem produziu. Em grande medida a religião não está só quanto a este aspecto, tendo ao seu lado a dupla ciência e tecnologia. Em vista do que têm proposto estas duas, mesmo o indivíduo com formação intelectual mediana não é capaz de esquivar-se de ao menos tratá-las como se milagres operassem, não sendo difícil deduzir disso o modo de encará-las dos de formação inferior.

Premida mesmo por essas duas inevitáveis companhias, cujo apelo se faz exclusiva ou mormente aos cinco sentidos para os desprovidos do intelecto bastante para compreendê-las, a taumaturgia propriamente dita, em seu habitat, religioso, busca apelar para o emocional, uma vez obstruídas também todas as vias para compreendê-la pela razão, assessorando-se de morais específicas, bastante distintas umas das outras, mas comungando exclusivamente, como lhes dita o nome comum, no serem hábitos, atitudes, que se reproduzem sem que se os questionem, pelo que tendem a manter-se a distâncias consideráveis de princípios tidos por universais reunidos no que se convencionou chamar de ética.

Religiões são por natureza morais, não necessariamente éticas. Podem ser tidas por éticas enquanto suas assertivas não são postas sub judice, embora tendam a conservá-las intactas, desse modo deixando para a ética a tarefa para que adrede se fazem incompetentes. Eventualmente até apressam o passo, chegando a dar as mãos à outra, quando não é raro ocorrerem protestos acentuados e mesmo cisões, como é em parte o que se testemunha ao redor de posturas como a de Francisco, o Papa, e mesmo de uns outros poucos intercessores, até mais moderados, de denominações religiosas diversas.

A ética tem dupla desvantagem para os afeitos ao exercício exclusivo do emocional: requer algum preparo intelectual e não provê propriamente milagres, senão depois de muito trabalho e ainda que por inteiro ao alcance de qualquer um. Em geral é perfeitamente dedutível da análise de situações corriqueiras, embora só a compreenda quem tende à rigorosa honestidade para consigo próprio, honestidade beirando não raro a crueldade. Não pode, portanto, ser absorvida por quem, não tendo escolha - como qualquer outro - senão admitir-se mortal, procura consolo num pecúlio moral que lhe garanta ao menos descanso eterno, a mais segura das distâncias do que se cogita ser a danação.

O movimento da religião para a ética pode sem exagero ser tomado por salto sobre abismo pois é exigido do sujeito que momentanemente, ao menos, esqueça de si, do terror próprio do depois, quando quiçá nada mais será (e nada ou ninguém o garante em contrário exceto os intercessores que o ligam ou religam com o quanto é incapaz de ver por si). Saltar da religião para a ética acarreta dispor-se a considerar ou reconsiderar o mundo, mas não como entrave à espiritualidade ou como certame para gozá-la em maior grau depois de tê-lo vencido. Pois a ética, muito ao contrário do que acreditam espíritos ainda penetrados do religioso em demasia, tem por guia o sentido para o bom, como diz o estóico Epicteto, sentido que se materializa no prazer, sensação com que chegamos ao mundo equipados e aqui jamais nos fartamos de acurá-la. A ética tem sido a única maneira de honrar o desfrute dessa sensação, nada obstante as diferenças havidas entre os sujeitos, diferenças cuja razão se funda tão-só na observação singela de não ocuparmos todos em simultaneidade o mesmo ponto no espaço.

Tendo uma vez pousado na ética, tendo firmado aí os pés, não será de admirar que o indivíduo antes religioso tenda a desvestir-se deste passado, sendo entretanto muito comum quem aceite carregá-lo qual fardo que com o tempo, caso se persista no caminho, vai deixando para trás o que de danoso e inessencial tem, assumindo o sujeito a leveza do agnóstico quanto ao que será de si quando não mais for o que então é. Ao escolher a ética como via depois de ter seguido a religião o sujeito opera, no sentido inverso do que seguia, religação igualmente, mas desta feita com o mundo ele mesmo, com o sensível, mais afinada, inclusive, com um pressuposto compartilhado por quase todas as religiões, que é o de ser boa a divindade, pelo que não terá ela criado senão o bom, isso com que está afinado também o sentido maior nosso, suas criaturas sencientes.

Acreditar no contrário é viver paradoxo, caso não se possua a franqueza que tiveram para assumi-lo os kamchdalos (segundo os menciona Feuerbach em suas Preleções sobre A Essência da Religião), franqueza por suposto única em toda a história da humanidade: fiéis à concepção religiosa de mundo como entrave por excelência, não propriamente entrave ao espiritual, pintaram os kamchadalos Kutka, seu deus, como estúpido à guisa de única explicação plausível para serem dados à luz em meio a montanhas inexpugnáveis, invernos intoleráveis, a despeito de mês ou pouco mais de tempo ameno, como a dizerem-se, sem rodeios, mais inteligentes que o próprio criador e nas entrelinhas lhe votarem, inclusive, compaixão. Desse modo instanciavam (ao lado do sentido de bem e sua sensação, a de prazer) outro pilar da ética mesma, ou seja, a certeza de que o mal, sendo em essência juízo, se provocado por outrem e ainda que intencionalmente, é sempre sintoma de erro, sendo errar impossivel para quem é suposto saber, conhecer tudo. Em miúdos, para a ética e os religiosos do Kamchaka, bem como para uns bons cristãos, o mal é fruto invariável da ignorância.

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