segunda-feira, outubro 31, 2016

Pontas de virtude

a Imna

Em cinco pontos uma parábola dá lição breve de ética valendo-se de um lápis. Como ele, então, a) não seríamos autônomos, mas guiados por uma mão - no caso, a de Deus, evidentemente; b) precisamos ser eventualmente 'apontados' para funcionar a contento, ainda que com isso ocorra desgaste; c) o que 'escrevemos' - ou, segundo o proposto em a), seria o que se 'escreve' conosco? - deve ser passivel de rasura, não havendo mal em emendar o erro; d) somos o conteúdo, não o que o envolve: e) tenderíamos a vincar o lugar por que passamos, deixamos marcas, sendo preciso cuidar para que sejam as melhores.

De saída o ponto a) contradiz c) e e): um lápis não é de fato responsável por nada que se faça dele ou com ele. Mas a contradição na metáfora ilustra as dificuldades que surgem ao se propor o problema da origem - ou da Criação - como obra em progresso, sugerido na imagem da mão e sua ascendência absoluta sobre o lápis e o que com ele se produz. Desse viés Deus estaria perpetuamente criando, inclusive por intermédio do que já criou: a ideia de onipotência divina sofre aqui um revés com a sugestão de eventualmente necessitar Deus de intermediários - de se valer de instrumentos - para o que cria, caso não se justifique que o faria por puro desfrute, ou seja, apenas porque pode. Não deixa de ser também uma eloquente defesa do homem pelos incertos resultando de tudo quanto inventa e faz, como a tecnologia e seus reveses.

Os pontos c) e e) trazem outra evidente crítica, desta feita no que tange a como concebemos Deus quanto ao atributo 'perfeição', por certo o mais importante: ainda que guiados pela mão divina, erros são produzidos. Dessa perspectiva Deus é mostrado como, a despeito de imperfeito, moderadamente cauto, tendo-nos feito como o lápis, cujos riscos podem ser apagados, embora não os vincos que obrigatoriamente deixaria.

Mas justo por estarem em contradição com o ponto a), c) e e) podem ser entendidos independentemente ou à revelia dele: assim aparecemos como aqueles a quem - por 'escreverem' como os lápis - é dada a chance do emendar os próprios erros e a quem se recomenda o cuidado com o que mais dura do tanto que produziu, que são as marcas ou os vincos deixados nos lugares por que passamos. À diferença da ideia do risco, a do vinco o sugere como resultado não intencional, embora inevitável, da escrita, o que a experiência com os lápis contraria, uma vez que também há vincos intencionais, assim como é possível com algum empenho não vincar ao escrever com eles. De modo que, do ponto de vista do sujeito em pleno gozo de sua volição (ou não guiado por mão divina), a recomendação de cuidado para com as marcas que deixa pode referir também a passagem incólume do sujeito pela existência, se assim desejar e lograr, deixando de si o mínimo ou mesmo nada.

b) e d) tratam do que se dira estrutural ou essencial da existência do indivíduo, em contraste com o que ele produz, objeto de c) e e), correspondendo a uma visão mais realista, ainda que pouco  auspiciosa da vida. O corpo é o involucro de madeira e a alma, o grafite, enquanto a ponta seria a parte da alma em contato direto com o mundo, que nele atua, modiicando-o ao produzir coisas. Entretanto ocorre de o uso desgastar a ponta, tornando imperfeito o que produz: a solução é então afilá-la, procedimento necssário à boa qualidade do produzido, mas danoso para o lápis como um todo, reduzindo progressivamente seu tamanho até a inutilidade, quando então manuseá-lo será penoso ou impossível.

A metáfora parece bem apanhada, exceto por um ponto crucial: se por motivo central a parábola tem o estimulo à realização de obras virtuosas e se estas se fazem por intermédio da parte atuante da alma quando - e somente quando - está em condições de o fazer, então tanto o uso da virtude quanto o seu aprefeiçoamento seriam as causas ou, no mínimo, estariam na raiz da degradação física do indivíduo, conclusão que, apesar de um tanto inesperada, nada tem de absurdo. Visto desse viés o ponto não faz da virtude prática convidaditva.

Com efeito parece não haver objeção eficiente à constatação de ser, sim, no esforço de corresponder às demandas do mundo que aos poucos o indivíduo se desgasta. E esse esforço pode ser dito, em tese, como o emprego de alguma virtude, como ação virtuosa, não de necessidade uma do tipo que a parábola quis referir, isto porque mesmo o ato egoístico - ou malévolo no pior dos sentidos - contém lá sua virtude, em particular se resulta, se é eficiente. Mas seja qual for o caso, em verdade o uso da virtude seria no mínimo duplamente danoso, por depender ela de ser exercitada - ou esmerilhada como a ponta do lápis - antes de usada com sucesso.

Quando criança e, claro, sem a minima ideia de décadas à frente vir a tomar conhecimento assim tardio da parábola do lápis, intrigavam-me ou afligiam-me em certos estojos, em geral de meninas, alguns exemplares colecionados de lápis reduzidos ao que se poderia chamar, em termos de suas dimensões, de inteira miséria, embora apresentassem as pontas notavelmente bem feitas. Uma ou outra de suas donas, como se querendo justificar tê-los guardados, de quando em vez se exibia com um desses coitados em exercícios de caligrafia, a despeito do esforço exigido para o feito.

Lembrar deles agora, depois de inteirado de sua metafórica ontologia, é acordar uma certa tristeza, a de entender que aquelas virtuosas pontas foram as últimas na sua condição de lápis, que refazê-las depois de gastas seria extirpar o que resta da madeira ao redor do grafite. Talvez não fosse à toa, por exibicionismo tolo, que os usassem até o final aquelas meninas, mas por espécie de caridade que os tirava do esquecimento naqueles depósitos diminutos, livrando-os da tragégia de por tempo indeterminado serem virtuosos apenas em potência. Como é de imaginar, havia também uns suportes em plástico com o comprimento normal dos lápis, em que eram encaixados os cotocos, exceto aqueles ínfimos, cujas donas, parecendo adivinhar o que representavam, os tomavam então com as pontas dos dedos e, sem fazer caso do transtorno, caprichavam na letra.

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