sábado, dezembro 03, 2016

Ao ler, 'cante' para entender.

Certa musicologia tem prazer particular em tratar da 'retórica da música'. A intenção evidente é cercar por mais este lado a descrição de uma impressão persistente do ouvinte de música, a de que se veicula nela uma mensagem, como sugere Schopenhauer: "A música é um exercício de metafísica que se ignora, durante o qual o espírito não sabe que filosofa."

Definir ou descrever seja o que for, atividade inevitável e corriqueira que não é preciso ser-se filósofo, cientista, lexicógrafo ou enciclopedista para realizar, é uma das grandes armadilhas do pensamento: acreditando que se fala em determinado objeto ou fato, fala-se na verdade no que se relaciona a ele, o que em teoria seria rigorosamente tudo mais, verdade assombrosa, embora contornável pela escolha do que se estima ter relação mais estreita ou direta com o que se descreve ou define. (Ao falar-se de uma cadeira, por exemplo, tem-se subconsciente e automaticamente em consideração seus mais imediatos constituintes e cujos nomes ou definições, por sua vez, referem 'coisas' ou ações mais distantes dela, como 'pernas', 'braços', 'encosto', 'assento', o material de que é feita, onde ela está, e sem os quais sua noção como um todo não faria sentido. Mais distantes do universo privado da cadeira - e por isso menos considerados em sua definição corriqueira, mas nem por isso livres de serem invocados se necessário - estão o endereço onde a puseram, sua posição relativa a outros objetos, numa lista interminável que, a depender do uso que na linguagem se faz dela, pode incluir sua constituição atômica e as estrelas mais distantes.)

Justo e natural, assim, que se aproxime a língua falada da música, ou seja, que se descreva uma por intermédio da outra, porque afinal, na prática, mais do que próximas, são indistinguíveis, não fosse havermos estabelecido correspondência entre isto que se canta ao falar e as ideias de coisas quaisquer, o significado - o qual inclui até o que é falado, ou seja, palavras e frases (como quando se diz "o termo 'tal'", "a frase anterior", por exemplo). Revogue-se essa correspontdência, isto é, retire-se da fala a espessura semântica que lhe apusemos e eis que resta somente o som de vogais e consoantes percorrendo de agudo a grave a extensão da voz em ritmos e andamentos diversos: pura música.

O emprego do termo 'retórica' em música parece à primeira vista hiperbólico, presumiria demais, como por exemplo a presença de espessura semântica amplamente compartilhada por quem a usa, análoga à da linguagem falada. Há, de fato, algum significado imposto à música, semelhante ao da fala, mas é relativamente insignificante se comparado a este, em particular quanto à sua porção não especializada, não técnica, como o que refere ritmos (samba, fado), estilos (sertanejo, clássico), certas formas (rondó, prelúdio, sinfonia) etc. O vocabulário técnico não é muito maior, e além disso não se trata tanto de uma autêntica espessura semântica semellhante à da linguagem falada quanto de um estratagema da língua para referir certas configurações musicais (compasso binário, cambiata, retardo, meio-cadência e incontáveis outros).

Quanto aos termos empregados para exprimir o que se sente ao ouvir música, até podem constituir volume considerável e haver algum consenso a seu respeito, mas as controvérsias que acarreta compreendê-los como expressões de uma retórica da música já desestimularam a teoria há uns dois milhares e meio de anos, quando em definitivo Aristoxeno pôs de lado as 'musicologias' platônica e aristotólica, pensadas sobre um presumido etos da músca, ou seja, sobre os sentimentos que por suposto ela sugere. A rigor, como se percebe, antes de constituírem alguma espessura semântica da música, são os diversos aspectos da música, inclusive os semânticos, que constituem a espessura semântica desses termos: para o ouvinte a música com efeito evoca ou pode evocar significados oriundos de outras fontes, em particular da língua).

A 'retórica' a que a musicologia refere, de fato denotada em termos de imagens, sentimentos e sensações nem sempre consensuais do ouvir música, é algo intrínseco ao que Aristoxemo se propôs a investigar: o próprio código musical, como ele se organiza segundo exclusivamente os paradigmas ou propriedades que se admite ter o som - duração, altura, intensidade e timbre - e nesse sentido inaugurou a hoje chamada musicologia sistemática. Desse viés e se de fato pertinente falar-se numa 'retórica da música', seria como - dizendo-o de um modo não menos retórico - o diálogo estabelecido entre quem a cria e as propriedades gerais do som acrescidas da que caracteriza o chamado som musical e ignorada em teoria ao tempo de Aristoxeno.

Os sons resultantes são uma parte um tanto nebulosa da teoria acústica, em princípio associados à constituição do timbre e certamente presentes em todo e qualquer evento sonoro, embora não como se apresentam no som musical, em que sua disposição peculiar é evidenciada. A uma análise precipitada o som musical pode parecer mais do que indício do idealismo platônico relativo às formas geométricas, por ser usualmente produzido por instrumentos cujas estruturas se aproximam das mais simples dessas formas, como 'cilindros' (os tubos), 'retas' (as cordas), 'segmentos de plano' (plaquetas e superfícies regulares percutidas) etc. E os sons que produzem, com o deslocamento de moléculas que lhes estão próximo, podem ser descritos como espécie de reprodução ou propagação dessas formas no entorno.

Nesse contexto, o das formas geométricas simples, o som produzido a partir delas parece também desafiar a compreensão comezinha do que seja matéria: as cordas, com que de hábito o fenômeno é demonstrado, apresentam padrôes vibratórios superpostos, se assim é possível referir o fenômeno, em que vibram simultânea e 'independentemente' tanto a corda por inteiro quanto cada uma de suas divisões segundo a série de números inteiros positivos. A resultante, ou série harmônica, é aglomerado de sons, em teoria infinito, dispostos segundo proporções (isto é, numericamente exprimíveis) relativamente às quais se estruturam as escalas e os acordes no fazer da música.

Os harmônicos são na realidade o principal interlocutor do criador de música, enquanto as demais quatro propriedades - duração, altura, intensidade e timbre - seriam como os padrões organizando a língua por cujo intermédio o compositor e harmônicos se comunicam. O diálogo, em si, não se distingue muito dos que travam dois sujeitos quaisquer, girando ao redor de endossos e contestações recíprocas do que se argumenta ou propõe, ao longo do que prevalece, em termos mais tradicionais, a estrutura básica dos harmônicos, paradigma que mormente a música erudita do século XX se empenhou em subverter.

Isto não significa dizer que não se faz música senão com som musical, mas sim que as feitas exclusivamente com outros sons tendem a consistir em diálogo distinto, porque o aglomerado de sons resultantes não permite que se evidenciem, como no som musical, aquelas proporções representadas pela série numérica de inteiros positivos: usando outra vez de uma figuração por assim dizer 'retórica', haveria como que monólogo, antes que diálogo, do criador frente aos sons ditos 'não musicais', presumivelmente devido à quase impenetrável complexidade dos aglomerados dos sons resultantes, pelo que prevalece o emprego como que livre das quatro propriedades restantes do som - duração, altura, intensidade e timbre. (E é provável ser este o motivo de John Cage, ícone da música erudita do século passado, ter afirmado que a percussão, em especial essa utilizando materiais não produtores de som musical, seria essencial na transição da música tradicional para a música do futuro.)

Em ambos os casos, em que se utiliza e em que não se utiliza o som musical, a habilidade humana tem produzido trabalhos contendo invariavelmente o que se vem exprimindo com 'retórica'. E tal não redunda em pouca coisa. Organizar sons sem presumida espessura semântica - no caso, a arbitrariamente atribuída, como se dá com as palavras - acarreta produzir com o encadeamento diversificado deles o significado que, a princípio tido por simples, é poderoso o suficiente para orientar o ouvinte ao longo de ´périplos' invisíveis, oferecidos exclusivamente à audição. Objetos como início, meio e fim, por exemplo, referentes não só a uma peça de música como um todo, mas a cada uma de suas partes, além de tensão e distensão, encontram-se entre os básicos nessa semântica e com os quais são construídos outros, comuns ou não a obras e estilos.

Enfim, o discurso musical eficiente é aquele em que se foi capaz de produzir a orientação bastante para nele o ouvinte encontrar certo sentido. É verdade que podemos definir o pensamento - e decerto não somente o nosso, humano - como autêntico farejador de sentidos em tudo no mundo: somos capazes de ouvir música nos sons dos pássaros e, entre incontáveis circunstâncias mais, em gotas caindo sobre superfície d'água, embora seja também verdade que sabemos distinguir entre essas e a música produzida por outro humano - se assim este o quis, é evidente.

De volta ao discurso das palavras, percebe-se agora que enquanto som elas já são o que se chamaria de discurso, já produzem ou oferecem o suficiente para com elas se elaborarem múltiplos sentidos, sentidos que por certo interferem ou dialogam com os significados apostos (os oriundos de fontes como a língua), na medida em que é suposto estes prevalecerem, por isso não sendo coisa lá muito simples fazer poesia, e infinitamente mais difícil a poesia boa. Coordenar a coerência sonora da linguagem verbal com os ditames do significado do que se intenta dizer é trabalho em pouco distinto do compor sinfonia, formular em matemática ou em lógica, equacionar em física e menos ainda se é o caso de um Schopenhauer, citado acima, de um Borges, de um Pessoa, em que não se abdica nem por um instante da música no engendramento de pensamentos de enorme complexidade.

Mesmo os discursos ou textos mais banais, etretanto, não podem, ainda que o quisessem os autores, abrir mão da espessura sonora porque as línguas se organizam em torno dela. Hoje temos o favor da pontuação - infelizmente nem sempre aceito de bom grado por todos que escrevem - para prover de maior número de combinações expressivas a escrita e de orientação mais eficiente a leitura, coisa com que não contavam as línguas até recentemente, salvo quando faladas, em vista dos limites do fôlego, sem falar na própria organização sonora, que impõe cadenciamento. Muitas das dificuldades na interpretação de textos antigos se devem à ausência de pontuação ou a alguma insuficiente, irregular. Seus contemporâneos decerto não viam nisso inconveniente e por motivo preciso: estavam mergulhados no cadenciar da fala de seus tempos. Nada mais acurado, pois, para testar o poder da música inerente ao falar do que oferecer para leitura de improviso um texto qualquer a quem não treinou para o desafio. Por mais coerente e trivial que seja a urditura do que lê, tropeços, entonação equivocada, pausas inusitadas e outros inconvenientes terminarão, é provável, por fazer do texto nonsense puro.

Isso remete a certo procedimento da educação para a língua que se usava nos meus tempos de colégio, pequenos vexames individuais passados em sequência a cada vez que nos mandavam ficar de pé e continuar a leitura donde parara um colega até que outro nome fosse designado para seguir de onde pararíamos. Hoje - lugar comum dizer - não canso de agradecer por esse 'suplício', assim como pelo das aulas de solfejo (ao compasso de um lápis ferindo a mesa e da mestra vocalizando nossos equívocos - "a ligadura, fulaninho", "aí é staccato, sicrano"), em ambos os casos, no fundo, quase a mesma coisa: era preciso aprender a cantar o texto lido para lhe extrair o sentido. E hoje, em vista do que ouço dizer depois da apreciação de algum escrito, é com algum horror que suponho ter alguém deparado ali silêncio mortal. Para concluir: não parece mais tão acertado, quanto se acreditou, falar em uma 'retórica da música' depois dessas considerações, embora dizer o contrário, ou seja, 'música da retórica', a despeito de em aparência inusitado, passa a fazer todo o sentido - enfim, é por ser música que a fala é retórica e não por ter algo da fala que a música faz sentido. A música, ao que tudo indica, apareceu primeiro, falando do que vai dentro de si mesma, do que se move em suas entranhas.

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