segunda-feira, fevereiro 20, 2017

Gênese de um desejo concedido

Pensava demais, a velocidade exagerada - ou por que mais estaria o relógio parado, há tantas ideias, a cinco para o almoço? Na certa o cansaço acelerava o corpo para não dormir com a memória no automárico sob a voz do treinamento que só agora, na hora errada, é capaz de lhe tirar o sono: pois tem de haver com efeito alguma honra no privilégio de ter confiada parte no projeto singular, histórico, monumental, legada por linhagem de escolhidos ocupando aquele birô entre birôs e birôs no átrio da ala sudeste, inquietos mas resignados à ignorância de para que raios servia ou importava o que faziam - justo como também não conseguia ser.

Cifras e siglas que copiava de cartões em cartolina descoloridos para livrórios de capa marmorizada nada lhe diziam, nem a mais ninguém, salvo ao último ocupante da mesa cinco a noroeste da sua, a julgar pelo conteúdo dos aviõezinhos e bolas de papel amassado com ilações perigosas e até declaração de amor - imagine-se! - que por descuido iam pousar nas suas imediações. Além de evitar perguntas, o bom-tom sugeria dizer que fora transferido, aliás, como todos, incluídos os de comportamento comedido - transferências para 'nunca mais'.

Faz pouco reuniam-se excitados e esperançosos à volta do superintendente para brindar com água, no silêncio dos copos descartáveis, a conclusão de algo como 63% da etapa 703BN-4 da meta anual de sua seção. No tempo restante resignou-se à luta sem pausa contra dormir e o embaçamento do pince-nez ao ritmo de entrada e saída dos cartões transferidos letra por letra para o registro até soar o recesso.

Olha sem expectativas a chávena com a dormideira que não lhe silenciará a voz do treinamento até o primeiro galo, quando então, é possível, cochilará, tenso por lembrar do despertador armado para daí a hora e pouco. Uma barata lhe rói o sapato sob a cama. Decide ignorá-la, mantendo os olhos semicerrados, pois avalia o quão afortunada é por não precisar saber por que o faz, a relevância disto para algum objetivo maior. E é como se sonhasse, sem se dar conta, que deseja intensamente aquela felicidade.

De igualdade e justiça que o dinheiro pode prover

A continuada birra minha com o uso - em qualquer contexto e em particular no das 'inexatas' ciências sociais - de expressões como 'mais justo' e 'mais igual', além de suas variantes deprimentes 'menos injusto' e 'menos desigual'. Conspurcam os conceitos 'justeza' - ou 'justiça' - e 'igualdade', que por definição não comportam modulação e só podem ser afirmados ou negados, e o fazem, nas questões sociais, a serviço da conservação do statu quo capitalista, dando a impressão de o capitalismo ser amenizável por mais do que períodos breves: desnecessário ser especializado em História para chegar a tal conclusão, bastando haver alguma memória das alternâncias vividas em períodos de quinze ou vinte anos.

Na raiz desse uso indevido - que vem caracterizando a opção do indivíduo pela esquerda do espectro político - está a expectativa sempre renovada de salvaguardar a funcionalidade do dinheiro, embora 'disciplinando-o', enquanto depositário da ideia não menos distorcida de liberdade que a antiquíssima doutrina liberal vem impingindo-nos com sua propaganda faz séculos. Persistirá a impressão de que o dinheiro é somente outra vítima do mau uso enquanto o seu emprego passar por modo particular de exercer o livre arbítrio, ou seja, enquanto sobreviver a ilusão de ser possível a escolha incondicionada, por assim dizer, livre de quaisquer constrangimentos, quando na verdade se escolhe premido pelo imperativo do bem, pela determinação de obter o bom, embora em grande medida se ignore como o fazer.

Essa concepção de liberdade de escolher é a mesma a orientar quaisquer jogos de azar, em que se faz lance ao acaso e se tolera - quando possível - o mau resultado, sendo útil exclusivamente para donos de cassino e quem faz fortuna com vender. Trata-se, pois, do que há de pior ou é veementemente contraindicado para a natureza humana, que é em essência conhecer e, por conseguinte, ver-se lvre - sim, mas - da sua condição inicial de indizível ignorância. De modo que não haveria liberdade a priori, mas a posteriori, a ser conquistada sobre a ignorância e ad aeternum, pois é suposto que sempre se estará ignorando algo.

Em vista disso é de imaginar que o dinheiro, quando empregado por indivíduos empenhados em lutar sem pausa contra a tirania da própria ignorância, possa ser parte de um mundo autenticamente virtuoso (e não de um apenas 'mais virtuoso'). Se tal virtude, então, está no que se entende por 'justo' ou por 'igualdade de oportunidades', é de supor que a exata distribuição de dinheiro - num hipotético e cristalino universo da carochinha, concedamos - será contribuição apreciável na consecução da justiça. Neste caso, entretanto, que propósito ou sentido há em continuar usando-o? Vê-se por aí o que vai no espírito de quem se tem por 'à esquerda' no espectro político e concebe distibuição apenas 'mais justa' ou 'mais igual' disto que por natureza própria deixa de ter propósito ou sentido quando os significados de  'justiça' e 'igualdade' são preservados.

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