terça-feira, dezembro 30, 2008

Desvendando o Plano Inteligente

Deus já foi mais simples. É o que ensina a História. Ao menos podíamos imaginá-Lo a partir do que víamos: os bichos, as árvores, o céu, a terra. Há quem sustente, entretanto, que nesse período já tínhamos conhecimento, por certo vago, desse Deus único, primeiro, criador de todas as coisas (inclusive dos deuses imagináveis ou visíveis), mas teríamos preferido deixá-Lo lá, para onde foi depois da faina da Criação. Decerto o fizemos por já intuirmos as dificuldades de concebê-Lo, destas a mais evidente aquela dizendo respeito à Sua origem: os outros, os deuses concebíveis, Seus subordinados, conformavam-se melhor à nossa exigente maneira de imaginá-los, para a qual tudo tem de ter um ponto inicial.
Somos até capazes de imaginar coisas sem fim, como o tempo, por exemplo, bastando associar certos sinais de sua passagem, digamos, os dias, aos dedos das mãos, repetindo o processo sempre que acabarem os dedos contados, ou mesmo associá-los à série numeral, da qual não achamos também o elemento último. Se admitimos que um dia tudo pode acabar, o vazio, além do tempo, recusar-se-á a sair da cena final que imaginarmos. Encontramos problemas, entretanto, para pensar algo sem começo: isto sempre começará em outra coisa, esta numa terceira, a terceira numa quarta e assim por diante; e no momento de pôr termo a esse processo, no momento de apontar a primeira de todas as coisas, o pensamento não hesita e pergunta: como isto teria começado? Como se vê, a despeito de descômoda para o pensamento a hipótese de algo não ter tido um começo, a tentativa de resolvê-la achando-lhe um começo termina por criar outra descomodidade, a de não encontrar um começo satisfatório.
Os primeiros visitadores do Deus único e primeiro não pareciam preocupar-se com tanto. Invocavam-No sem qualquer interesse por sua história e só os descendentes muito tardios destes viríamos acordar para o problema. Jamais o resolveríamos, embora as tentativas nos tenham rendido, entre outras coisas, a ciência, mas também os dogmas. Estes últimos dizem respeito aos limites do quanto é possível dizermos de Deus e passam a incomodar quando usados pela estreiteza de julgamento para coibir iniciativas como a da ciência. Já esta quer somente observar o mundo: admite que tenha sido criado - não pode escapar de conceber-lhe um princípio - e mesmo não a incomoda a idéia de um Criador, mas sua forma de observar parece frutificar sem mesmo tê-Lo como hipótese, segundo o afirmou certo sábio francês.
O bom cientista, já o sabia o referido sábio, não deve nem pode intrometer-se na alçada dos dogmas: por referirem limitações do pensamento, idéias imunes a qualquer esforço especulativo, sequer se oferecem à contestação (pois como contestar o impensável?). Os dogmas são como portais ao pé de que se vislumbra paisagem além, sendo embora impossível esboçar ao menos um passo nessa direção. Dogmas estão desde sempre em nossas mentes, pode dizer-se que os conhecemos desde quando nascemos e só quando inteirados de que pensamos tomamos ciência deles. No caso de Deus, os dogmas a seu respeito são como os axiomas de qualquer geometria: ou os admitimos como nos são dados, ou não traçamos linha nenhuma.
Isto equivale a dizer que nossa idéia de Deus, o primeiro e único, nasce conosco por inteiro, completa e, no entanto, inverificável. Outra forma de concebê-Lo não temos senão admitindo-O como inconcebível, impensável. É-nos igualmente impossível negá-Lo, ao menos enquanto princípio, enquanto origem, pois é preciso pensarmos algum, alguma, de que viria o quanto nos originou. Além disso, tudo mais a dizer-se d’Ele é incerto e, sobretudo, blasfemo. A onipotência, por exemplo: nada garante Seu poder além do fiat, que pode ter sido mero pontapé de um processo potencialmente imprevisível. Por isso, talvez, tenha-se afastado, deixando aos sub-deuses, mais habituados aos reveses do mundo, o cuidado para com os homens, indivíduos esses muito impressionáveis com a própria impotência. Coisa semelhante se diga da onisciência e da onipresença, caso as possuísse de fato: decerto nos daria maior proteção, atenderia com inteira presteza aos nossos chamados, pois teria idéia precisa e imediata de nossas aflições.
Afirmar Sua inteira perfeição, então, deve soar-Lhe como ácida ironia, em vista de o fazermos por contraste com nossa admitida condição imperfeita: como ter-nos-ia criado assim tão cheios de defeitos, de carências? É dessa maneira, segundo nos conta Feuerbach, que os kamchadalos, povo decerto já extinto da região a nordeste da Sibéria, o Kamchaca, O trataram: Kutka, nome que Lhe deram naqueles confins, só poderia mesmo ser estulto por tê-los posto num mundo de meses gélidos e montanhas intransponíveis. E estultice, para bom entendedor, é eufemismo por trás do qual bondosamente os kamchadalos escondiam atributo ainda menos apreciável, a maldade. Afora o de iniciador da criação, por conseguinte, as restantes qualidades que - até numa atitude sincera - cremos ver n’Ele terminam por transformar-se em graves acusações. Para quem O ama incondicionalmente, portanto, melhor é concebê-Lo assim, quase inqualificável.
A verve do cientista não poderia permitir-lhe que se imiscuísse em querela dessa monta, se de querela é possível chamá-la. A empresa de compreender Deus, como é evidente, em si mesma é paralisante. Passo nenhum pode dar-se nesse terreno sem risco de vertigens abismais. Eis as razões de a ciência ter-se voltado para os objetos dos sentidos imediatos, deixando Deus em Seu retiro previdente. Mas não se pense que a ciência, embora não O pressupondo em suas observações, não queira chegar a Ele: tudo em seu modo de agir o demonstra, pois tem por meta o achamento do princípio universal, o qual quase involuntariamente tendemos a chamar de Deus. À diferença da atitude religiosa, entretanto, a científica parece desprovida da mesma pressa, como se quisesse construir sua opinião sem prejulgamentos, a partir de somente o que pode sentir, para estar munida, quando diante d’Ele estiver, dos argumentos bastantes para o debate fluido, sem as arestas das emoções.
E não se pense também que em sua faina prescinda o cientista de emocionar-se. Seria uma tolice caso o admitisse, pois sabe que as emoções são tudo com que conta para investigar o mundo. As emoções são como sentidos internos voltados para o quanto os outros, externos, colhem no entorno. As emoções são como sinais indicando ser o que percebemos bom ou não. E de bem em bem desvelamos os caminhos seguros a serem trilhados. Seja qual for o seu apuro, a ciência é um tecido de bens cuja utilidade primeira é prover-nos da permanência, é permitir-nos durar. Pode tratar-se de mera ilusão, advertem uns obstinados observadores dos atributos de Deus, pode ser que duremos por obra e graça d’Ele somente, e arrolam como prova nossa própria transitoriedade: seja qual for o esforço, seja qual for o refino da ciência, um dia desaparecemos todos. Como se disse há pouco, o cientista não pode também dar ouvidos a semelhante cantilena e assim age como se dependesse apenas de si permanecer sobre a terra. Mesmo porque, caso tenha razão quem o admoesta desse modo, é na própria autonomia que em aparência quer Deus que ele acredite.
A despeito de tanto cuidado, de trilhar seu caminho no encalço do bem, não caminha a ciência por linhas retas, sequer por curvas ou outras quaisquer de alguma previsibilidade. A incerteza também a persegue, sendo possível vê-la mover-se em ziguezague, retroceder e até deter-se por lapsos consideráveis. Às vezes lhe passa pela cabeça ser o mundo interminável, às vezes está certa de sua finitude. Às vezes a paralisa uma dessas considerações, às vezes parece que a excitam quase ao delírio. Entretanto o bom cientista sabe ser este um falso problema: seja qual for a grandeza do mundo, não há um fim possível para a empresa de conhecê-lo, já que isto é tarefa exclusivamente relacional, tarefa de ligar uma coisa com todas e cada uma das demais, bastando ter alguém uma rasa idéia de como se processam as permutações para abrir mão de sequer começar o enunciado do numeral em que a operação resultará. Observando desse viés, percebe o cientista ter trabalho para sempre. Por outro lado, sabe que é possível pôr um fim em sua labuta e esse ponto final se chama Deus, o qual não estaria somente na ponta extrema de uma caminhada imensurável: a qualquer momento pode a ciência dar por terminada sua missão, bastando para tanto usar o nome d’Ele para expressar a causa de seja o que for.
Nesse ponto parece extinguir-se toda a curiosidade que à ciência motivou. Para os bons conhecedores do gênero humano, nada obstante, ocorreria apenas uma mudança de objeto da compulsão do saber. Toda a ciência tomaria então o nome de Psicologia de Deus, já havendo, inclusive, quem a pratique, em grande parte do viés da religião, os restantes desde suas cátedras científicas. Acreditam estes permanecer nos domínios naturais da ciência, mas é bastante possuir-se razoável senso de observação para concluir, como aqui se demonstra, que andam já pelo reino do sobrenatural. Se inquiridos, rejeitarão qualificar o que fazem de anticientífico e mesmo de paracientífico ou de misticismo. Nem quando apresentados os sinais inequívocos de sua inclinação seriam capazes de reconhecê-los como próprios de uma Psicologia do Divino, ciência futura da qual talvez não possuamos ainda as bases suficientes para desenvolvê-la a contento. Por ’bases’ tem-se aqui o tipo de conhecimento cuja verificação apresente consistência mínima, digo, cuja verificação não redunde quase de imediato em paradoxos, em contradições e outros impeditivos paralisantes da ação do pensamento.
Passando ao largo do redundante Criacionismo, espécie de investida de maus leitores das fábulas bíblicas contra o ainda pobre mas consistente acervo da biologia depois de Darwin, ao introduzir a Psicologia do Divino tenho em mente uma corrente mais sutil de pensamento, quiçá sorte de polimento dado pelos criacionistas às suas elucubrações de modo a torná-las menos repulsivas aos critérios da ciência. Em tese consiste em afirmar a existência de um Plano Inteligente, à primeira vista parecendo designar a expressão tão-só substituto menos prolixo e de apelo metafórico mais contundente para Sistema de Propriedades Notáveis, como pareceria mais ao gosto científico chamar o mundo. Inteligência, em primeiro lugar, é apenas o nome da medida - demasiado imprecisa, como suas semelhantes - utilizada pelo homem para avaliar a eficiência da sua e da ação de outros seres no mundo. Assim de princípio, observado sem a malícia do polemista, o emprego de ’Inteligência’ na expressão mostra-se em perfeita conformidade com os pressupostos científicos. Mas basta acrescentar que inteligente, segundo o uso corrente do termo, é qualificativo aplicável somente a algum sujeito, este entendido como indivíduo dotado de vontade própria e capacitado a responder pelos próprios atos, esteja ou não submetido a um outro: isto feito, configura-se o problema.
Acompanhado como está na expressão por ’Plano’, o termo ’Inteligência’ não deixa dúvida de que quem utiliza ambos pressupõe um interlocutor, o qual poderia em tese ser inquirido acerca do que planejou. É claro, é possível ainda conservar a atitude científica diante da inteligência de tal plano e continuar reservando-se o prazer de decifrá-lo sem necessário ser lançar mão da menor pista fornecida por quem o elaborou. E pelo jeito é assim que devem proceder os investigadores do Plano Inteligente, ou seremos levados a crer que gozam de privilégio não estendido a nós outros, os menos do que meros mortais. Teriam eles de fato acesso a um canal privilegiado de contato com Ele? Em face do que afirmam só nos resta permanecer na dúvida, pois entre as razões apresentadas para o estabelecimento do novo viés estão, à primeira vista, algumas observações, todas muito criteriosas, do funcionamento geral da vida. Revelariam elas sistemas cuja forma atual resiste à interpretação evolucionista segundo a preconizou Darwin, a saber, que derivariam uns organismos de outros sutil e paulatinamente em resposta às exigências do meio. Tais sistemas só poderiam advir por inteiro e entre eles está o DNA, a essência da vida.
O próprio Darwin, até onde sei, teria considerado a possibilidade de deparar-se com mistérios desse tipo. Alguém ou ele mesmo os chamou de Complexidades Irredutíveis, indicando que não poderiam aparecer senão completos e não lentamente derivados de sistemas quaisquer. Uma visão apressada do quadro induz de imediato à consideração de que também no tempo de Darwin a mentalidade comum relutou em aceitar que nos parecemos com os símios e que outrora a eles nos assemelhamos ainda mais. Foram precisos século e meio de escavações incansáveis para hoje, com o endosso da análise dos genes, aceitarmos o parentesco. A solução estava em encontrar elos a porem em contato pontos descontínuos de uma presumida cadeia que, a despeito de ainda muito incompleta, é tida por prova suficiente de sermos de fato mais próximos dos macacos do que de qualquer outro animal. Mas o Plano Inteligente vai além, afirmando: por mais notáveis que sejam as propriedades do sistema, a pressuposta forma de este operar, com o uso do acaso, não seria capaz de produzir Complexidades Irredutíveis como o DNA ou o flagelo inusitado de uma determinada bactéria.
Neste ponto, ao lado de ’Plano’, ’Inteligente’, ’Complexidade’ e ’Irredutível’, entra em cena ’Acaso’. O acaso, então, não daria origem a Complexidades Irredutíveis. Um documentário sobre o tema ilustra muito bem o problema contrastando a rocha talhada ao acaso em contigüidade com as quatro cabeças dos presidentes norte-americanos esculpidas na mesma matéria, ou a ação caotizante do mar sobre uma frase rasgada na areia da praia: ventos e movimentos tectônicos não esculpiriam bustos de humanos nem frases seriam escritas pelo mar. A ação de uma inteligência - mais ainda, de uma vontade - torna-se clara nos contrastes. A biologia do Plano Inteligente leva-nos a concluir que a Criação, se obra genuína de Deus, consumou-se em ao menos duas partes após o fiat: para a primeira teria concorrido o acaso e em seguida, depois de aleatoriamente moldadas as montanhas, de aplainadas as praias pela água, retornaria Ele à cena resultante e, considerando-a palco ideal para o que concebera então, entregar-se-ia a modelar as Complexidades Irredutíveis. Para o aficcionado dos jogos de simulação do Will Wright eu diria sim, é assim que se joga Sim City, Sim Earth ou Sim Life, embora não seja certo que esse autor buscou no novo viés da biologia sua inspiração. Acho mesmo possível ter ocorrido o contrário.
Escuto, depois desse pensar, uma voz conhecida falando-me desde a imaginação, adversando com a consideração de não haver necessidade de invocar diretamente Deus no aparecimento da vida, pois a vida como a conhecemos, certamente obra de uma inteligência, pode dever-se, por exemplo, a ente igualmente criado, quiçá aparecido, sim, das operações do acaso... Embora canhestra, a hipótese merece réplica, como a de que nela mesma já se considerou a ação de um Criador Primeiro, antecessor desse criador da vida, ainda que este tenha sido criado pelo Acaso. E investigações nessa direção, já experimentamos, são fontes de vertigens e paralisações. Além disso, tal ser criado - e nosso suposto criador - estaria para nós no altar reservado ao que chamaríamos de Deus. Seja, enfim, quem tenha sido o planejador da vida, ele teria trabalhado, segundo a biologia do Plano Inteligente, a partir de coisas já existentes. O acaso lhe teria fornecido a matéria sobre que plasmaria sua inteligência. Em suma, traçar do mundo físico a evolução levar-nos-ia à sua origem simples e à sua transformação paulatina e aleatória no que hoje contemplamos. Já o caso da vida seria outro, daríamos com o seu artífice, a quem outrossim pouco teríamos a perguntar, visto já sabermos o essencial - as moléculas, o modo de agruparem-se e como se replicam. Ir além disso seria arriscar-se a ter como resposta aquele gênero do consideração que ensaiam os artistas fazer quando inquiridos sobre os motivos para terem realizada sua obra: "fi-lo porque o quis".
Como os biólogos do Plano Inteligente, também os físicos, os químicos, os geólogos e, creio, até os evolucionistas empedernidos têm de eventualmente ceder ao puro êxtase em face das maravilhas que desvendam. Em meio às metáforas de que se valem para exprimi-lo estão certamente ’Plano’, ’Inteligência’ e, talvez a mais hiperbólica, ’Autor’. Isto se deve à inevitabilidade da idéia de um princípio, de um Deus único que, nada obstante aperfeiçoada nos derradeiros milênios, não logrou ainda a forma adequada para sem atritos introduzir-se no discurso científico. Entretanto nada impede que um investigador do mundo a introduza, particularmente nos momentos de desfrute, quando pausa seu trabalho e se permite mais amplamente contemplá-lo, não raro suscitando hipérboles sintomáticas do seu prazer com o próprio ofício. Isto não significa também que a ciência não se construa com metáforas. Para a ciência não há como escapar destas, pois consistem na própria linguagem: metáforas relacionam coisas distantes entre si - no espaço, no tempo ou na constituição - e se validam por haver em comum no que relacionam o suficiente para o estabelecimento de tal relação (devemos a Borges, lembremos, essa visão simplista e eficiente do conceito). Mas do viés científico a metáfora só se consolida quando, mesmo hiperbólica, é amparada por outras metáforas menos ambiciosas e cujas partes guardam assemelhamento maior. De hábito reservam-se as hipérboles para as expressões puramente emocionais.
Mas há hiperbolismo em ver na vida um plano inteligente? Creio que mais de um, deles o primeiro a inferência imediata de haver um autor. Depois, o que seria a inteligência? Como se mostrou, uma medida da ação eficiente do sujeito no mundo. Assim, se dum lado é plausível a atribuição de inteligência ao criador da vida, pois ele teria agido como todos os sujeitos têm de agir, ou seja, transmutando a matéria com alguma finalidade, doutro lado não me parece adequado atribuí-la a quem criou a matéria com que depois é criada a vida, não ao menos nas condições iniciais que costuma supor a religião para o seu trabalho, isto é, o nada. É claro: se inteligência é termo designando a capacidade de operar após o advento do mundo, seria lícito atribuí-la a quem o sacou quando nada havia? E digo mais: se criar designa mais exatamente trazer à existência, seríamos nós, que apenas juntamos o já existente, criadores? Suponho que sejamos apenas inteligentes - se tanto. Deus, à medida que o intuamos melhor, num tempo muito mais à frente, por certo revelar-se-á detentor de faculdades ainda mais impressionantes do que a da inteligência, faculdades quiçá para sempre incogitáveis, como Ele próprio o é, por nosso singelo aparato cerebral.
Por fim, ’Plano’ é o termo que vem lacrar a estreita relação dessa nova biologia com o nem tão antigo Criacionismo. Associado à impossibilidade de reduzir certas estruturas complexas a partes evolvendo, tem-se panorama decerto o mais terrífico para o âmbito do conhecimento em geral e da ciência natural em particular: entes postados cada qual no seu nicho de espaço e tempo reproduzindo-se com variações mínimas no universo de cada espécie sem guardar com os entes de outras espécies qualquer significativa relação. Em vista da irredutível complexidade dos seus respectivos genes e a despeito das assemelhações, sequer homens e chimpanzés teriam derivado de um mesmo ancestral. Nesse passo teríamos de retomar a hipótese de geração espontânea e as demonstrações de Berkeley e Malebranche, até as assimilarmos completamente, voltariam a assombrar o cotidiano universal. Cairia por terra o pressuposto maior da filosofia que, de ’tudo é um’ (segundo interpretou Nietzche a máxima de Thales), teria de enunciar-se ’cada coisa é uma’ (ou melhor, ’cada coisa é cada coisa’): a categoria universal, tão discutida na Metafísica, seria posta de lado, bem como a ciência na forma que a cultivamos, doravante voltada para o particular. Borges rir-se-ia sem a costumeira modéstia, pois só o memorioso Funes, de sua invenção, se habilitaria a dar conta de mundo assim diverso, mundo em que a metáfora não passaria de um delírio e onde cada coisa, incomparável a qualquer outra, teria de ter designação exclusiva.
’Plano Inteligente’ a mim parece mescla pouco refletida de conceitos mal aplicados e entendidos. Configura-se como recurso da indústria religiosa tencionando ampliar sua dominação de milênios sobre a ciência, a qual seria, em aparência, infensa às suas ações. Revela-se como sintoma da ignorância dos doutores da religião, que não compreendem o potencial do conceito central em seu poder, o conceito de Deus, incontornável, inevitável, irrecusável e nada obstante imune a toda investida lógica ou experimental visando demonstrar seja o que for a Seu respeito, inclusive a Sua real existência. Do ponto de vista estritamente científico, ’Plano Inteligente’ só pode representar exclamação do gosto do cientista diante do quanto foi possível descobrir. Caso contrário, deve indicar postura presunçosa da ciência, prestes a cruzar os braços até que encontre o suposto responsável pela criação dos objetos de seu estudo. E se alguns desses cientistas já não O encontraram, quando o fizerem, do diálogo entretido é provável constar uma passagem assim: "o que mais querem vocês? já sabem como funciona, já sabem quem fez; agora, por favor, deixem-me em paz!"
Rio, 29 de dezembro de 2008
Waldemar M. Reis

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