terça-feira, outubro 18, 2011

Viver...

... como quem passa.


Por quê? Ora, por ser assim mesmo que se vive.


Veja o sol, por exemplo, incidindo sobre um ponto qualquer do globo: é sempre de outra maneira a cada vez que o faz e mesmo se acaso o ângulo é igual, ninguém o notará, por se terem modificado o ponto ou a atmosfera que os seus raios cortam e, é certo, o lugar donde se observa a cena. E ainda que o observador jamais se mova, se possível, tudo mais ao seu redor continuará a suceder-se: sempre algo novo, inimitável, irrepetível e que passa. Assim rezam física, religião, o poeta.


Portanto, despeça-se. Mas não como quem vai depois reencontrar, tampouco como quem canta um tango ou uma modinha. Despeça-se apenas. Pois é assim que se vive.

sexta-feira, agosto 05, 2011

O uso próprio de 'liberdade' segundo Epicteto

Uma provocação para Antonio Caetano

"É a liberdade algo além do poder de viver como escolhemos? "Nada além." Dizei-me, então, ó vós homens, quereis viver em erro? "Não queremos." Ninguém, então, que viva em erro é livre. Desejais viver no medo? Desejais viver em tristeza? Desejais viver em perturbação? "De modo algum." Ninguém, então, que esteja em estado de medo ou tristeza ou perturbação é livre; mas quem quer que esteja livre de tristezas e medos e perturbações estará ao mesmo tempo livre da servidão."
Epicteto - Discursos, Livro 2, Capítulo 1

Em certo sentido o filósofo é um dicionarista. Mas ao invés de apenas coligir as acepções de todo e qualquer termo em uso em determinado lugar e a um determinado tempo, ele parece restringir-se a uns tantos, que acredita atemporais e de domínio universal, procurando afinar-lhes e, em boa medida, corrigir-lhes o significado. Bom exemplo disso é termo 'liberdade'. No diálogo em epígrafe Epicteto é preciso em sua definição ordinária: 'o poder de escolher'. E nas três frases seguintes delineia o argumento que, levado às últimas conseqüências, conclui por em grande medida negar ou, ainda, limitar a definição inicial. Trata-se de argumento imbricado na fórmula aristotélica que iguala o conceito de 'causa final' ao de 'bem': se aceita, então não há escolha e, por conseguinte, ou não há liberdade, ou é impróprio o seu sentido ordinário. Epicteto se esquiva de concluir o argumento que iniciou. Por não tê-lo em conta? É incerto, em especial pelo fato de que em seguida o desenvolve ao ponto de apresentar o único objeto relativamente ao qual a acepção comum de 'liberdade' é aplicável.

Aristóteles não deixa dúvidas quando identifica 'causa final' com o 'bem' e só faz ressalvas quanto a utilizá-la na investigação da natureza: na esfera do humano sua aplicação seria inequívoca. Quer pôr de fora de sua teleologia natural a presunção de intenção consciente, cuidado admirável quando não fazia muito Thales via deuses no interior das coisas: no âmbito da natureza a 'causa final' seria inferida somente do que é repetidamente produzido e apresenta uma função. O olho, por exemplo, teria por 'causa final' o ver: pouco importa que seja criado com a intenção de proporcionar a visão ou que apenas se veja porque se o possui. Já um eclipse se explicaria suficientemente por intermédio da 'causa material' e da 'causa eficiente': não faria sentido encontrar-lhe 'causa final'. Ajunta também que, mesmo nesse contexto, o da natureza, a 'causa final' tem de ser algo bom. 'Bom', no caso, parece indicar precisamente a qualidade do que mostra ter alguma função, alguma utilidade, mesmo não se inferindo intenção de se produzir tal utilidade: ter uma função é bom.

Nos domínios da produção humana a inferência da 'causa final' segue uma linha semelhante, mas há um complicador quanto ao que constitui função ou bem por cuja influência algo aí se produz: a opinião diversa e por vezes inconciliável dos indivídos quanto a de fato ser ou não ser bom o que se produziu. E mais do que objetos quaisquer, obras de arte ou instrumentos, os atos parecem ser o tipo de produto mais numeroso causado pela intenção do homem. Aristóteles demonstra estar ciente desses aspectos por tão-só não apresentar restrições à fórmula da 'causa final' quando aplicada à compreensão da produção humana. Tacitamente assume ser o bem - ou algum bem - o que move a produção humana e ainda que esse produto seja avaliado como mau por muitos e mesmo todos os indivíduos - incluindo o que o produziu. É o caso, por exemplo, de obra cujo autor a repudia depois de rejeitada pelos apreciadores, de um medicamento que por qualquer motivo se revela nocivo após ser lançado no mercado, duma declaração de guerra da qual se arrepende quem a fez e, principalmente, caso do maníaco que incomoda ou mesmo lesa quem não lhe causou nenhum mal e do terrorista que se mata para matar outrem. Todas essas coisas e atos possuem em comum a intenção causadora, que para o perpetrador foi, pareceu de momento ou é de fato boa.

'O inferno está cheio de boas intenções': o ditado pode ser sinal de familiaridade do senso comum para com idéia que, simples embora, é adrede rejeitada por alguma filosofia, para dizer o mínimo. No entanto, não é exatamente de 'boas intenções' que se alimenta o mal, mas de ignorância. Soubessem de antemão, o autor, do efeito futuro que teria o seu trabalho no público - e em si próprio - e quem declarou guerra, que não a venceria, por certo não levariam a termo o que fizeram. Já o maníaco e o terrorista, embora não arrependidos de suas ações (suponha-se que mesmo na morte este último se mantenha inflexível), caso encontrassem, um, algo de diferente e que supusesse ser melhor para fazer, e o outro, um modo mais ameno e igualmente eficaz de externar seu protesto, creio não haver dúvida de que os escolheriam.

Isto se dá por não serem coisas e atos produtos interessantes em si mesmos, mas no quanto deles se infere de bom. Pois o bem, como é corrente, a rigor é um juízo - uma opinião, dissesse talvez Epicteto - afixado no quanto se produz desde que isto é ainda projeto. Como bem o demonstra o cuidado de Aristóteles ao considerar a inferência de 'causa final' de eventos da natureza, bem e mal são exclusivos da esfera humana, que os detecta por meio das sensações de prazer e desprazer. E são inúmeros os tipos de prazer e desprazer, cada qual correspondendo a determinados bens e males, tantos são que por vezes causam grande confusão, de que é exemplo o suicida: ora, estando a noção de bem entremeada nas estratégias de auto-preservação da vida, como pode a supressão, pelo sujeito, da sua própria ter por 'causa final' algo bom? É compreensível, entretanto, que circunstâncias adversas quaisquer possam torcer no sujeito até mesmo o cerne de sua representação do bem, quando o morrer, então, lhe parece perspectiva tolerável, mais do que a de estar vivo, pois crê que ao menos desse modo põe fim ao sofrimento.

É provável que considerações desse gênero tivesse Aristóteles no espírito quando afirmou ser indiferente se a 'causa final' é "um bem real ou só uma aparência do bem" (Metafísica, 5-2): talvez por ser para nós o 'bem real' algo como o norte é para o planeta e a 'aparência de bem' como a bússola que o suscita. Tão poderoso é o seu magnetismo sobre nós que chega a comprometer mesmo a sagrada idéia de escolha. Esta a conclusão a que chegaria Epicteto caso interrompesse o seu diálogo na quarta sentença e acrescentasse apenas mais uma: 'ora, se liberdade é poder de escolha e se jamais se escolhe errar ou, o que é o mesmo, jamais se escolhe o pior, o mal, como então é possivel ser-se livre preferindo-se sempre e exclusivamente um dos termos da alternativa?' Entretanto, ele a omite, é provável que por prudência. Afinal já desafiava o suficiente as preconcepções de sua assistência com o rigor do estoicismo para pôr em xeque assim de súbito idéia talvez a mais apreciada pelo gênero humano, causa que é do imprevisível quando ameaçada. Por outro lado, é possível também que por conhecer a fundo suas implicações - Epicteto foi escravo na Roma de Nero - tenha preferido conservar o significado comum do termo, embora corrigindo os excessos no seu uso. Além disso, ele sabia: na prática, ainda que nos convença a lógica rasteira do argumento, lidamos como se houvesse escolha, desavisados como somos de que a indecisão quanto ao que eleger não passa de efeito da ignorância, que nos embota a percepção instantânea da única possibilidade válida na circunstância. Por isso é paciente e prossegue fazendo o que lhe cabe para contornar ou dissipar a ignorância: ensina - da maneira, em aparência a melhor possível: questionando.

Assim ele procede expandindo o argumento que passa a centrar-se, em suma, na definição de 'erro', de início de maneira direta - é ausência de liberdade - e depois de forma enviesada, contemplando aquilo em que resulta, seus sintomas: medo, tristeza, perturbação. O final parece fugir à conclusão, embora ele retorne ao conceito inicial, de liberdade. Um amigo filósofo confessou-me uma vez seu constrangimento diante da conclusão nos silogismos, esforço evidentemente vão de esclarecer o que claro está desde a premissa. Ponderei dizendo-lhe que talvez fosse justo que assim se sentisse com os exemplares do silogismo escolar, criados com o fito de fazer ver o aprendiz o quanto da premissa interessa de fato para o conhecimento, mas não com os silogismos propostos na práxis, quase sempre apresentados sem a conclusão. Exatamente como procede Epicteto com o seu, a ser concluído por quem dele se inteirar.

Como se observou, apesar de não nos ter dito na quinta e supostamente omitida sentença, a liberdade já fora rechaçada: como a entendemos de ordinário, a liberdade se revela impossível. Então ele prossegue com o argumento do erro, estabelece sua relação com a liberdade e envereda por realçar seus sinais: sinais de que não se agiu como é devido, de que se deixou embotar pela ignorância, de que se realizou escolha - quando a rigor é instantânea para o instruído a percepção do melhor a fazer: e daí as mostras de arrependimento - medo, tristeza, perturbação - à guisa de confissão de culpa. É disso que não se é livre quando se está em erro, insinua Epicteto e o todo de sua doutrina o confirma insistentemente: de culpa e arrependimento. É deles que é mister se livrar. Mas não apenas. Livre é quem cumpriu com o devido, é quem, então, está livre do dever, único uso aceitável da acepção de liberdade. É verdade, e Epicteto e o estoicismo não nos enganam, trata-se de sensação transitória essa da liberdade, caso o sujeito tenha sorte, já que a realidade é pródiga em substituir um dever cumprido pelo chamado de um novo, quando não de nos propor diversos ao mesmo tempo e cujos cumprimentos nunca se alinham a um mesmo instante. Mas essa é a vida segundo os estóicos, restando a nós resignar-nos, jamais curvar-nos à servidão dos deveres não cumpridos e ao rol de infelicidades que acarretam.

Cadenza interrotta

Revisitar o estoicismo - coisa hoje em dia na esfera da obstinação, para mim - é recapitular ingratidão milenar dois de cujos atores significativos são cristianismo e Descartes. Descartes ao menos o aponta, imprecisamente, com vaga metonímia: "filósofos antigos". E dá a 'sua' versão de liberdade: desta feita graduada - como é usual proceder quando da mensuração de continua como quente-frio - e a cujo mais baixo grau estariam confinados os acometidos da incerteza (ou indiferença), estado - aliás - a que ele próprio se submete para gestar suas Meditações. A ascenção de nível do sujeito se dá quando pende para um dos lados do dilema: "seja porque... conheça evidentemente que o bom e o verdadeiro aí se encontrem, seja porque Deus assim disponha o interior do... pensamento(!?), tanto mais livremente" o escolherá e abraçará (Meditação Quarta). Também, como seus 'misteriosos', 'antigos' mentores, omite a conclusão: questão de escola, questão de estilo.

Rio, 13 de agosto de 2011

Waldemar Reis

quinta-feira, abril 07, 2011

Narciso

a Maria Clara

Verdadeira vítima. Que mal há em desejar ninguém? Mas aos olhos de quem o quis sem esperança de sucesso era o completo arrogante: não mudamos muito desde o seu tempo. Foi amado, sim, é certo que Eco o amou, um amor incomunicável ou somente comunicável quando o outro lhe dissesse antes amá-la. Foi a sorte a que Juno a condenou quando se deu conta de ser enganada por Jove, o marido, que fornicava outras ninfas enquanto Eco a levava literalmente na conversa. Dali em diante a alcoviteira só repetiria o que ouvisse e, o pior, apenas os derradeiros sons. Como era de se esperar de figurinha assim, foi oportunista, aproveitando-se do que dizia Narciso ao notar que o seguiam ás escondidas; em resumo: precipitou-se, lançou-se nos braços do rapaz e - era de esperar também - foi posta a correr. Mas foi coerente com o que sentia pelo moço e findou seus dias em prantos, transformada em pedra que para sempre reproduz o final do que se diz ao redor.

O responsável pelo destino de Narciso foi na verdade outro moço. Dizem que se chamou Adaminio e terminou por se matar implorando a Nemesis pelo que de melhor ela fazia: vingança. Há quem diga que somente pediu à deusa para dar a Narciso amor não correspondido. Pedido, concedido. O cenário foi escolhido com critério, fonte límpida, intocada, protegida dos reflexos excessivos do sol, lugar perfeito para que se cumprisse o vaticínio estranho, pois formulado em condicional, que lhe fizeram ainda nos braços da ninfa sua mãe: viveria muito se não se conhecesse. Um detalhe crucial: é inverossímil que Narciso, caçador solitário por escolha, tenha jamais se debruçado sobre poça d'água, que seja, para saciar a sede; talvez não estivera diante de uma tão cristalina quanto a que lhe ofereceria a deusa, mas é certo que de alguma mais opaca, o suficiente, entretanto, para ter uma idéia do quanto de si sabia impressionar quem o desejava. Segundo o poeta é fato que até se envaidecia um tanto de ser cobiçado por ninfas, mas tal poderia não passar de mera constatação das cortes que lhe faziam e que por vezes o aborreciam, é natural, fomentando o seu perfil público de imodesto. Enfim, conhece Narciso a si, conhece a própria beleza, não o suficiente para desencadear a condição de sua sorte adversa, com certeza, mas se conhece. Vê-se por aí a quantas já ia o tino grego desde bem antes de Platão quando o assunto era conhecimento: conhecer é conhecer bem, por inteiro (ou o mais próximo possível disso), ou não passa de simples opinião. Daí a fonte límpida, sem os exageros do sol e intocada.

O resto é história bem conhecida, embora muitos pensem que Narciso morreu sem saber que se apaixonara pelo próprio reflexo. Quanto a isto o poeta não deixa dúvidas e é pródigo nos detalhes da tragédia a partir desse ponto. De tanto ficou uma das mais assombrosas e ambiciosas meditações acerca do amor-próprio quando levado a sua expressão hiperbólica. Não há, em primeiro lugar, culpa alguma em Narciso. Como se disse no início, trata-se de vítima - como a maioria dos personagens trágicos na Grécia antiga - do destino. Um destino que o fez belo e lhe prometeu vida longa caso permanecesse ignorante de si (como, aliás, queriam que ficasse ao lhe chamarem Narciso, sonâmbulo ou, do modo como usamos o possível radical do nome hoje em dia, narcotizado, entorpecido) e lhe pôs no encalço verdadeira horda de fanáticos por sua aparência, capazes, pelo visto, de qualquer artimanha para se verem deitados com o efebo ou para se desagravarem do não conseguido. Depois, a esperteza cruel de Nemesis, que entende ser improvável encontrar no mundo alguém a impressionar o auto-suficiente Narciso senão ele mesmo e lhe oferece então a visão perfeita, o perfeito conhecimento de si, que lhe reverteria o destino possível de longevo ignorante.

A fábula também faz cotejar som e luz quando refletidos: o amor de Eco só se comunica e se consuma como reflexo do amor alheio, enquanto o de Narciso é impossibilitado por ser reflexo aquilo que ama e, por conseguinte, não o refletir - enfim, o não corresponder; uma não pode refletir o amor do outro, pois inexistente, e este ama o reflexo que não pode amá-lo de volta. Infelicidades simétricas. Ovidio não é claro ou mesmo omite o porque de haver Juno escolhido esse castigo para a ninfa, mas é de supor que a condenou a perpetuar o quanto fazia para distraí-la das fugidas de Júpiter: alongar ao máximo a conversa com a deusa, na certa aproveitando-se do final de um assunto para incitá-la a emendar noutro correlato. Assim, de qualquer modo, Eco é vítima dos próprios atos, mas Narciso o é dos atos e cobiças alheios, sem mencionar os de uma divindade que usa espada e porta uma ampulheta, mas possui asas, contrariando as expectativas que criamos na convivência com uma sua parenta menos ágil e de olhos vendados.

O tema do exagerado amor-próprio é central na alegoria, mas ao seu redor gravitam outros de peso equivalente, como o do conhecimento, por exemplo, sem falar no do desejo, que confina com outros como o da inveja e assim numa cadeia praticamente interminável. É suficiente contemplar o mito para ir dando com eles um a um, às vezes amontoados, esquema classificável como interdisciplinar por um especialista em matéria de conhecimento em nossos tempos. A história de Narciso é mesmo exemplar no quanto concerne ao escopo da mitopoiese (ou a composição do mito, segundo o jargão técnico). Às vezes breves, esses relatos se entrelaçam uns nos outros e é pressuposto a urdidura resultante representar o funcionamento das coisas, um modelo do mundo, de modo análogo ao que supõem atualmente as ciências fazer, talvez distinguindo-se apenas quanto à linguagem usada, mas não quanto ao interesse e mesmo à precisão. Os temas aparecem evidentemente revolvidos, discutidos, ponderados ou expostos para serem assim tratados por quem do mito se inteirar, de modo correlato ao que em mais de dois mil anos a filosofia vem tratando os seus.

A reserva com que o auto-conhecimento é apresentado, no caso, surpreende, em particular quando confrontada com o 'conhece-te a ti mesmo' do anedotário socrático. Espécie de despertar propiciado, em princípio, pelo artifício da deusa, talvez não por qualquer outro de seus sortilégios, e configurado com os elementos do sentido visual, pode ser estendido sem constrangimento a toda e qualquer parte do sujeito passível de percepção e conhecimento pelos sentidos restantes - inclusive o sentido somatório dos demais, o pensamento. Quantos narcisos há imunes a espelhos, mas não ao som da própria voz, à textura da própria pele e mesmo ao quanto tramam ao pensar? Veja-se, no mito mesmo, o sentido da presença de Eco. Seu amor só é dado a conhecer como reflexo do amor alheio externado - só pode manifestar o seu a quem primeiro manifesta amor por ela; não pode cortejar dizendo amar ou, mais ainda, pode ser obrigada a dizer amar a quem não ama de fato, apenas por assim determinar a maldição de Juno. Trata-se de uma variação do próprio Narciso: o amor que pode dizer nutrir pelo outro é em verdade um amor a si mesma, pois amor do outro por ela, Eco: só pode dar a conhecer o seu depois de conhecer o amor alheio: ama, portanto, esse amá-la*. E não se perca de vista o medium a que Eco foi designada, o som, a despeito de a imagem permanecer como elemento fundamental na montagem do mito.

A assimilação de conhecimento e amor é outro ponto notável: seria de fato o conhecer um amar o conhecido? Comparemo-la ao 'amor ao saber', tradução do termo 'filosofia', de cunhagem atribuída a Sócrates. É evidente, o amor de Narciso por seu reflexo perfeito é hiperbólico e mesmo doentio, segundo algumas compilações de patologias psiquiátricas. Haveria então limite para o conhecer-se, para o amar-se? Sim, limite, visto o amor a si ser inextirpável do indivíduo, findando quando este finda. E os gregos já estavam perfeitamente inteirados disto: o estoicismo observava que o primeiro conhecimento, o conhecimento inato, era o do bem. Nasce-se sabendo-se o que é bom e mau, o que apetece e desgosta. Vê-se que os fazedores de mitos já sabiam de antemão o que filósofos demonstrariam depois de trilharem os caminhos instáveis da metafísica: conhecer só é possível por intermédio do amar, esse primeiro julgar, de que viemos dotados ao mundo: é, enfim, o somatório do quanto experimentamos na condição de viventes, espécie de códice pessoal, interno, onde se inscrevem todos os sabores e dissabores atribuídos ao percebido. Essa discussão ressoará forte em Teeteto e terminará, como praticamente tudo na obra platônica, indecidida.

Mas não parece duvidoso afirmar que, se o perceber e o julgá-lo não são ainda conhecimento propriamente dito, são o seu estopim. E perceber é perceber-se, é perceber-se percebendo, ainda que não se esteja sempre inteirado disto em ato. O mesmo pode ser dito do conhecer. Ora, Narciso conhecia-se antes de condená-lo Nemesis; segundo o poeta, estava satisfeito consigo mesmo, como se observou: já devia inclusive conhecer ao menos sua imagem embaçada. Mas não adoeceu desse amar. Só ao contemplar-se no cenário escolhido pela deusa definha até a morte. Por que? É possível que por ter-se posto, com clareza e distinção, diante de si, ter-se percebido como outro, ter-se despossuído. O tema retornaria - ainda que sem referir diretamente Narciso, se bem me recordo - em Doença Mortal: um dos graus do pecar, mostra Kierkegaard, está nesse modo narcísico de lidar com a alteridade eventual ou não do próprio eu. Quis Narciso ter quem de fato ja possuía. Viu-se como o viam os demais, que não podiam tê-lo. E, é claro, como esses, foi incapaz de resistir aos próprios encantos. O sortilégio de Nemesis foi pôr Narciso fora de si, literalmente.

Narciso feliz seria aquele que se conhece, sim, mas não como o conhece o outro. Eis, por fim, o perigo do conhecer-se anunciado pelo adivinho: tornar-se permanentemente objeto do próprio conhecimento, esquecer-se de que se é, antes de mais, sujeito. Tal jogo de espelhos pode pepetuar-se ao ponto de susucitar a questão: sofria também o reflexo n'água por ver-se apartado de Narciso? De qualquer modo, era assim que Narciso o via: em sofrimento. Mas a profecia de Tirésias não dá pistas de tanto. Seu enunciado padece ainda de pelo menos dois dos cacoetes clássicos dos vaticínios: é excessivamente lacônico e evasivo, algo contornado pela formulação condicional, esta típica dos enunciados da filosofia e da ciência desde sempre. Não diz 'conhecer-se-á e, portanto, viverá pouco', mas 'caso se conheça, não chegará à velhice': o conhecimento de si como condição da morte precoce. Nisto Tirésias mostra estar bem à frente do seu tempo, tempo no qual a adivinhação ainda não lançara mão do artifício do condicional para evadir-se das charadas e da vertigem de errar: para tanto inclui em sua sentença a escolha de Narciso ou o acaso, o fado. Mas fica por aí, omite os detalhes da natureza do conhecimento que levaria Narciso a morrer tão cedo. Curioso é notar que o conhecer tem como função - talvez - essencial a de ser o meio pelo qual o indivíduo projeta durar (ou permanecer no mundo por intermédio da manipulação deste), por conseguinte sendo - ou contendo - uma forma de previsão, uma espécie de profecia.

Codetta

Há quem pergunte, por exemplo, como o narcisismo é visto pela filosofia. Aqui se procurou responder a isto de modo algo enviesado: como o mito de Narciso se apresenta ao pensamento ou, ainda, como filosofia e ciência - assim como as entendemos hoje em dia - já estavam contidas, cifradas, nesse gênero de relatos, observação esta que, é evidente, em nada as diminui.

*O trecho a seguir é um flerte clássico com o narcisismo de Eco.
"As mulheres, especialmente se forem belas ao crescerem, desenvolvem certo autocontentamento que as compensa pelas restrições sociais que lhes são impostas em sua escolha objetal. Rigorosamente falando, tais mulheres amam apenas a si mesmas, com uma intensidade comparável à do amor do homem por elas. Sua necessidade não se acha na direção de amar, mas de serem amadas; e o homem que preencher essa condição cairá em suas boas graças. A importância desse tipo de mulher para a vida erótica da humanidade deve ser levada em grande consideração. Tais mulheres exercem o maior fascínio sobre os homens, não apenas por motivos estéticos, visto que em geral são as mais belas, mas também por uma combinação de interessantes fatores psicológicos, pois parece muito evidente que o narcisismo de outra pessoa exerce grande atração sobre aqueles que renunciaram a uma parte de seu próprio narcisismo e estão em busca do amor objetal. O encanto de uma criança reside em grande medida em seu narcisismo, seu autocontentamento e inacessibilidade, assim como também o encanto de certos animais que parecem não se preocupar conosco, tais como os gatos e os grandes animais carniceiros. Realmente, mesmo os grandes criminosos e os humoristas, conforme representados na literatura, atraem nosso interesse pela coerência narcisista com que conseguem afastar do ego qualquer coisa que o diminua. É como se os invejássemos por manterem um bem-aventurado estado de espírito - uma posição libidinal inatacável que nós próprios já abandonamos. O grande encanto das mulheres narcisistas tem, contudo, o seu reverso; grande parte da insatisfação daquele que ama, de suas dúvidas quanto ao amor da mulher, de suas queixas quanto à natureza enigmática da mulher, tem suas raízes nessa incongruência entre os tipos de escolha de objeto."

S. Freud; Sobre o Narcismo: Uma Introdução

Fim dos tempos

Para quem ainda não entendeu: o mesmo que eternidade, o que dura para sempre, mesmo porque "o tempo não pára" (algo como o 'fim da história', com a particularidade de que haverá soberano, o de sempre e sem sucessor). Acaba, isto sim, a medida ou a noção da passagem do tempo, isto é, a alternância. Pois, segundo a promessa, só haverá dois lados, incomunicáveis: um de êxtase, outro de desespero. Enfim o que é bom vai durar.

domingo, janeiro 09, 2011

Experimentando a causa final

a Clarão e Tuninho
Há quem prove - ou pense provar - que o tempo não existe: trata-se de apenas uma ideia sem correspondente exato na 'realidade'.Sim, acato – e, engraçado, fala-se assim como se as ideias fossem irreais. Mas não vamos aqui discutir tanto esse ponto. Peço somente que se conceda que, seja o tempo o que for para lá das ideias, é com o auxílio da ideia que se faz dele que o mundo ganha algum sentido para nós. De fato envelhecemos depois de termos sido jovens, fomos jovens depois de havermos nascido e bem depois de sequer termos sido seja o que fomos quando nossos pais não se conheciam. Tal conjunto de eventos, seja ou não 'coisa real', com ele lidamos com o auxílio da ideia incerta de tempo.

 É preciso, pois, que algo dure, para nos ser possível afirmar que isto existe. Nossos corpos, por exemplo, duram, embora mudem sem pausa, desde quando somos concebidos, até depois da morte, quando continuam seus processos de mudança até se dissiparem, assumindo então forma da qual não nos permitimos mais afirmar que foram ou são aqueles corpos. Mas nós mesmos, ou seja, esses conjuntos ainda pouco compreendidos de corpos e consciências, se é impreciso dizer que começamos a existir em úteros, há generalizada concordância em torno à afirmação de que nos finamos com a morte, apesar de os corpos com que nos compúnhamos permanecerem por mais algum tempo existindo. Cessar de durar é, por conseguinte, deixar de existir, seja lá como isto se entenda por intermédio do abstruso conceito de tempo.

Assim, as coisas têm de durar, ou não existem. No nosso caso é possível acrescentar que também queremos durar – exceção feita, naturalmente, a quem da vida se desencantou, embora até se desencantar tenha-se por certo alinhado conosco, os demais, que têm de e querem durar. Parece ser parte da natureza disto que chamamos de 'estar vivo' essa obstinação em durar. No meu entender, muito naturalmente. Pois, como já concordamos, se não dura, não existe, com a diferença de que o ser vivo existe por si e também por querer, por fazer por onde.

Ah, claro, a ciência e - principalmente - a filosofia já provaram - ou acreditaram provar - que os indivíduos são outra ficção. Sem dúvida, mas este é mais um ponto por que teremos de passar sem o levarmos muito além. Infelizmente somos também constrangidos por algo na nossa natureza a ver o mundo como amontoado de coisas distintas umas das outras, embora por vezes sejamos capazes também de vê-las todas como uma coisa só – ou melhor, somos obrigados a 'engolir' isso em virtude de tudo diante dos nossos narizes transformar-se em qualquer outra coisa com o passar do misterioso tempo, em virtude, enfim, da impressão de que a rigor há algo de fundamental na composição de tudo, algo em que tudo com o tempo se desfaz. Enfim, temos aqui de admitir, sem maiores considerações, que há para nós o mundo como um todo, bem como há as coisas no mundo, seja qual for o motivo de tal ocorrer conosco.

 Então: indivíduos quaisquer existem para nós em virtude de durarem e, no nosso caso, além de termos de durar, também o queremos. E existir, ao menos para os que não se enfadaram da existência, é em princípio algo que sem pestanejar qualificamos de bom. Sim, às vezes não se quer matar-se e, por outro lado, não parece preciso afirmar que existir é bom. Nesse caso trata-se de quem está a transpor a linha dividindo quem gosta e quem desgosta de existir. Nada obstante, enquanto do outro lado não estiver, estará dizendo nas entrelinhas que reconhece haver na vida ao menos o bastante para tolerá-la ou, ainda, que há o suficiente de bem no viver para impedi-lo de estourar os miolos imediatamente.

 Tanto se disse para mostrar que a vida, ao menos para quem não se deprimiu, é um bem. Mas ela não é de fato nada: é a vida, somente. Prova disso é que pode ser desprezada por um sem número de viventes. E embora seja tão-só viver, quem dela se agrada o confessa afixando-lhe um rótulo, o rótulo de bem. E, claro, de tudo faz para permanecer vivendo. Quanto aos outros, os descontentes, não se pense entretanto que discordam por inteiro dos demais: não! Só que para eles, indivíduos em aparência mais exigentes, a vida tem de ser efetivamente boa. Ora, não apenas para eles: para seja qual for o vivente, a vida só é bem se for boa. Aqui entra em cena outro ponto indiscutível, embora tema de incontáveis discussões: a boa vida é questão de tolerância. Uma dor, por exemplo, uma lancinante, no caso: há quem a suporte indefinidamente e quem sequer tolere imaginá-la sem pensar em desaparecer. (Curioso é ter de admitir que quem prefere a morte a um viver menos – ou nada – prazeroso deve ter alguma noção de como é inexistir e essa noção lhe indica tratar-se de coisa melhor do que o existir – pois imaginamos que naturalmente declinaria da escolha caso supusesse tratar-se de algo pior.)

 Enfim, concordamos em que em si o viver não é lá muita coisa, só sendo um bem quando é bom (ai!, geme o lógico – e desta vez o ouvimos), e em que, mesmo em se desprezando a vida, isto se faz na suposição de que a outra condição, a de não viver, é um bem maior - ou simplesmente um bem. Resultado: parece-nos que, até aqui, pouco importa a forma sob a qual ele nos apareça, estamos constantemente no encalço do bem ou, concedo, se não do BEM ele mesmo (espécie de Papai Noel da filosofia), ao menos de algum bem, digo, de parte desse bem de gorro e botas vermelhas. E não se trata só de ir atrás do dito cujo, mas de fazê-lo aparecer, ou mais, trata-se até de criá-lo, de trazê-lo à existência, sintoma este do já menciondo querer viver.

Um sujeito faz sinal na penumbra e indica não concordar. Parece meio sem jeito, não quer mostrar-se, mas como aqui garantimos a livre expressão, aos poucos vai ficar à vontade para expor o seu ponto: ah, sim, uma ressalva: já tentou de tudo para mudar, mas tem de admitir que continua apreciando - o quê? Ah, claro: o sofrimento alheio. Aprecia, então, o sofrimento alheio e - o que mais? Sim, está seguro de produzir o mal. Senhores, senhores, por favor, não riam; é evidente que encontraram a chave: naturalmente a encontraram, ou não teríamos concordado tanto até aqui. É que o amigo lá de trás não percebeu como formulou a questão: disse gostar de fazer o mal. E, claro, não se gosta senão do que é bom. O o cerne do problema, se os senhores bem observaram, está no gostar do que para um outro é mau. Este, entretanto, é outro assunto por que teremos de passar sem virá-lo do avesso: deve por certo haver um viés especial por cujo intermédio nos é possível entender este e semelhantes casos, mas temos de deixar para outra ocasião o encontrá-lo. Então, em miúdos se tem, enfim: seja qual for a causa ou o motor de seu gosto, gosta disso, digo, isso lhe é um bem.

Um outro indivíduo toma coragem e se levanta: não nos alvorocemos, amigos, seu caso pode ser diferente. Como? Certo: detesta o mal – como a maioria de nós afirma detestar – e, no entanto, por mais que busque para todos o melhor, acaba sempre restando de suas ações algo condenável por alguém. É, o inferno parece mesmo estar cheio das melhores intenções. Vejamos: em princípio somos levados a crer que de fato todos – sem exceção – gostamos de algo, ou seja, procuramos sempre por ou nos esforçamos para realizar algo bom, um bem; entretanto há quem goste de fazer com os demais o que estes – e mesmo ele próprio – detestam (sendo preciso reconhecer que há também quem goste disto para si próprio!) e há quem o faça sem querer, crendo produzir um bem comum. O amigo aqui não parece distinto da maioria de nós: há afinal quem aqui se atreva a lhe atirar a primeira pedra?

Pois bem, há entre nós quem creia enquadrar-se em outro grupo? Ah, sim, o amigo ali. Como? Carrasco? Senhores, senhores! Calma, senhores, do contrário rompemos nosso pacto de livre expressão. Ou prefeririam os senhores que mantivesse ele o silêncio e nos privasse de conhecer o que seria – talvez – uma classe distinta de buscadores e criadores do bem? Como? Claro, funcionário público. Não, não precisa dizer de onde o senhor vem; todos aqui estamos cientes de que os carrascos ainda andam longe da via de extinção. Enfim, o senhor mata, diz não gostar do que faz e que o faz por ser preciso. É verdade: o amigo de há pouco causou-nos consternação dupla, de um lado, por confessar gostar de ser mau e, de outro, por termos tacitamente aquiescido em que tal a nós parece dever-se somente a alguma patologia; o segundo não nos pareceu diferente de nós outros; mas este, meus caros, este nos apresenta uma condição como que simétrica – ou seria complementar? – à do anterior. Vejamos: um faz mal – ou algum mal – pensando fazer somente o bem e o outro está certo fazer um bem enquanto faz de fato um mal.

  Mas entendamos. É evidente que esses bens e males não são universais, não agradam ou desagradam generalizadamente. O que é bom para uns não o é para outros e assim por diante. E eis a lição que aprendemos daí: a lição de que bem e mal não existem – é o que diz a garotinha aqui na primeira fila. Não, não estou seguro de que seja essa a lição: pois, ora, cada um de nós de fato experimenta, sente, o que é bom ou mau para si; não há duvidar de que bem e mal existem. A lição é a de que bem e mal são, sim, relativos, não apenas um ao outro, o que é evidente, mas relativos a quem sente ou percebe os eventos no mundo como bons ou maus. Esta lição já podíamos tirá-la faz algum tempo, desde quando o rapaz ali lamentou-se de não conseguir realizar um bem sem arestas, sem que alguém o entendesse como mal, ou mesmo desde antes, quando falamos da tolerância da cada um de nós para com as dores de viver. Bem e mal, por conseguinte, existem, mas não no mundo lá fora: existem em cada um de nós; é, como diria o amigo filósofo aqui nos prestigiando, um juízo. (Falei certo?)

Há outra lição que se pode tirar ainda neste ponto de nosso debate e já adianto-a: o companheiro carrasco ali não é diferente, de modo geral, da maioria de nós. Aliás, mesmo o rapaz na penumbra, embora, digamos, adoentado, não é também tão diferente de nós na medida em que tem razoável noção do que pratica, ainda que não consiga conter-se. Mas a nossa semelhança com o amigo funcionário público é grande o bastante para causar espécie àqueles de nós menos sinceros. Ele não passa de instrumento usado para perpetrar uma ação comum e, de modo geral (salvo por certos filósofos ou ascetas diversos), grandemente aceita em meio a nós, resumível no ditado que hiperbolizo: olho por olhos, dente por dentes. Sim, visto nem sempre parecer-nos satisfatória a troca de um dos nossos por somente um dos de outrem. Em suma, em maioria (assim espero) professamos o desprezo, a intolerância e mesmo o horror do mal, mas quase sempre não hesitamos em o utlizar quando entendemos de remediar-nos de algo que nos acomete. Bem, Samuel Hahnemann, estou seguro, não se orgulharia de nos mostrarmos assim tão intuitivamente homeopáticos.
Mais curiosa ainda se torna a situação caso eu pergunte aos senhores o que se opõe ao mal, o que se opõe no sentido de dar cabo, pôr fim a ele, ao que sem exceção me responderiam: o bem. A senhora ali no meio murmura - o que? Entendi: "e daí o princípio do dar a outra face". Espere! Não estou convencido de que o dar a outra face seja a fórmula exata do bem para dar cabo de todo mal: talvez no caso do amigo na penumbra, e ainda assim a depender do seu tipo de – perdoe, por favor, a franqueza – sadismo, pois há sádicos que preferem as vítimas que se recusam a oferecer quaisquer faces e seja mais o que for. Se o caso é o do indivíduo comum, que nos faz um mal acreditando sanar um outro que pensa haver sofrido por nossa causa, não creio que o oferecimento da outra face o sacie e é possível que o confundamos então com o sádico típico, se ele continua a maltratar-nos, ou que até faça meia volta, tendo-se dado por satisfeito. A questão, aí, está em produzir algo realmente bom para ele ou em não ter produzido o que o afligiu.

É possível que nossa intuição homeopática seja, no entanto, providencial: em certa medida ela pode ser tida por a única maneira de fazermos ver a quem nos causou o mal o que ele nos fez, mas exclusivamente quando isto se produziu por – digamos – engano. Já o dar a outra face, no contexto em que ocorreu, ensina apenas que diante desse tipo de perpetrador do mal não há alternativa a continuar saciando-lhe a índole sádica; não se tratava nem mesmo de ignorância pura: havia ignorância, sim, pois se ele compreendesse de fato a extensão de seus atos, não os realizaria, mas da ignorância se aproveitava o sadismo para exercer-se. Pois bem, o revide, o olho por olho (ou por olhos), talvez não passe – em certa medida – de um modo de trazermos o outro à consciência, embora nós mesmos, ao praticá-lo, incorramos no mesmo tipo de ignorância. O dar a outra face pode também o ser, a depender da circunstância ou mesmo de a quem a oferecemos. Enfim, ambos têm lá sua probabilidade de sucesso na contenção do mal.

 Bem, adiantamo-nos um tanto, mas já era tempo de fazer entrar em nosso debate a ignorância. Então a pergunta: se conhecêssemos sempre o modo mais adequado de agir, adequado, diga-se, sem que dele resultasse para ninguém qualquer mal, qual de nós – com exceção, é claro, do nosso amigo sádico – se recusaria a levá-lo a efeito? Era o que se esperava: silêncio geral. Assim, se soubéssemos, se soubéssemos...! Mas ocorre de quase nunca sabermos, como há pouco o confessou o amigo incapaz de produzir bens universais. E mesmo aqueles que demonstram muito saber, visto serem mínimos ou quase imperceptíveis os males advindos de seus atos, sabem que não sabem o suficiente para evitarem a imiscuição de qualquer mal nos resultados de suas ações. E eis que voltamos a falar do Papai Noel da filosofia: muitos morremos de velhos na esperança de o depararmos na sala em uma noite qualquer – eis o que muitos de vocês acabaram de pensar. Daí, entretanto, a compactuar com o caos, convenhamos, é um exagero.

 Daí ao perdão indiscriminado, diz aqui a senhora da outra face, é outro pulo. É verdade. Mas há alternativa ao perdoar, digo melhor, há um coadjuvante para o perdão. Sim. Acertou na mosca o senhor aqui: conhecer! O contrário de ignorar: bem contra mal, conhecimento contra ignorância. Dir-se-ia mais, entretanto: educar. Pois se nascemos, como afirmaram alguns filósofos, sabendo o que é o bem, parece evidente não sabermos com a desejada precisão como obtê-lo no e do mundo. E como alguns é pressuposto saberem um tanto, em vista mesmo do seu tempo de vida, nada mais adequado que passem adiante esse saber. E que ensinem, acima de tudo, a conhecer, já que, como vimos, são sempre novas as circunstâncias.

  Por fim, imagino que tenhamos compreendido um pouco a 'mecânica' – podemos chamá-la assim – de bem e mal para, em primeiro lugar, termos ciência de que não somos capazes de praticar o mal e tampouco o bem absolutos; para termos ciência antes, até, de que, seja o que pratiquemos, temos em vista sempre um certo bem, necessariamente (e tendo por alvo a nós próprios, não esqueçamos disto, ou seja, tendo por alvo tudo quanto de nós ou para nós consideramos bom, tudo de que gostamos: o altruísmo não passa de uma instância do egoísmo); para sabermos que só concedemos ao mal por ignorar como evitá-lo e que só o evitamos com a prática de bens, a qual só se logra com o auxílio do conhecimento; e, por último, para conscientizar-nos de que gente como Leibniz e Aristóteles não falaram por falar ou inconsequentemente do melhor dos mundos e da causa final.

sábado, janeiro 08, 2011

Sem poesia

Se acaso poesia aqui houver, não a terei posto eu. Poesia é presença acidental: raro atende quando chamada, aparecendo sem que a esperem. Em seu nome faz responder um simulacro cujo ardil é fingir onipresença e fazer pensarem os tolos que os cerca a poesia.

Por isso, se alguma aqui houver, a terá posto o olhar, usado como é em tomar às palavras o sentido mais rasteiro. Seja isto evidência de uma natureza moldada em volta de um sentido único que tem por objeto unicamente o prazer. Bastante é, às vezes, um termo, um som, um gesto acidental para despertá-lo, sem o que recolhe-se o sujeito ao desacordo a que dá o nome de dor. Por isso tanta poesia, mesmo se pouca, até quando nenhuma.

Livre é você. Sou apenas justo, embora incompreendido.


A um amigo óbvio e 'livre' (ou seria apenas 'liberal'?).

Liberdade é a ideia resultante da constatação do sujeito, a despeito de sua capacidade de antever, de a ação do outro ter sempre algo de imprevisível. A si mesmo o sujeito não pode com honestidade considerar livre. O mundo lhe aparece como o coibidor por excelência, diante do qual tudo quanto realiza tem de justificar-se, tem de fazer-se de maneira precisa, consequente, ou arrisca frustrar-se. O justo não pode ser livre como o outro, cujas atitudes é raro lhe parecerem por inteiro justificáveis. Amiúde a ação alheia só lhe é passível de alguma compreensão - de alguma justificação - muito depois de ocorrida, quando então pode ele, o sujeito, o justo, concluir não haver o outro gozado de tanta liberdade quanto lhe atribuiu quando não lhe compreendia o por que do ato. Mas como uma mesma justificativa nem sempre é plenamente aplicável a toda circunstância ulterior, pode advir ao sujeito a constatação de que não previu uma ação subsequente do outro e, por conseguinte, que este é livre na ocasião, ainda que mais tarde venha justificar o ocorrido com o mesmo com que justificou anterirormente outro.

O sujeito é sempre justo. Só reconhece o contrário quando lhe manifestam admiração, ou seja, quando outrem, que sujeito também é, dá mostras de não lhe haver previsto os atos, de não os haver justificado. Só assim reconhece que ele, sujeito, ao menos desse modo é livre também: quando lhe mostram que não é tão justo quanto de si e para si acreditava ser. Mas enquanto não dá com o reflexo do seu ato no outro continua o sujeito para si mesmo sendo apenas justo, incessantemente limitado. Os atos próprios lhe aparecem todos como consequentes: conhece muito bem - ou assim acredita - o por que de cada qual. Mais ainda: quase sempre está tão certo de ser justo que lhe custa admitir ou entender que assim não pareça aos olhos do mundo. É por isso que recalcitra, a despeito de advertido, apenas para permanecer incompreendido, embora a insistência nesse ato lhe possibilite também convencer os demais. Quando há convencimento, sua atitude então não é mais encarada como livre e sim como justificada (ou justificável), podendo ser adotada por todos quanto querem somente permanecer justos. Mas lhe é possível também submeter quem não se convenceu: quando isto se dá, sua ação, a despeito de - ou precisamente por - permanecer incompreendida, pode tornar-se, mais do que reprovável, modelar e, por conseguinte, cobiçável por quem almeje ser - ou parecer - livre.

A associação de liberdade com ignorância não é recente. A argumentação acima apenas a apresenta de outro viés, talvez menos intuitivo do que os vieses clássicos, e faz uso pródigo das ambiguidades que acarreta. Trata-se em princípio de longa e livre paráfrase da sentença de abertura de ’Discurso do Método’, na qual a expressão ’bom senso’ foi substituída pelo termo ’justeza’, em boa medida sinônimo da anterior, embora aqui apareça num contexto diferente daquele sobre que Descartes escreveu (o da metodologia da ciência) e que o especialista no assunto não hesitaria em designar como ética. O ponto polêmico do texto é a oposição flagrante dos termos ’livre’ e ’justo’, conotando o primeiro, evidentemente, transgressão e o segundo, acatamento de alguma regra ou lei. A um moderno liberal isto ressona inequívoca provocação; não o censuremos por haver abandonado a leitura antes do presente parágrafo. Afinal de contas o sentido de ’transgredir’ fixou-se nos últimos tempos numa conotação negativa, a de infringência de algo a ser cumprido, quando em princípio denota apenas ’ultrapassagem’. Nesse contexto, portanto, a transgressão do indivíduo livre esboçada acima não acarreta necessariamente o rompimento de algum trato, lei ou regra, mas um ir além disso, nada obstante tal possa ou não dar-se de maneira procedente: é possível ter-se em conta princípio maior, mais abrangente e, por conseguinte, melhor, ao se ultrapassar um outro, não tendo sido outra a forja de heróis em cujos tempos foram tidos por vilões. Em 'Temor e Tremor' Kierkegaard tratou de caso extremo dessa espécie, o de Abraão desincumbindo-se do que lhe encomendara Deus, a morte de Isaac: em virtude de cumprir o comando divino estaria o patriarca isento de responder aos preceitos da moral - ou da ética - humanamente concebível? - pergunta-se o filósofo.

Em suma, para o sujeito o outro estaria, sim, transgredindo alguma regra, mas não por necessidade infringindo-a. É possível que num primeiro momento fosse o ato tido por infringência, mas, uma vez justificado - compreendido - pelo sujeito, logo passa a transgressão no melhor dos sentidos. É também possível que o sujeito não justifique o ato alheio, o que, na circunstância, o autoriza a qualificá-lo como mera infração. Em ambos os casos é do sujeito a ignorância, ao menos a inicial, até que entenda ele o ato alheio, que o veja como justo, ou quando se rende por fim à evidência de não ser capaz de justificá-lo. No caso último a ignorância é também do outro: ao menos enquanto agia não se deu conta de tão-só infringir - e não de transgredir. Esse ignorar tem algo de perverso: observe-se que enquanto ignora como agir melhor, o sujeito (ou o 'outro') ignora que ignora. E ignora que ignora por acreditar que sabe o que faz: uma completa obscuridade, estado a que se está permanentemente sujeito e detectável quase sempre de forma tardia. Mas tal só se entende por intermédio de Aristóteles, para quem o fim último (ele chamou de ’causa final’) de seja o que for é o bem - ou um bem. Como é evidente, trata-se de sorte de axioma, ou seja, de afirmação não passível de provar-se por intermédio de artifícios da lógica - ou do discurso, como se mostra, por exemplo, que ’Sócrates é mortal’, desde que se admita por premissa que Sócrates é homem e que todo homem é mortal. Descartes disse o mesmo do ’penso, logo existo’: assim como a asserção aristotélica esta seria passível de somente experimentação. Em ambos os casos é mister gozar o experimentador de mínima sinceridade, ou se condenará a um insustentável delírio cético (você consegue, por acaso, convencer-se de que não existe?), ou à ilusão de ser capaz de conceber e empreender algum mal, em suma, tornar-se-á louco ou presunçoso caso não leve a sério as experiências sugeridas pelos dois filósofos.

Assim, a despeito de crermos no contrário, ao acatarmos o ’axioma’ de Aristóteles admitimos de enfiada nossa incapacidade de produzir o mal. E de fato o produzimos, mas exclusivamente por ignorância (a única justificativa plausível para tamanho desatino), como se fora sorte de bem: no fim de todas as nossas intenções há sempre algo de bom, ainda que, tornadas em atos, consumem algum tipo de mal. É evidente, o tal bem almejado, ainda que mínimo, o é sempre referido a um sujeito ou a algo que ele tem por parte de si, pouco importa se em pessoa não é ele o contemplado, como é o caso das guerras, em que se mata e morre por bem de um conceito diáfano como o de ’pátria’, do qual o indivíduo está convicto de ser parte, ou seja, de haver sorte de identidade ou comunhão entre a pátria e ele mesmo. Há uma lógica e mesmo uma 'mecânica' de bem e mal, passíveis, inclusive e como quaisquer outras lógicas e mecânicas, de algebrização, por cujo intermédio se demonstra que o segundo é sempre espécie de subproduto da canhestra obtenção do primeiro. Isto, entretanto, é matéria para outra oportunidade, bastando de momento entender-se que tal só ocorre por intercessão da ignorância: soubesse o sujeito como efetivar o bem concebido, isto é, sem daí surgir mal nenhum, é seguro que o faria: por pior que a alguém pareça o ato de outrem, este foi de fato o melhor que conseguiu realizar - é claro, tomando-se o partido de quem o realizou. E, como se pontuou acima, não raro o sujeito ignora que ignora a maneira de obter um bem maior. Um ponto imprescindível: é suposto concordarmos, para a compreensão do quanto aqui se disse e se dirá, em que bem e mal de fato inexistem no mundo senão como juízos, digo, senão como nota aposta pelo sujeito a tudo quanto lhe é perceptível - aí incluído o pensamento. O mundo é composto de fatos - como o queria Wittgenstein - em si próprios destituídos de bondade ou maldade senão quando presenciados por um sujeito, uma consciência. Há razão para que se os considere como o fazemos, embora o discuti-la tenha de ter lugar noutra instância, por bem da brevidade. De momento é bastante admitirmos existir bem e mal, sim, mas apenas enquanto juízos, sem que tal torne inviável o que se diz aqui.

Descartes dá sua explicação do fenômeno: admite não sermos capazes de saber tudo (admite a ignorância, portanto), mas culpa a vontade, que passaria à frente do entendimento no ato de conhecer e - até por pirraça, é de imaginar - escolheria o pior quando o sujeito é instado à ação. Em sua divisão desmesurada do espírito humano o francês concebe uma vontade desgovernada, embora divina, perfeita, como o é o próprio entendimento, para pôr a salvo de errar a ’clareza e a distinção’ dele, entendimento, razão (o que em princípio soa como justo). Nesse passo põe de ponta-cabeça a idéia de liberdade afirmando ser seu grau mais baixo a indecisão (ou a dúvida, esta que ele usou como ’método’, segundo afirmação própria, para o achamento das verdades de sua metafísica) e o mais alto, a escolha (ainda que a incorreta?), quando se é, então, "ainda mais livre". Em certo sentido tinha razão com respeito á indecisão: caso se aceite o ’axioma’ aristotélico, ignorante seria quem, ainda que não a efetive, crê ter escolha, uma vez que, seja lá como decida realizar não importa o quê, isto a realizar-se será invariavelmente um bem e um bem cuja amplitude ou cujos possíveis corolários, maléficos ou não tão bons, dizem respeito a o quão conhecedor do mundo - o quão sábio, portanto - o seu autor é. E quem crê ter escolhas, ao menos na acepção comum de liberdade, se diz livre, no caso, para escolher, é evidente. Em suma, livre seria quem vê diante de si miríade de opções a serem indiferentemente pinçadas: livre por ignorar qual delas é a adequada à circunstância, na qual seria, enfim, a única  de fato a merecer realizar-se visando a obtenção de um bem maior - ou um bem reconhecível por ao menos outro indivíduo além dele próprio. Observa-se que aqui Descartes entendeu a liberdade em sentido um tanto diverso do que a entende o senso comum: a indecisão - ou a iminência da escolha - seria para ele o mais baixo grau de liberdade, enquanto para o senso comum isto seja talvez o único. Mas ao afirmar que se é "ainda mais livre" quando é realizada a escolha, em que sentido seria possível entendê-lo, se algum há? Imagino que no único possível, o de estar-se livre do cumprimento daquele dever (invariavelmente o dever de produzir algo de bom), se - e somente se - este de fato foi cumprido, embora seja incerto afirmar, pelas indicações que deixou, que Descartes tivesse em mente isso.

Neste ponto o ’sei que não sei’ socrático ganha sentido intrigante: estaria o sábio a justificar suas falhas, em particular as futuras, ou somente a demonstrar a impossibilidade de se praticar o bem perfeito? Em ambos os casos a resposta pode ser afirmativa, o que tornaria a filosofia exclusivamente em sorte de ato de contrição, não fora a orientação inata para o bem do indivíduo, axiomática, a fazer dela, filosofia, também formulário de estratégias para buscar o bem com a menor interferência possível do subproduto mal. Além disso é pouco mais o que afirma o sábio saber, como, por exemplo, que não há escolha, uma vez que, em se supondo que é de fato sábio,  só se tem sentidos para o bom e, caso houvesse no mundo alternativa a este, sequer a levaria em conta, sequer a perceberia; sabe também ser cambiante sua percepção do bem, tanto maior quanto for o seu conhecimento do mundo; e sabe que é livre apenas quando desincumbido do dever, coisa que, a rigor, jamais se dá, pois o desencargo de um é de pronto substituído pela solicitação de cumprimento de dever subsequente e, assim, para todo o sempre enquanto viver.

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