quarta-feira, novembro 10, 2004

Do cobro de proteger

A lição vem dos tempos de colégio, das noções de história e zoologia. Das primeiras entendi que, esfacelado o império Romano, o burgo medieval nasce do medo dos camponeses reunidos à volta de um protetor influente o bastante para constituir exércitos ao custo, em última análise, da maior parte das lavouras dos protegidos. Os animais também, quando gregários, em geral elegem o mais forte para os protegerem, ao qual permitem, entre outras coisas, desfrutar da maioria das fêmeas. Com o perdão pelo o espírito redutivo, arrisco supor ser isso a regra desde muito, muito antes do advento dos castelos e seus senhores, perdurando até nossos dias: a proteção finda por se mostrar dominação, com o mais fraco escolhendo a dor da extração regular de umas tantas gotas do seu sangue a rebelar-se e perder as restantes.

Um bom teórico da conspiração não perderia a ocasião de observar a conveniência, para um forte, de força equivalente e contrária na subjugação do seu rebanho particular de fracos. Não fosse o resultado usual das guerras, com a submissão de um dos lados, crer-se-ia que tais conflitos têm a função exclusiva de manter alarmados os ânimos dos 'protegidos' de ambas as partes. Esqueça-se agora a pluralidade inestimável de povos, nações e países acotovelando-se sobre cada palmo de terra ao redor do mundo, organizando-se cada um em torno a sua respectiva e particular forma de poder, uma arreganhando os dentes - ainda que velados em sorrisos - para as demais, sendo de admirar que todos não tenhamos sucumbido ainda à conflagração universal a despeito do delicado equilíbrio no qual as verdadeiras potências tomam para si - à imitação de senhor e servos no sistema feudal - a proteção dos estados menos robustos. Esqueça-se então o mundo e considere-se a escala mais reduzida de uma população e seu governante.

Nesse âmbito parece óbvia a utilidade da contravenção enquanto endosso do poder. Este se alimenta, em verdade, do que o corrói, à semelhança de quem, em sua hipotética e extremada miséria, se visse coagido a apascentar piolhos e congêneres sobre a própria pele para se alimentar. Pois qual o uso do governo para o indivíduo se na vida deste tudo corre perfeitamente bem? Para quê o senhor se nada ameaça o servo em sua gleba? Veja, leitor, não é natural para um produtor a demonstração da necessidade do seu produto caso esta seja algo duvidosa?

Assim, bênção maior não há para um governante do que o ladrão, o sonegador, o arruaceiro e o assassino comuns, à excessão dos que agem em seu nome. Nada mais útil para um juiz, um delegado, um parlamentar ou qualquer outro membro do poder, portanto, do que pilhar outro juiz, delegado ou mesmo senador, prefeito, presidente em conluio com criminosos ou assumindo suas funções. A metáfora, agora, tem de ceder a maior dramaticidade forjando a imagem do indivíduo um ou mais de cujos membros transmudam-se em malófagos ou sifonápteros descomunais devorados tão logo percebidos. Dada a assiduidade do fenômeno, mesmo nós, gente comum, somos acometidos do mesmo delírio dos paranóicos de conspirações e, em vista do caráter perfeitamente lógico, racional, do observado, nos vemos obrigados a suprimir destes a pecha de enfermos, intitulando-os doutores.

Cumpre lembrar que, nos meados do século XIX, Feuerbach demonstrou a presença desse mecanismo no universo da religião, cujos representantes ou oficiantes não poupam esforços para convencer os fiéis de suas habilidades com a evitação do mal pairando sobre as cabeças destes e, por fim, que a aplicação em maior ou menor grau dessa metodologia é observada na atividade publicitária. Reitero: escusado é ser um especialista nos meandros conspiratórios ou meramente um louco para dar-se conta disso.

Waldemar Reis

terça-feira, novembro 09, 2004

Pouco importa!

Já não é a primeira vez, pergunto-me se um dia lerei tudo a que me tenho proposto - refiro a biblioteca esplhando-se por virtualmente todo o apartamento onde moro, montada por sorte de compulsão esquadrinhadora associando temas como se cozesse interminável colcha de retalhos incompatíveis a olhos normais. Ainda hoje surpreendeu-me certa esperança: um exemplar repetido, edição francesa, de bolso, de 'A filosofia à época trágica dos gregos'. Efêmera esperança que, a repetir-se a ocorrência nos dias de todo um ano, teria ainda de cobrar-me disciplina que me subtrairia para sempre o exercício de muitos prazeres, alguns não menos cobiçados, outros dificilmente confessáveis! Como agravante, a incerteza, partilhada por todos, quanto à página marcada à revelia como a final.

Ora, por mais de uma vez e de muitas maneiras já se o disse e com isto poderia consolar-me, livros não são para serem lidos de cabo a rabo por obrigação e sim degustados enquanto se nos parecem saborosos, ou devem ser postos de lado. Particularmente nutro opinião em certos aspectos contrária: com raras exceções, os livros de hábito escondem, mesmo trás a inépcia do autor, quando não exibem objetivamente, um sem número de preciosidades que, mesmo estimulando o escárnio, revelam uma época, um modo de pensar, outro de contar, e assim por diante. Claro, digo isso tendo em mente os escolhidos por mim, em grossa maioria merecedores das revisitas de que é sinal extremo a duplicata com que topei no correr de laboriosa e escasssa faxina. Os outros, não adquiridos, por sua vez, podem ter quatro perfis distintos: os não encontrados, os desconhecidos, aqueles ainda por se escreverem ou os milhares que sequer me atrevo a abrir.

Desde a capa, não apenas desde o título, é possível dizer com razoável precisão se é legível um livro, sem necessário ser expor-se ao risco de folheá-lo. Por motivos óbvios, especial cuidado é recomentdável com as muito belas, em geral feitas mesmo com o propósito de desestimular as incursões mais tímidas ao conteúdo e o de causar sensação ao lado de similares na estante. Enganos, entretanto, são tolerados desde que não se tornem rotina: não sei onde, por exemplo, ainda guardo por descaso um volume de aspecto muito simples, feio até (indício também pouco seguro da qualidade interna, hoje o sei!), e título algo expressivo, de que, na ausência de qualquer informação na contracapa, só consultei o índice à hora de comprar: além de versar sobre ontologia, dele não posso dizer nem a língua em que se escreveu, não obstante alguma semelhança insidiosa com o português.

Salvo casos como esse, abandonar um livro é como deixar alguém falando sozinho. Há quem o mereça, é bem verdade, mas a nobreza, quando não a caridade e quase sempre a agudeza ou a perspicácia ensinam, se não a tolerância, decerto o artifício de postergar o assunto para quando o desenfado o permitir ou, quando oportuno, habilmente manejar um punhado de tópicos de modo a atalhar o interesse com suficiente precisão. Ler é dialogar por intermédio da própria escuta e toda boa conversa é sorte privilegiada de leitura: se não ambos, ao menos um dos interlocutores tem de prodigalizar cortesia ou sequer se dê início à charla.

Os livros não são afeitos ao melindre como as pessoas. Isto não significa, entretanto, que se empregue menos cuidado no seu trato. Pois, se não eles, pode o acaso tomar para si, de conluio com outro livro, o encargo de desagravá-lo quando, ao cabo de um parágrafo, pode-se dar conta da dimensão da incúria! Fosse mais prudente porventura termos jamais aberto este ou o anterior, ao menos em respeito à própria reputação: sim, este é outro gênero de lapso contornável somente pelos mais experimentados na convivência com livros. Aí, noblesse oblige, é dar à palmatória a mão e retomar o primeiro com a precaução da humildade e cuidar para, vexando-se, não generalizar o procedimento e entregar-se irrefletidamente àqueles conteúdos bolorentos cujo destino é permanecerem magnificamente encerrados em suas capas em prol do bem universal.

Não é pela vastidão do planeta ou pelo interesse da diversidade de hábitos e culturas dos seus rincões que se deve pautar a determinação de conhecer e desse modo tomar o primeiro transporte à disposição e palmilhá-lo copiosamente. É suficiente, não raro, desembarcar uma ou duas estações de metrô adiante daquela onde é costume ficar-se para se compreender a inutilidade de uma excursão à China ou à Itãlia, por exemplo, não obstante chineses e italianos assim encontrados falem bom português até e em muitos aspectos compartilhem conosco, nativos, espécie transtornada de patriotismo. Inumeráveis idéias, relatos e poemas, de forma análoga, não necessitam de verificação in loco, bastando-nos as notícias suas colhidas em outros livros, mesmo sendo estas desfavoráveis. Pois do cotejo delas é possível obter-se boa noção daquilo de que falam, considerando-se inclusive ter sido essa a forma de preservação de grande parte do saber. Forma espúria de conservação essa, dirá um certo bom senso, é verdade, mas observe-se uma coisa: tome-se um original qualquer e, desconsiderando o fato de nele abundar a menção a incontáveis originais outros, formule-se opinião ou resumo (termos, em verdade, sinônimos) do que se leu; em seguida consultem-se resenhas, contestações ou assentimentos diversos do volume lido e, ato contínuo, cotejem-se todos, inclusive a sua opinião, essa lavrada recentemente; caso compartilhem da décima parte do que tratam, exorto-o, leitor, a interromper aqui a presente leitura e dela mofar. Dessa esperança não se vive, a de compartilhar juízos, mesmo consigo próprio: não será idêntico ao de hoje o juízo de ontem nem o de amanhã, ainda que jamais se volte a defrontar com o que o suscitou.

E sobre semelhantes transfigurações são erguidas outras obras, esteios, por sua vez, de suas sucessoras, e assim enquanto durar o gênero humano. Isto é em breve notado pelo leitor contumaz: com ou sem intenção, os escritos aproveitam-se uns dos outros de modo que se está sempre compilando mais ou menos o produzido no passado. Assim, apesar de todo bom livro - falo daquele merecedor de ser aberto - cobrar a leitura de todas as suas páginas, a freqüência a seus semelhantes termina por mostrar, com o tempo, um universo cujos objetos, sempre os mesmos, aparecem ora magnificados, ora reduzidos, seja pela distância de que são apontados, seja pelo apreço ou pela importância a eles atribuídos pelos autores. Tal observação, por uma lado pode signifcar, para uns, a irrelevância de se abordar não mais de um punhado de volumes eleitos ao acaso durante suas vidas; por outro, para aqueles habituados a desfrutar dessas quietas aventuras perturbadas apenas pelo revirar compassado das folhas impressas, todo livro é como placa de sinalização num caminho onde só há incontáveis semelhantes, remetendo umas a quaisquer e alimentando a esperança desses aventureiros de ao menos acercar-se ainda mais de algo que, não obstante muito próximo, jamais será tocado.

À guisa de conclusão, poderia aqui ostentar uma assunção de cunho realista, no sentido mais comum ou limitador: não, jamais lerei tudo quanto venho colecionando, sequer mesmo a terça parte, visto eu continuar adquirindo mais e mais volumes cujos temas estimo como do meu interesse. Entretanto, se tomo em sentido rigoroso o conteúdo do parágrafo precedente, posso assumir algo diverso, mais conforme um espírito fantasioso, alegando já haver lido todos mesmo não conhecendo mais do que uns poucos. E se continuo, enfim, nessa busca do invariável, do inútil, portanto, é por cultivar aquela disposição de quem está diante do palco e, sabendo ser fingimento a cena - excluo os loucos, naturalmente - já vista um sem número de vezes, deixa-se perpassar por multíplices e renovadas emoções até quando ocupa o mesmo assento.

Waldemar Reis

sexta-feira, setembro 24, 2004

Casuísmo mundificado em Gracián

Gracián não foi o primeiro a me alertar para o fato, pois é de amplo domínio, esquecido ou desdenhado apenas por incautos. Em seu opúsculo em prol da prudência - que também chamou de oráculo - a matéria retorna como que em ciclos, envolta em roupagens diversas ou subordinada a um ou outro dos tópicos principais da obra. É resumível numa palavra: inveja, assunto de presença insidiosa nas vidas de todos. Atido copiosamente ao senso comum, decerto não traz ali - e porventura nem se o quisesse - maiores novidades o conceito, embora fascine a artesania perifrásica com que o mais das vezes é posto em foco: em virtude disso, a cada aparição é como se o vemos por um lado até aí desconhecido, despertando a surpresa do inusitado.

Por certo em virtude da diversidade conflitante do gosto geral - em grande parte parecendo-me insossa futilidade ou autêntica loucura - foi que me dei conta tão tardiamente de a inveja acossar apenas no tocante àquilo de que mais se gosta! Até aí, nada de novo, suficiente é consultar o mais breve dicionário para constatá-lo. Quanta perversidade, no entanto! Não fosse o autor desautorizar de modo explícito o paradoxo, o qual define como "um tipo de engano que parece plausível a princípio e nos surpreende com sua novidade picante" e como algo que "decreta fraqueza de discernimento e falta de prudência", desaconselhando-o particularmente quando se o utiliza para fugir ao vulgar, sua finura conceptista parecer-nos-ia flertar permissivamente com o instrumento consagrado pelo eleata Zenão.

É paradoxal a inveja: conclusão obrigatória ao término da leitura das sucessivas exposições desse sentimento no seu oráculo, apesar das objeções de Gracián às antinomias. Aliada às evidências da constância no quotidiano universal e do esforço habitualmente subentendido na iniciativa de preveni-la ou de esquivá-la, a conclusão acima acarreta outra: o vertiginoso pendor humano para conviver com o disparate. E, em assim o sendo, é naturalmente perversa a inveja, visto que oblitera, no todo ou em parte, o desfrute do bem, transtornando-o ou transfigurando-o numa sensação de mal.

De mecânica conhecida, não abole em absoluto a noção de bom em quem a nutre. Caso o fizesse não apresentaria contradição, sendo antes sorte de bênção, de bálsamo, poupando sua vítima, exclusivamente confinada ao reino maligno, do cotejo que a faria preferir estar no reino oposto. Sua malignidade está em exercer-se a plenos sentidos, a condição de excelente discernimento de joio e trigo e, o pior, na certeza de se estar em desfavor.

Fato: é profunda a dificuldade de julgar a inveja, em especial quando se é alvo dela. Tampouco suas vítimas estão aptas a fazê-lo, ou se encontrariam a um passo da cura: do contrário, sentem-se tomadas de legítima revolta ao experimentá-la, da qual não lhes ocorre de pronto fugir. É claro, há invejas injustificáveis, essas originadas na falta de discernimento, quando há desejo mórbido de possuir o que se tem de sobejo. Tolerá-las é fonte de confusão, como quando se admite haver ao menos ponta de despeito em todo sentimento de admiração.

Refiro-me não a estas últimas, mas às nutridas em completa lucidez. Gracián nos dá um exemplo de especial crueldade: "espere pouco dos que têm defeitos físicos, pois gostam de se vingar da natureza por tê-los honrado tão pouco". Tendo-se em conta a finalidade da obra em foco (a de oriente em meio ao comércio humano) e o lugar e o tempo em que se escreveu (Espanha em meados do século XVII), ainda que perversa, é no mínimo atilada a observação. Permito-me esclarecer um pouco mais: não obstante sua condição clerical, da qual se veria constrangido a exortar os desafortunados à tolerância, quando não a regozijarem-se com os reveses (pois nestes supõe a igreja promessa de bem-aventurança post mortem), o autor toma direção contrária, por decerto dar ouvidos antes às evidências que às presunções santificantes da fé católica, uma vez a realidade desses infelizes a essa época ser eivada de sofrimentos, o principal dos quais a acentuada dependência do favor geral, fonte a alimentar temperamentos acerbos.

Por essa e por outras tantas tiradas análogas o realismo do jesuíta, assombroso, poderia ser dito sem exagero como espécie de maquiavelismo plebeu, uma vez dirigido não a déspotas, como o do florentino, mas ao vulgo. Pondo de lado a severidade disciplinar de sua ordem, a qual proíbe exposições públicas dos seus membros, não era outro o motivo, segundo parece, para que assinasse seus trabalhos com pseudônimo e para que alguns tivessem condenada a publicação, sujeitando-o às sanções costumeiras até morrer. Doutro lado, isto faz de Gracián produto legítimo do iluminismo humanista - que elevou a circunspecto paroxismo - cultivado pelos sectários de Inácio de Loyola, esse cuja práxis tanta celeuma provocou ao longo da colonização ibérica das Américas.

Seu senso de realidade um tanto ácido aproxima-se deste utilizado na prática psicanalítica hodierna, sorte de medicina cuja sabedoria retira os pensos de chagas abertas, arejando-as em detrimento do pejo universal de tê-las à vista. Mas não o faz sem antes ter à mão unturas eficazes no avio da cura, de todo distintas das prescritas na fé. Aos defeituosos, bem como aos sãos, nem resignação nem a incerta recompensa póstuma por se terem resignado: ministra-lhes Gracián medicamento dos mais empregados na atualidade, distribuindo-o racionalmente nas composições de múltiplos ítens de sua botica de prudência, a auto-estima. Todos estamos informados dos prodígios desse fármaco ancestral, em uso na produção de verdadeiros heróis na superação das perversidades do fado e que, embora faltos de membros e órgãos ou das funções destes, são recebidos em Olimpia como os que a excelência aquinhoou. Muito se deve dessa transformação às condições propiciadas pelas técnica e indústria advindas no mundo atual, conferindo significativa ampliação das atividades independentes dos portadores de imperfeições, determinante direto do apreço pessoal.

A inveja, mostra o jesuíta, mesmo nutrida com motivos justos (como os aleijões), é de grande poder infeccioso: qual faca de dois gumes, faz vítimas somente quando, instalando-se em alguém, atinge também um alvo ao menos. Até aqui discorreu-se sobre como frei Baltasar socorre as primeiras; entretanto, sabendo ele da inutilidade das curas isoladas nesse caso, trata de acudir também a outra parte.

Saca, portanto, do seu alforje filosofal, de primeiro, a indiferença, medicina em verdade preventiva, de pouca valia quando já se foi atingido pelo mal - adverte-nos. Em seguida mostra, sem traço de afetação, outro frasco, e o apresenta como o continente de elixir definitivo, eficiente na profilaxia tanto quanto na debelação das crises agudas e dos estados crônicos nos tocados pela inveja alheia. Da naturalidade com que nos exibe o composto depreende-se a sua certeza de o conhecermos suficientemente, mas em vista do pasmo geral, recita um a um os componentes: generosidade, o principal, à qual se adicionam em diversas proporções complacência e, naturalmente, amor-próprio, ali constituído de mérito e talento. Já advertido de nossa fraca memória, o frade finaliza enunciando os efeitos colaterais, infensos apenas aos verdadeiros enfermos da inveja, esses dos quais ela emana, para quem a mistura tem o efeito dum dobre de finados.

De curioso nos tratamentos é se fazerem ambos com o uso da auto-estima que, enquanto agente no invejado, é nefasta para o invejoso que não a ingeriu ainda. De efeito miraculoso também, se ministrada apenas neste último, poupa igualmente o outro dos sintomas malsãos. Conceda-se uma distinção crucial: a estima de si indicada aos invejosos não é a mesma prescrita aos invejados, uma vez a dos primeiros ter de forjar-se em puras vontade e imaginação em continuado esforço de negar a evidência decepcionante, enquanto a dos derradeiros tem o frescor da realidade ditosa, dispensando artifícios quaisquer para se hipostasiar. Eis segredo somente acessível aos versados na alquimia sútil do espírito!

Nada mais natural do que o olho desconfiado seguido de explosão biliar do catolicismo em face das práticas desse físico de almas, seu sectário. Semelhante fúria se justifica somente nos cria-cobras confiados em pedagogia de falso liberalismo cujos fundamentos são a inépcia e o comodismo dissoluto. Picada pelos reformismos de meados do século XVI, à fé católica houve por bem tolerar o inaciano, haja vista o luterano ter-se afastado por conta própria. Via-se então, cerca de cem anos depois, desafiada por outra renovação, desta feita no seio daquele que escolheu indulgenciar, pondo em xeque um dos esteios católicos, terceira das virtudes teologais, a caridade, o que, por força da fraca engenharia dos alicerces religiosos, debilita os restantes.

Atropelando Francisco de Assis e tantos penitentes como os seus confrades jesuítas amargando febres e silvícolas num Mundo Novo, Lourenço - firma temporal do monge Baltasar, audaciosa o suficiente para se apresentar com o seu próprio sobrenome - desdenha dessa forma transfigurada de amor ao próximo (a piedade, sentimento que ensina sorte de dolorosa mescla de sujeito e objeto) subjazendo ao ato caridoso, dizendo: "não se tornar infeliz por compaixão aos infelizes". Apenas Borges, no fragmento final dum seu evangelho apócrifo, faria possível concisão maior: "felizes os felizes"!

Tanto, não obstante, não diz tudo. Sobreviver à inveja seria tão-só uma etapa - grandemente compreensiva, é verdade - na obtenção da felicidade, cujos postulantes deveriam gozar também de plenas discrição, perspicácia, sensibilidade, sensatez, coragem, cautela, honestidade, verdade, prudência, entre outros atributos numa cadeia de virtudes de que é merecedor exclusivo o 'herói universal' (para certo despeito do Zaratustra e para o deleite de Schopenhauer, Godwin e Feuerbach), saudável e sábio como só um santo pode ser. Um santo do século no século. Assim seja!

Waldemar Reis - 24/09/04

domingo, setembro 19, 2004

Caprichos

"A arte é vã se não exerce uma influência." (Atribuída a Francisco Goya, quando admite o próprio erro de ocultar - temendo a Inquisição - a sua série 'Caprichos')

I
A velha tese da "arte inútil (vã)" em oposição à da "arte engajada (influente)"...Ambas são primas, não muito afastadas, das idéias de "arte-arte" e "arte-não-arte".

Uma vez eu me perguntei, vindo de um debate de filosófos(!), o que seria, de fato, inútil no mundo. Ora, você me diria: lá me vem o "absoluto"! Nem querendo - redargüiria eu: como posso lidar com o "absoluto" senão como fantasia, como quimera da pirrônica lógica, isto é, do pensamento, num mundo que é o reino do "relativo"? Utilidade, em suma, diz respeito a um sujeito, sempre; trata-se de um valor, tão-só. "Inútil", por conseguinte, só teria sentido figurativo, meramente retórico, o que, em se tratando de assunto seríssimo como o é a arte, tende a enfumar o entendimento. Dizê-lo em circunstâncias como essas é indício da falta de um olho ou de indolência, bastando quando muito um passo para se deparar, do outro lado, com a utilidade. E que utilidade! Tudo é útil, em última análise, restando saber para quê.

Seguindo o raciocínio da tese enunciada no princípio, sendo "inútil", salva-se a arte se é "engajada". Então repito aqui a pergunta acima, usando o artifício matemático de substituir apenas as variáveis, no caso, "inútil" por "não engajado" e, antes mesmo de você fazer muxoxo para a sombra do "absoluto" parecendo retornar, dou a resposta: é também impossível qualquer ocorrência não engajada com as demais suas coetâneas.

Tudo, por conseguinte, seja ou não arte, é útil e engajado. E essa oposição "inútil" versus "engajado" relativa à arte sempre foi indício, para mim, da meia coragem de certos oprimidos por regimes ditatoriais: como o poder é composto sempre de gente burra (visto ser burrice detê-lo), nem sempre se inteira das cifragens que urdem os "engajamentos' nos seus "objetos de arte" e, quando o faz, ainda há a chance de o "artista" sair pela culatra das múltiplas interpretações, o velho "qual é, meu irmão? não é nada disso!".

A utilidade da arte, acima das esferas comezinhas de oposições como essas, sempre foi e será a do despertar do conhecimento, a do fazer por simplesmente ser possível esse fazer (dado o material utilizado prestar-se a manipulações e a combinações a que se presta) e, mais ainda, feito o objeto, a do dizer-se o sujeito que o aprecia (seja ou não quem o urdiu), para si, 'isto é bom' ou 'isto não é bom', a despeito de sujeito outro discordar.

Todo o resto é questão pura de mercado ou, dizendo-o de outro modo, de arrebanhar o maior número possível de indivíduos em torno a uma certa preferência com vistas ao acúmulo de riqueza de outro determinado indivíduo. Só. Nesse contexto tem maquiavélico sentido a oposição "arte e não-arte", como o querem as atividades 'críticas' dos srs. Romano de Sant'Anna e Ferreira Gullar.

O artista lança ao mar mensagem numa garrafa: não sabe se a encontrarão e se, lida, será sequer entendida, diga-se, se o destinatário vai 'vibrar' na mesma freqüência em que 'vibrou' quem a compôs. Os de pura têmpera não acalentam a menor esperança de resgate em seu isolamento ou nem mesmo o querem, sendo seus textos quase sempre unívocos: 'deixem-me em paz!'

Uma observação final: embora o negue a Estética de orientação hegeliana, o "belo natural" é certamente o modo mais à mão para o exercício do estopim do conhecimento (a arte), bem como está provido, contra o que postulou o alemão, do "Espírito", pois o "Espírito" (esse sucedâneo de "História") está por necessidade em quem o vê, quem o aprecia: a Natureza não é aos seus olhos, meu caro amigo, a mesma que foi ao olhar de Lucrécio. E tanto assim o "belo natural" o é que vem sendo objeto constante da cobiça imitadora do "belo artístico" ao longo das eras. Vem-se tentando superá-lo - ao "belo natural" - como se por si não fosse ele capaz de mover, no sujeito, o conhecimento, de suscitar-lhe os juízos "bom" e "mau" dos quais este se constitui. Vã pretensão. No fundo, seguindo esse caminho, é possivel que o "belo artístico" nos tenha prestado um escabroso desserviço, condenando-nos a progressiva (e espero que reversível) insensibilidade, contra a qual só mesmo os reality-shows, os espetáculos terroristas ao vivo, entre outros, funcionam.

II
É à consciência da duração da obra de arte e da missão final da sociedade humana que devo o bom gosto de recusar a arte-panfleto, a arte-denúncia, a arte-choramingas, essa representante de circunstância cujo destino tem de ser o imediato esquecimento, o mais autêntico desdém.

Concebida como o é a vida, para durar enquanto possível for, a obra aspira à perpetuidade, à perene juventude do seu potencial evocativo do ser da consciência, que é o perene conhecer. Tem de estar, portanto, a serviço dos valores imorredouros, não daqueles que quer o humano ver extintos o quanto antes.

As condições tirânicas, assolando a comunidade humana ao longo de eras, podem parecer merecedoras - por tanto durarem - do olhar do artista. No entanto, figuram em meio a tudo quanto quer o homem ver banido de sua convivência pois, podendo ser até logicamente dedutíveis do conceito mesmo de grei, estão em contradição com a idéia que, humanos, alimentamos de nossa própria condição, e, se devem integrar o discurso artístico, que o façam como o fazem os seus possíveis materiais, como o são o barro, o som, as tintas, as palavras, as idéias, e tudo mais existindo no mundo. Que não se lhes erijam estátuas, por mais degradantes que nestas estejam representadas, que nem mesmo se as execrem, pois isto é ocupação dos arrazoados, da filosofia. No mais, que sejam tratadas com a indiferença com que se pintam as gramíneas numa paisagem, que sua necessidade na poesia não exceda a dum artigo definido cuja presença pode, ademais, ser suprimida num sem número de casos: são apenas parte daquilo sobre que, inevitável e lamentavelmente, temos de circunstancialmente nos apoiar enquanto não encontra o pé sítio de legítima firmeza onde pisar.

Por fim, sendo possível, o aconselhável mesmo é que se lhes passemos ao largo, que as ignoremos com toda a sinceridade, pois as condições tirânicas alimentam-se de tudo quanto se lhes é lançado - seja contra, seja em seu favor - e em especial do que há de nefasto, de pútrido, de negativo, que a ingenuidade ou a incúria podem num rasgo deixar escapar. No mais, que isto seja tomado como tão-só um manifesto de gosto muito pessoal, muito embora procurando fundar-se em princípios que tanto a Ética quanto a Estética podem facilmente comprovar, como o imperativo de equanimidade no trato dos homens e a vocação para o eterno intrínseca à concepção da obra de arte, ainda que eternidade possa significar, para muitos, a intensidade de um grito, a pungência de uma dor, a efemeridade de um suspiro.

III
Devo de fato ter sido inexplícito! Nem o maior esforço dedutivo, untado ou não dos favores da retórica, parece capaz de trazer a lume em sua pureza a idéia fermentada no isolamento do indivíduo. Inserta no comércio dos homens, é trocada de mão em mão, às vezes sem sequer um olhar de viés, sendo amarfanhada, feita em pedaços, findando seus dias dispersa em outras idéias, em geral suas opositoras, que os mais canhestros expedientes logram aglutinar para serem dadas em seqüência à bulha indiferente e ignara, e assim para todo o sempre. Não obstante, persisto.

E não vou empregar-me no arrazoado devido, por certo o melhor para o auxílio da estutltícia sinceramente empenhada em ilustrar-se. Atenho-me, enfim, a argumento único de prova singela. Que fique clara de um só golpe a utilidade seminal das idéias estudadas na hoje alcunhada Estética, entre elas a de arte, na formação disto que você é, leitor, seja para bem, seja para mal. Sim, e é o gosto - a preferência - o indício singular de elas existirem de fato. Não, não são delírio: em absoluto. Assim tem sido desde o princípio, o seu e o meu, o de todos: gosta-se ou não das coisas, cada qual nutrindo suas preferências. Por conta disso - por favor, continue a seguir-me, não se deixe flagrar colhendo provas para o evidente! - tudo o mais, como eu principiava a dizer, por conta disso se faz possível: a fome e a saciação, o desprezo e a paixão, a música, a poesia, as promessas, as deduções, e mesmo a guerra se faz por se gostar mais ou menos das coisas.

Vem-se ao mundo em branco, cá começando a riscar-se a história de cada um. De sabedoria inata não se traz muito: quem sabe a capacidade de distinguir o antes do depois e a de reter o que nos impõem sem descanso os sentidos. Naturalmente somos dotados de um só poder, o de, segundo a conveniência, dizer não: não aprecio, não concordo, não faço; sempre segundo certos pressupostos, parte dos quais só com tempo e continuado esforço você seria capaz de discriminar, todos, indiscutivelmente, referidos no seu gosto. Dado tanto, vá tomando as peças com o máximo critério, sem a menor precipitação e, quem sabe ao cabo de pouco mais ou pouco menos de um punhado de lustros você chegue a si mesmo! Indo um bocado além, caso a fortuna lhe falte para todo o sempre, em sua inefável melancolia você porventura encontre toda a ciência, quase inteira a sabedoria, as quais lhe serão, suponho, inúteis em vista da circunstância de sua pessoal eternidade. Veja aonde chegou: a quase tudo, havendo muito mais em função do quanto dure você. E isto a partir de quase nada, corrijo-me, a partir do quanto na estrutura ou na essência da arte é vital!

É para isso que ela serve: para mantê-lo sempre novo, como se a sua história começasse a se escrever a cada instante; para conservar ativo, ágil, o mecanismo de sua sensibilidade. Pois, mesmo sendo - do seu ponto de vista - má, uma manifestação de arte jamais deixará de ser arte enquanto houver alguém que a aprecie como tal, nada perdendo, de um modo ou de outro, em utilidade. Continuará útil para você, que a despreza, visto que o encorajará ao desfrute de outras manifestações de arte e, não encontrando uma sequer do seu agrado, ainda poderá conduzir seu olhar para o mundo, para a natureza donde ela e suas congêneres vêm.

Portanto, não esqueça: você está aqui para o puro desfrute. Não vá se meter em encrenca. Se não der por ora, por certo depois dará. O mundo o convida insistentemente.


IV
Erro histórico: 'belo natural' versus 'belo artístico'. Ora, você me diria, ninguém mais pensa segundo semelhante critério: Hegel, nesse pormenor, está morto e enterrado. Ledo engano! A oposição ainda está presente, se não de forma explícita, em asserções como: 'isso não é arte'. Exagero? Não. Há, evidentemente, o que não é arte, mas o critério para distingui-lo não pode ser: 'é ciência', 'é filosofia', 'é esporte', 'é comércio', entre muitos. O motivo é simples: embora possam ser individuadas, tais áreas de conhecimento ou de atuação não possuem limites muito precisos, imiscuindo-se umas nos terrenos das outras, entre os quais o da arte. É comum ouvir dizer de alguém ter feito de uma ocupação qualquer 'verdadeira arte', evidência que pouco diz, não obstante, pois pode aparecer quem pense em contrário, às vezes considerando outrem como 'artista em seu ofício'.

Há duas coisas a considerar a partir do exposto: a primeira, que tudo quanto se disse dos outros fazeres e de sua imbricação com o fazer artístico pode aplicar-se confortavelmente ao objeto natural; a segunda diz respeito à questão do sujeito, o verdadeiro responsável por essa aparente baderna na determinação do que é ou não é arte.

Começo discorrendo um pouco mais sobre esta última consideração, em princípio fazendo apenas uma observação: é inegável a preponderância de um sujeito no estabelecimento do que seja artístico, sendo suficiente aparecer alguém dizendo 'isto é uma obra de arte' para que todos nos voltemos à apreciação disto cujo status foi de súbito alterado. Muitos aceitam prontamente a nova designação, enquanto outros se põem a disseminar dúvidas na forma de, por exemplo, 'por que isto é arte?' ou 'ora, se isto pode ser arte, então aquilo também pode!' Salta aos olhos, enfim, a pergunta: 'o que faz algo ser tomado como artístico?'

Respondê-la foi em parte a intenção do "Capricho" antecedendo imediatamente o presente. Retomo-o, porém: é profundamente pessoal o que chamo de 'a outorga do rótulo de arte' a objeto qualquer, havendo entretanto algo em comum a todas essas outorgas particulares, a saber, a circunstância de o tal objeto haver desperto num sujeito a experiência valorativa fundamental para que este, enquanto repositório de conhecimento, incluso o de si próprio, enquanto consciência, portanto, se faça viável. É na apreciação dita 'da arte' que se exercita, do modo mais fundamental possível para uma consciência já preenchida do tecido vário do viver em todas as dimensões (como a social, a biológica, a psicológica, entre incontáveis outras), o potencial de dar-se conta de si e do mundo. Nesse transe apreciativo o sujeito 'pega no tranco' como se, à imitação dum automóvel muito usado, estivesse 'afogado'. Por isso, nem sempre se espera pacientemente pelo advento de alguma 'pura' manifestação artística, apressando-se em elegê-la em meio ao que de mais imediato se dispõe.

Num estudo - de nome em extremo complicado para ser repetido sem melhores motivos - escrevi que o processo de outorga do rótulo de arte às coisas possui uma outra vertente, simultânea a esta e que produz a outorga do rótulo genericamente chamado de 'objeto do afeto', a qual se volta com exclusividade para o que entendemos como 'seres'. Assim a 'afetividade', aqui tomada de uma maneira mais abrangente, recorta o mundo em duas classes de existentes, ambas merecedoras de nossa apreciação: a dos seres, nos quais é possível aplicarmos a etiqueta de 'amados', e a das coisas, etiquetadas oportunamente como 'artísticas'. Familiares, amigos, animais e plantas de estimação fazem parte do primeiro grupo, enquanto os mais diversos objetos inanimados e mesmo ações (teatro, dança, cinema) pertencem - ou podem pertencer - ao segundo.

Como é evidente, passamos a vida nesse exercício compulsivo de pôr a funcionar os lastros do conhecimento, os lastros da consciência. Não há um momento sequer de pausa, exceto, é possível, o do sono sem sonhos! À mesa, diante do espelho, escutando uma canção, lendo um livro, realizando bem o nosso trabalho, passeando ao ar livre e, no caso de insatisfação extrema com todo o passível de ser amado ou apreciado como artístico, inventando ou criando algo que - segundo cremos - suscite em nós esses sentimentos! Outra curiosidade salta aos olhos: sendo tudo passível de se tornar ser amado ou objeto de arte, a depender do arbítrio exclusivo de cada sujeito, cai por terra de uma vez por todas a distinção de arte e nâo-arte, uma pulseira de miçangas só possuindo mais valor do que um cerâmica de Picasso para alguém em particular e em certas circunstâncias. Uma questão simples de mercado!

De volta ao 'belo natural', Hegel disse ser impossível apreciá-lo como se o faz com o 'belo artístico' pelo fato de nele, o 'natural', não estar presente a 'Idéia', ou seja, sendo embora 'belo', não é o 'belo ideal', produzido por quem urdiu a 'história', o ser humano. Estive convencido disto por tempo suficiente para hesitar confessá-lo! Embutido em correntes que prevalecem até recentemente, o hegelianismo foi grosso retrocesso, pois um senhor muito meticuloso, do tipo que passeava diariamente a certa hora a ponto de os relógios serem acertados segundo os seus passos e cuja filosofia maior se manifestou já em plena maturidade, já havia apontado o caminho mais confortável para os afeitos a jornadas como a presente: já muito velho, quando resolve investigar a fisiologia do 'juízo', todos o tomam por senil, mormente porque suas elucubrações determinariam a demolição da prevalência, na determinação do que seja 'belo', 'arte' e outros valores mais, do criador, do autor, colocando em pauta este outro sujeito, sem o qual tudo, tenha ou não um criador reconhecível ou nominável, não pode ser 'belo' nem 'artístico' ou, a rigor, não pode ser nada.

É verdade, esse senhor (I. Kant) ainda estabeleceu, quando investigouo conceito 'belo', a distinção cuja eliminaçâo a arte futura, em especial a do século XX, viria dissipar, falo do 'belo natural' e do 'belo artístico', a qual assume, no pensamento hegeliano, função de lastro. Semelhante deslize, natural uma vez existirem objetos aparecidos da natureza e outros urdidos pelo homem, deveria ser dissipado em vista do que desenvolveu em torno ao papel do sujeito, esse cuja apreciação, na qual está em jogo o 'gosto', é o rito que confere ao objeto assim apreciado o valor pertencente a si apenas e do qual pouco se pode inferir, menos ainda se nele se faz a distinção entre o que se produziu pelo homem e o que se encontrou assim como está no mundo. A presunção de deverem ser apreciados de maneiras diferentes os objetos oriundos do homem e da natureza, se levada a miúdo (como o fez Hagel), traz a questão da arte de volta ao centro no qual se considera o objeto como dotado das características que autorizam a apreciação, que a suscitam em a direcionando para o modo artístico, para apreciá-la como arte em oposição a outros cuja estrutura nos determinaria a apreciá-la como objeto da natureza: tal centralização no objeto, já abandonada em Descartes e em Hume, é inútil pois num sem número de situações é indecidível a questão da origem, não obstante a apreciação ocorra ou possa ocorrer indiferentemente, como se mostrará mais abaixo.

De que lhe adiantaria, leitor, eu estar escrevendo isto daqui se você não o lê agora? Sim, falo somente do seu ponto de vista, porque do meu, além de ser quem o escreve, sou também quem primeiro o lê. Não o torno em arte, tampouco você, por tão-só o ler, mas é possível que um de nós - tantos são os que não o criaram mas o leriam - o faça! (Ainda há esperança!) Hegel esqueceu que a tal 'idéia', por certo verossímil, não está nas coisas, mas em quem as percebe. O ideal está no sujeito, a este fornecendo os critérios para as escolhas e rotulações que produz.

Estive, faz tempo, em Campos do Jordão durante o inverno, numa sala de extraordinário pé-direito na residência de um conhecido. Isolado em imensa parede, um quadro pequenino demais para o vazio ao seu redor. Desconheço o motivo de minha atenção voltar-se periodicamente para ele durante a conversa, aliás, muito interessante. Tratava-se de paisagem - a despeito do tamanho da moldura e da distância para um olhar míope como o meu - realista. Passado um tempo, cessou a fumaça da chaminé na casinha dentro da paisagem, o que tomei por ilusão, visto as pessoas me chamarem mais a atenção do que a pintura onde, uma hora ou duas a mais, se fez noite! Estupefato, fui tirar a limpo as impressões e, perto do estranho objeto, percebi tratar-se de uma janela, não menos surpreendente pelo seu tamanho relativo à parede do que o tinha sido o suposto quadrinho. Eu passara umas poucas horas apreciando uma obra de arte que, ao fim, realizei ser mera janela. Cheguei até a esboçar alguma crítica à localização do quadro, ao motivo e, não menos surpreendentemente, ao 'estilo', do qual pouca informação possuía em virtude dos meus olhos insuficientes.

Pensemos agora em quantas florestas, morros, vales, lagos, praias, cujas configurações podem ser devidas à interferência mais ou menos intencional do elemento humano por ali de passagem. Assim como os mapas obsoletos e milhares de objetos cuja função se deteriorou (incluindo as obras de ciência que a evidência fez inválidas), podem um dia vir a enfeitar uma parede numa residência ou num museu (ou, no caso dos tratados científicos falseados, ser admirados apenas pela escritura do autor a despeito - ou em virtude - de versar sobre o improvável), qual o impedimento, de olharmos para o mundo indiscriminadamente como se o faz com a arte? Seria por termos de lhe supor um criador? As paisagens que sofreram a intervenção humana seriam menos artísticas do que os jardins de Babilônia ou um jardim botânico qualquer por conhecermos destes últimos seja os seus autores, seja a intenção por trás das obras?

Ao valorizar a intencionalidade, presente na distinção 'natural'-'artístico' relativa a 'belo', Hegel (e em certa medida Kant também) exige de um objeto qualquer, para ser tomado como arte, que possua um autor. Sendo ele desconhecido ou ignorada a sua intenção, como saber se estamos em presença de algo feito com o propósito de cumprir a função de arte? Eis a razão de, no passo do hegelianismo, muito da estética escolar ter como esteio as biografias dos artistas e o inventário de seus propósitos no exercício do seu trabalho, e de na ciência (e na história, por que não?) haver quem se inquiete com os impeditivos das provas da existência de Deus! É inegável a importância de tais informações, caso possíveis, não obstante muito possa dizer-se na falta delas, boa parte do que - espero não causar espécie ao afirmá-lo - diz respeito a você mesmo, quem se põe a investigar ou apreciar o mundo.

Waldemar M. Reis

terça-feira, setembro 07, 2004

Cantada

(texto originalmente publicado na edição de setembro/outubro de 2004 do jornal ParaTodos, da ESPM-Rio)

A edição de agosto último da revista 'Superinteressante' - conhecida divulgadora de ciência e tecnologia - traz reportagem a um tempo lisonjeira e desconcertante sobre música. De um lado, mostra que a divina arte está presente, sem exceção, em todo canto do planeta e enumera alguns de seus efeitos (todos observados e comprovados como manda o figurino científico, digo, valendo-se de medições exaustivas), entre os quais o aumento significativo de sinapses (o nome dado pelos cientistas às conexões de neurônios), o que, trocando-se em miúdos, faz do usuário e, mais ainda, do praticante de música pessoas cujas massas encefálicas estão aptas a realizar, com grande rapidez, número maior de operações que as demais. Sim, parece que músicos e seus ouvintes regulares são de fato muito inteligentes, ou assim querem crer os pesquisadores! Por outro lado, após esse caprichado lustro nos nossos egos, a matéria não pode deixar de puxar o tapete, quando informa que a utilidade da música, infelizmente, ainda é por completo desconhecida, em resumo, ela não serviria para nada. Ora, de tudo quanto até aqui se disse, parece óbvio concluir que, se puxaram algum tapete, esse foi o da própria ciência, pois a música termina servindo, se não para outra coisa, ao menos para aumentar a inteligência!

Uma abertura assim deixa claro que toda esta conversa tem por alvo levar, no mínimo, a um maior consumo de música, não bastassem as pilhas de cds e dvds, as trilhas sonoras de novelas, filmes, publicidade, e as horas incontáveis nas filas à entrada dos concertos que são parte da vida de qualquer um. No mundo moderno, se depender do volume musical despejado em nossos ouvidos a todo instante, antes de mais inteligentes, tendemos mesmo é a ficar mais loucos, em especial se considerarmos o aspecto qualidade.

Não, não se vai desfiar aqui um receituário estético, pois isso é, a despeito do quanto se diga e se queira provar, uma questão pessoal. Cada qual sabe o que quer e pode pôr para dentro de casa ou das orelhas (pois agora tudo tem de vir com bula, embora quase sempre em tipos praticamente ilegíveis, é bem verdade)! E qualquer gênero de arte, não apenas a música, tem seus representantes mais e menos nobres, fato de conhecimento universal. O objetivo aqui, portanto é outro: nada de crítica, de censura, nada de mais estímulo ao desbragado consumo já existente.

Trata-se, em suma, de convite à produção. Sim, a passar de consumidor a produtor de música. De especial, na convocação, o seu caráter irrecusável, e para tanto espero contar com um mínimo de sagacidade, prometida na ciência, propiciada pela imersão musical a que venho me submetendo por toda a vida. Tamanho cuidado tem justificativa: um sem número de objeções ostentadas por quem, em última análise, ainda não rompeu com a inércia de ser somente ouvinte. Estas, de modo geral, têm aparência convincente e entre as mais comuns está, em primeiro lugar, a falta de tempo; depois vem a dificuldade presumida na aprendizagem da música, o questionamento da própria aptidão e, mais para o fim da interminável lista, o fato de alguns, de modo circunstancial e descompromissado, já fazerem música (todos temos nossos momentos de karaokê, de rasqueado, de caixa de fósforo).

Dessas possíveis recusas, a mais forte - por incrível que pareça - é a derradeira, pois, no caso, se está, bem ou mal, na posição de músico - daquele que a produz - e assim incrementando as próprias ligações neuronais em escala maior do que quem apenas escuta. Entretanto, essa prática não difere muito daquela de quem acha que exercita convenientemente os músculos com apenas uns poucos movimentos além dos exigidos pela moderna vida sedentária, em contraste com a dos que se consagram regular e conscientemente a algum esporte, por exemplo. Embora ainda não seja de domínio amplo, o exercício de toda arte é, ao contrário do que ainda se crê, a adoção de certo grau de disciplina. Na música, atividade em princípio auditiva, além do discernimento de sons estimula-se a coordenação motora em todos os níveis e, no caso dos instrumentos de sopro, entre os quais a voz, é vital para todo o trato respiratório, sem falar no aparelho fonador. Como toda arte, em suma, promove um maior auto-conhecimento, instrumento precioso em tempos como o nosso em que o individualismo não passa de escudo empedernido para as invectivas de um meio em extremo insidioso.

Portanto, alegar falta de tempo para realizar algo tão importante para si é como dar tiro no próprio pé. O mesmo se diga da impressão de não se possuir talento suficiente para a música, de não se ter ouvido: esse é um triste sintoma da falta de auto-observação, pois todos nós falamos, entendemos o que o outro fala distinguindo, inclusive, os diferentes modos de o fazermos, os sotaques: a linguagem falada, antes de mais, é um tipo de música, de extrema complexidade, inclusive. Já somos músicos desde o berço e não nos damos conta. O instrumento, a voz, que não ocupa espaço extra nos nossos já acanhados lares e do qual possuímos substancial domínio. Para complementar, canto é, em geral, partilhado, digo, é praticado em grupo, circunstância excelente para o exercício consciencioso da condição gregária de nós humanos, progressivamente distorcida, amarfanhada ao longo desta interminável era individualista. Enfim, faça música; na falta de outro instrumento, cante; e torne-se mais sociável, mais consciente de si, auto-confiante, em suma, mais inteligente, proporcionando a quem o escutar benefícios equivalentes!

Neste ponto o leitor atento pode começar a rever de memória todas as pessoas que conhece e então encontrar aquele músico amigo, sujeito desligado de tudo exceto do seu instrumento, desempenho qustionável na escola, magrelo e de pouca ou desajeitada conversação, mas de presença imprescindível nas festas, onde rouba as atenções (em especial as femininas), mesmo estando quieto num canto, atendendo a pedidos sem fim das ouvintes incansáveis: um personagem assim leva à suspeita de que a ciência cochilou durante a pesquisa (ou seria o show?) e de que o autor aqui exagera no seu convite. Para finalizar, entretanto, peço a quem se dá a tais considerações que não se precipite e pondere um pouco mais, em especial se a música não é um de suas atividades preferidas: é possível que, na verdade, seja você quem não está alcançando o tal amigo...

Waldemar Reis

sexta-feira, agosto 06, 2004

Da necessidade da religião

"... exclamaram e se revoltaram, escandalizados, os crentes e principalmente os teólogos: como é possível que seja uma mera imaginação algo que proporcionou consolo a milhões, pelo que milhões sacrificaram até mesmo a própria vida? Mas isso não é nenhuma prova de realidade e verdade desses objetos." Com tais 'objetos' Feuerbach refere, em suas "Preleções sobre 'A essência da religião'", os objetos religiosos, a saber, os objetos da fé, esta por ele identificada com a prórpria imaginação.

Até atingir este ponto, o filósofo lenta e pacientemente desenvolve sua demonstração observando primeiramente que o sentimento religioso se instaura no homem estimulado pelo seu próprio egoísmo, ou seja, o instinto de preservação de si, em primeiro lugar, e dos seus semelhantes em segundo. O egoísmo, para Feuerbach, é definível também como o sentimento de dependência da vida humana relativo a tudo quanto a rodeia, o sentimento de estar inserido num todo e de nele ter de trilhar determinado caminho, fora do qual ela se extingue. Eis a razão de o sol, a vegetação, os animais, a lua, as estrelas, a água, os ventos, as estações, mas também as tempestades e outros flagelos terem sido e ainda serem adorados como deuses, cultuados com o respeito devido somente àquilo acerca de que não se tem controle senão a submissão sedutora. Por trás de semelhante atitude há, naturalmente, a pressuposição de animar cada um desses objetos de veneração o mesmo impulso volitivo sentido pelo homem em si próprio, isto é, pressupõe o homem a existência de consciência semelhante à sua em cada um desses existentes e manifestações que cultua, sem falar na forma material, nem sempre mas não menos humana: o antropomorfismo. A teleologia, conceito seminal na filosofia de Kant, é uma intuição oriunda do pensar religioso, da atribuição à natureza de intenção em seus processos: o conhecimento religioso se constitui quando a natureza é feita espelho do humano.

Mesmo o Deus judaico-cristão, bem como o maometano, é submetido a tal escrutínio. A diferença está no fato de no monoteísmo o indivíduo passar a conceber-se mentalmente como distinto do mundo, apartado do todo, constituindo, por isso, um deus 'à imagem e semelhança' de seu próprio 'eu', de sua consciência. Esta a razão, segundo Feuerbach, de o Deus cristão não possuir uma imagem fisicamente observável como os demais deuses tirados das coisas e manifestações à sua volta.

O ponto culminante de sua argumentação, após outros momentos não muito menos notáveis, ocorre quando a fé é dada, em meio a citações de Lutero, como sinônima da imaginação, uma vez ela conceber o inverossímil - o impossível, até - desde que isto represente redenção ou satisfação de necessidade do crente. Fé, em Feuerbach e desde Lutero (como o demonstra o primeiro), possui exatamente a acepção que, particularmente, lhe tenho dado, a de espécie de sentido no porvir. Pessoalmente eu diria a imaginação como o processo associativo dos dados na mente, na memória, visto que cada informação ali chega mediante o trabalho de sentidos que tangem diversos aspectos, por que não dizer, diversas freqüências do real, entrando assim em contato recíproco de modo a oferecer ao sujeito meios de lidar com o que se lhe depara. A memória opera por suposições, imaginações sistematicamente corrigidas, tanto mais duradouro e mais vário é o contato com o objeto (já desde pelo menos Heráclito é corrente a crítica aos sentidos enquanto instrumentos de certeza), continuando a ponderá-lo, a estimá-lo, mesmo quando ausente. Como disse Feuerbach da imaginação e, por extensão, da fé, "só se ocupa com coisas e seres que não estão mais ou ainda não estão ou simplesmente não estão presentes". Em outras palavras, se imaginação é o 'modus operandi' da mente ou memória, esteja ela ou não 'em presença' do objeto, a fé tem de ser uma imaginação apenas 'na ausência' do mesmo: Tomé não carecia de imaginação, digo, da imaginação como é de hábito concebida, pois imaginava mesmo que Jesus não ressuscitara; carecia, sim, de fé no contrário, a qual é restaurada com o toque na chaga, passando assim a crer no fato, mesmo quando não mais estivesse diante d'O Mestre.

Feuerbach, é sabido, não tencionava suprimir a religião, mas tão-somente suprimir-lhe tudo quanto nela se lhe mostrava inútil ou paradoxal. Queria 'secularizá-la', no dizer de Engels, trazê-la de volta à terra, à natureza, dissipar-lhe a faceta etérea, idealizada, restaurando-lhe a vocação eminentemente prática. Desde "A essência do cristianismo" já havia fundado a sua nova e purificada religião do amor; já identificara no impulso religioso a raiz no 'afeto', conceito que é, para mim, o modo de resposta da consciência a tudo quanto lhe instiga a natureza e no qual estão implícitos o egoísmo e a dependência (com que inicia o filósofo o seu sistema crítico nas "Preleções"), faros que são do vivente para o que lhe proporciona a permanência, a sobrevida. Mas seria possível ao 'senso' religioso submeter-se a tal supressão de sua faceta etérea, deixar de lado o invisível para celebrar apenas o estritamente sentido? Não seria isso igualar a religiosidade ao processo (afetivo) de apreciação estudado na Estética?

Se algum dia, como preconiza Feuerbach, o cristão e todo e qualquer mito estarão desvendados, isto se fará com o concurso de uma ciência provendo o homem da suficiente segurança relativa ao não percebido imediatamente e ao inesperado (o futuro). Só há duas maneiras de não se recorrer ao divino, uma delas tendo o conhecimento absoluto do ignorado (oxímoro inevitável), seja este 'presente' (e passado, por que não?) ou futuro, e a outra dissipando o medo causado pelo desconhecimento ou, o que seria dizer o mesmo, cultivando um misto de tolerância para com o adverso com a tenacidade para continuar superando-o, algo como o Estoicismo de Marco Aurélio (construído já sobre o de Epicteto). Sem isto tende-se à substituição de toda religião por uma ciência, como vem paulatinamente mostrando ser o caso este princípio de século, ou seja, um conhecimento pontilhado de incertezas e, pior, não menos distante do imaginário do homem comum do que estavam o mundo e seus objetos em tempos de prevalência religiosa. Em suma, sem o saber total (o qual não poderia ser chamado com justeza de ciência) ou, na ausência deste, sem a adequada impassibilidade diante do adverso (o mesmo que ataraxia, algo como um distanciamento das dores e dos gozos da vida) está-se fadado à substituição de uma religiosidade por outra.

Waldemar Reis

sexta-feira, julho 30, 2004

Exposição da neutralidade

Há coisa de dois dias encontrei na Internet - num livro cujos título e assunto não é conveniente ou merecido mencionar - uma epígrafe de Dante, "The hottest places in hell are reserved for those who, in a period of moral crisis, maintain their neutrality", frase comum nas bocas de toda e qualquer facção política, aqui investida de inflamação muito ao gosto italiano, mas que pode também servir - paradoxalmente - a alguns neutros. Sim, e é suficiente mostrar que neutralidade foi confundida ali com indecisão, prática a que recorrem com notável freqüência as mais ardentes inteligências.

Posição digna de nota e respeito, especialmente em tempos de crise, a neutralidade constitui, inclusive, porto seguro para os indecisos antes de se dirigirem em definitivo para um dos lados ou de se decidirem pela permanência em terreno neutro. Dante, então, tivesse lá as suas razões para condenar ao pior dos infernos a neutralidade, principalmente em se tratando de neutralidade bem fundada. O neutro, na verdade, incomoda tanto quanto qualquer opositor tão-somente por não se enfileirar com o incomodado na batalha. Mas quantos dos guerreiros em oposição estarão de pleno acordo com o ideário que os leva ao front? Quantos não estarão ali coibidos, enganados, ou apenas por não terem encontrado algo melhor? (ah! esses ignorantes da neutralidade!) Pessoalmente, encontro-me entre os neutros radicais, os que dispensamos inclusive o recurso à retórica dantesca aplicada, de modo reverso, à nossa causa. Significa isso que possuo o meu próprio projeto de mundo, que pode ter pouco ou nada em comum mesmo com os projetos de outros afiliados da neutralidade, os quais não se consideram, por isso, como reciprocamente excludentes.

Poderia eu estar no mundo em melhor situação? Por certo que sim. Mas não creio que por obra dos programas integrais de quaisquer ideologias, exceto a que venho construindo. Ser neutro nada tem a ver com usar da passividade, outra crença arraigada, mas com até fazer oposições declaradas, em especial a posturas inutilmente destrutivas. Trata-se, pois, de uma como qualquer outra luta a neutralidade (possuindo também sua lista de desaparecidos e mortos, assim como sua galeria de heróis), sendo embora travada por ideais muito mais individualistas, adjetivo infelizmente muito utilizado para significar 'egoístas'. O individualismo puro é na verdade o olhar crítico para certos hábitos, certas práticas coletivistas: é, por exemplo, evitar os refrigerantes sem tornar-se um vegan ou macrobiótico; alimentar-se de cereais integrais, de frutas e vegetais crus, mas utilizar a Internet; é gostar da vida no campo e freqüentá-la com respeito sem necessário ser o abandono da vida urbana; é realizar atividades em conjunto sem ter de embebedar-se todo happy hour com o grupo; é, enfim, praticar o 'recorte' pessoal no tecido que se nos oferece da vida sem por necessidade ter de se amolgar ao perfil de um ou outro grupo nem de 'picotar' o 'recorte' alheio, algo para que o bom senso vem nos apontando desde a infância: que nos induzam à retirada ou ao acordo o respeito ao outro e a não nos deixar submeter aos excessos o respeito próprio. Em suma, o individualista puro é algo que todos nós gostaríamos de continuar sendo: em uma palavra, neutros.

Mas como a neutralidade, segundo se disse, é porto também para quem esteve, ou mesmo quem por natureza é, indeciso, após certo tempo como neutro um camarada pode enveredar por outras facções. Uma vez lá, abandoná-la, seja de volta à neutralidade, seja em favor de outra posição, é atitude em sinonímia com 'traição', termo impensável para os neutros. Todo 'traidor' é por nós recebido, portanto, como qualquer outro que - por acaso - assim não tenha sido rotulado: com a mais absoluta e salutar indiferença. Não há lugar para efusividades aqui, não se pode esquecer de que somos neutros!

Entretanto, atenção! Nem todos os neutros realmente o são, muitos não passando de - inutilmente - espiões ou aliciadores de outras facções, representando porventura algum perigo, mas só para a massa dos indecisos, naturalmente. De fácil reconhecimento, é comum integrarem os falsos neutros associações beneficentes apartidárias, crendo ser este último adjetivo o seu melhor disfarce, e quase sempre estão a ditar aos outros o que fazer, eles mesmos pouco ou nada fazendo além disso. Este traço, a bem dizer, é inconfundível. Pois onde já se viu um autêntico neutro senão cumprindo o seu dever para consigo mesmo? - o que, é claro, compreende em suficiente medida o outro, sendo também exemplo bastante a ser seguido por quem possui em si o senso da neutralidade minimamente desenvolvido.

Por fim, não faltarão detratores a imputar-me aqui a doutrinação, no que cometem erro grosseiro. Em primeiro lugar, faço apenas exposição neutra, como teria de ser, cuja ameaça maior a quem porventura se encontre afiliado a um ou outro partido é a descoberta da sua própria neutralidade, algo que não lhe determina a transferência explícita e imediata para o nosso convívio, do contrário: embora de todo inúteis para a(s) nossa(s) causa(s), também terminamos por possuir, ainda que involuntariamente, os nossos espiões!

Waldemar Reis

sábado, julho 24, 2004

O estoicismo é um hedonismo

Admito: nem todos somos filósofos. No entanto, passamos a vida, até a mais insignificante, mergulhados em saber. Sabe-se o tempo todo: com o olho, com a língua, com o tato, e sabe-se que se sabe, que se tem de saber, quase sempre a contragosto, sendo inútil evadir-se, mesmo no sono - por causa do sonho. Talvez na morte, de que nada sabemos, seja possível escapar.

Mas vá convidar o seu amigo da esquina para uma conversa mais 'cabeça' e prepare-se para a afronta: há coisas mais importantes a fazer, como ir vivendo, por exemplo. Não insista, menos ainda em se valendo da premissa acima - a de sermos todos, em última análise, relatores do mundo, seus teóricos compulsórios, ou sucumbimos. Pois, ora, é disso que se está farto: de pensar, de conhecer. Pensar em mais o quê, indagaria ele. Para quê?

Aí entra o filósofo: pacificado com o seu fado, aliás, com seu fardo, ama a sina de conhecer e a celebra. Celebra conhecendo-a, de fora, como se fora outrem a quem cabe observar a si mesmo no processo de conhecer o mundo. Por isso 'amigo do saber', por isso a sabedoria, ou seja, a conciliação de todo o conhecimento. Sim, todos conhecemos o mundo e todos sabemos disso. Todos, inclusive, fazemos filosofia, é possível asseverar, mas apenas o inevitável ou o suficiente para nos sentirmos justos: tão-logo corrigido esteja o curso, lançam-se ao vento os princípios, meros embriões, restituindo à vida a normalidade. Poucos se rogozijam com o filosofar, com o selecionar e o conservar preceitos por cujo intermédio viver ganha sentido especial.

Neste ponto o leitor tem todo o direito ao sobressalto por ter flagrado, num âmbito de três parágrafos, gritante contradição. Afinal somos todos filósofos ou não? Em obediência aos termos postos acima, devo dizer: não, não o somos. Assim como não somos músicos por tão-somente assoviarmos uma melodia. Assoviamos, apenas, e nesse ínterim fazemos música. Também não nos tormanos médicos enquanto cuidamos de um ferimento, embora se deva anuir a que praticamos, na circunstância, procedimentos da medicina. Finda a melodia e curada a injúria, retoma-se o curso natural da vida na qual se exerce outro tipo de ocupação. A rigor, portanto, não somos todos filósofos, nada obstante façamos todos filosofia. Valemo-nos de instrumentos de uso comum, validados na prática filosófica, mas só quando a ocasião o exige. Mas não o fazemos intermitentemente, como quem não é músico, nada obstante assovie, ou como quem não é médico, embora eventualmente cure. Pensamos rigorosamente o tempo todo, tanto que nem sempre o percebemos: há pensamentos para cuja percepção é necessário muito treinamento, tão rápidos, tão sutis, tão imiscuídos estão na simplicidade de gestos banais.

De modo análogo ao do músico e ao do médico, nos quais é patente o esmero com que tratam os objetos de sua ocupação, ao filósofo é atribuído o cuidado na avaliação e na prática dessa tendência ou dessa determinação universal dos humanos, a de pensar o mundo. Pensa-se o mundo para quê? Ora, se por pensamento se entende a atividade na qual são coordenadas as informações colhidas na realidade pelos sentidos, chega-se a uma resposta razoavelmente confortável, bem como a pelo menos outra questão. Enquanto depositário e processador da informação acerca do real, o pensamento, finalmente, está a serviço da melhor ação, da melhor atitude no mundo, melhor seja do ângulo do sujeito, ou quem pensa, seja do ângulo do objeto, ou tudo quanto o sujeito não tem como sendo ele mesmo, mas participa do âmbito de suas considerações no momento de pensar. Mesmo se, diante de um obstáculo, se dá de cabeça nele em vez de se desviar, tal atitude pode estar resultando de uma escolha tanto quanto de uma fatalidade (é comum a crença do ato de pensar como método - talvez o mais eficiente - para se contornar a fatalidade: o destino parece-nos dar por alternativa a vontade - eis outro problema encarado pelo filósofo). Significa isso que possui o sujeito pensante, fora a alternativa do 'laisser faire', um feixe de opções em torno à obtenção do melhor, como a de consegui-lo exclusivamente para si, para o objeto, ou em parcelas variáveis para ambos.

Pensar e, em conseqüência, filosofar, tem como fim último obter, no mundo ou do mundo, o melhor, ou seja, objetiva uma ação, um comportamento, um modo de manifestar-se, em uma palavra, um 'ethos'. E, embora se faça a partir de dados passados, o pensamento se constitui sempre na direção do futuro, mesmo o mais exíguo, cuja medida é o instante, o que, em bom 'filosofês' se traduz como 'indutivo': o pensamento se dá na presunção, na construção, ainda que inverificável, do porvir. E o porvir interessante para o pensamento é aquele ao alcance da percepção do sujeito pensante, aquele localizado no âmbito de sua influência pessoal (mesmo quando o sujeito já não existe mais, como é o caso dos testamentos, por exemplo, o qual alcança a sua memória, ou tudo quanto, de alguém ou de algo, resta no pensamento de outrem).

Pensar, então, tem estreito parentesco com antever, sendo no mínimo tentativa de o lograr, mas reduz-se, em última análise, à consecução de um modo de agir. É, por conseguinte, Ética pura. Tenho para comigo a Ética como sinônimo da Filosofia ela mesma, nada obstante a tradição faça da anterior um dos capítulos desta última. É Ética a Filosofia, sim, mas sob a orientação de uma Estética, pois se quer o melhor, o mais agradável. Raros, entretanto, foram os filósofos que o admitiram. A história consagra Epicuro como sendo o primeiro a sistematicamente encarar o problema da obtenção do melhor como central na tarefa do pensamento. Sua filosofia, chamada de hedonismo, de bem-viver, esteve a serviço de objetivamente delimitar os meios de obtenção do bem-estar e ainda hoje é encarada como se antes de si e no futuro inexistissem iniciativas semelhantes. Ora, como se tem visto no correr do presente escrito, não há sentido outro no pensar senão a obtenção do melhor (ainda que este em aparência possa estar sendo considerado o pior sob um ponto de vista diverso). Somos hedonistas por natureza e Epicuro foi porventura o primeiro a reconhecê-lo.

A diferença fundamental entre o epicurismo e o pensamento estóico, seu contemporâneo, seja talvez o desfrute incondicional das benesses da circunstância de existir, característico do primeiro, tratado com reservas no segundo. O estóico fez fama na sua capacidade de sobrepujar o sofrimento tanto quanto o epicurista a fez em evitá-lo. Por isso estóico passou a sinônimo de resignado assim como epicurista ainda remete a dissoluto. As duas correntes, vistas como emblemáticas do embate interminável de desejo e dever, vêm atravessando os séculos sem ter salientada a evidência de, em sendo fatos do pensamento, almejarem a obtenção do melhor. Nisso epicuristas e estóicos coincidem. Divergem, no entanto, nos métodos de tal obtenção.

A tradição - mais do que os escritos originais de ambas as escolas filosóficas, quase por inteiro perdidos - costuma atribuir ao estóico uma indiferença (apatheia) relativa a todo e qualquer aspecto do mundo. Antes de fazer resistência ao prazer ou à dor, o estóico busca pôr-se distante dessa dicotomia. Epicteto, estóico exemplar do primeiro século depois de Cristo, advertiu seus torturadores de que lhe quebrariam a perna se persistissem no suplício, limitando-se a lembrar de lhes ter alertado quando o membro efetivamente se partiu. Ele também não perseguiu riquezas contentando-se em viver com o mínimo. Entretanto, mesmo em apatia, isto é, mesmo indiferente aos aspectos conflitantes da realidade (como gozo e sofrimento), visa o estóico negar o prazer? Ou seria sua estratégia um sinal do desespero humano ordinário que encontra numa pré-concebida insensibilidade isenção de dor? É mesmo possível escapar ao sofrimento renegando também o gozo?

Não creio que o estóico desdenhe do prazer. Como a de todo humano, sua questão é a dor. Sua filosofia parece ter saído do ditado 'le bonheur n'existe que par comparaison'. Assim sendo, evitar a felicidade passa a ser caminho para isentar-se da infelicidade: por comparação. Do prisma do eminentemente humano, a profissão de fé estóica é, no fim de contas, uma evitação do sofrimento, mas que reconhece nisso uma intrínseca participação do prazer, este, sim, almejado.

Portanto, epicurismo e estoicismo se distinguem uma vez que um encara e abraça sem reserva o prazer, enquanto o outro o guarda com visível desconfiança. Mas no curso de sua apatia o estóico relata um tipo especial de prazer, oriundo de sua recusa tanto ao sofrimento quanto ao regozijo em face do que se lhe oferece no mundo. O distanciamento estóico do mundo é, em última instância, e como é natural, uma estratégia de obtenção do bem-estar. Um bem-estar distinto do desfrutado pelo epicurista, é bem verdade, mas um bem-estar assim mesmo. E, embora em oposição, durante o seu momento histórico, ao hedonismo, o estoicismo termina por ser-lhe uma variação.

Justificado o título (para os mais afeitos aos academismos, ressonando o absurdo), cumpre agora concluir este pequeno comentário. Faço-o por uma questão de mera formalidade, uma vez já estar, para o leitor atento, de há muito concluído. Somos todos, se não filósofos, por certo hedonistas, talvez não no sentido epicurista estrito, mas hedonistas. Nem todos o admitimos, imbuídos de alguma forma pouco esclarecida de estoicismo. Filósofo, portanto, seja epicurista, estoico, platônico ou kantiano, é todo hedonista confesso, excluídos os dissolutos, meras vítimas do desespero.

Waldemar Reis

Creative Commons License
This work is licensed under a Creative Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivs 3.0 Unported License