terça-feira, junho 09, 2020

Refletindo, como sempre, sobre o óbvio

Em verdade - diga-se com todas as palavras - praticamente todos estamos cooptados, primeiro, pela ideia de que há de fato oportunidade para todos, proposição delirante quando referindo um sistema de gestão de riquezas como o capitalismo; segundo, pela ideia de que a ideia anterior se sustenta porque há possibilidade de crescimento infinito num universo finito como o nosso planeta, outra proposição delirante que tem transtornado tanto o pensamento social quanto o da matemática (e isto já faz tempo!); por fim, terceiro, tendo por base as duas ideias anteriores, aprendemos a justificar a ganância generalizada, equanimizada, ainda que na prática isso resulte no perpétuo estado de guerra em que vivemos há milênios, seja entre nações, seja no interior de cada uma delas. 

E, o maior problema de tudo isso: já não nos damos conta de haver problema: engendramos uma resistência às angústias de vivermos nessas circunstâncias tirada do brinquedo de derrubar dominós com a queda de outros e na qual procuramos transferir a quem mais próximo de nós estiver a bordoada ou a dor da que acabamos de receber; terminou parecendo-nos natural ou lógico que a grei humana - nossa própria sociedade assim pobre de espírito - seja cópia piorada da competição pela vida no que chamamos 'mundo selvagem', o qual tememos e de que nos escondemos uns trás os outros, como se o perigo maior estivesse do lado de fora. E por não vermos o problema, por achar ser possível sonhar num pesadelo como este, proibimo-nos o sonho ele mesmo, o sonho autêntico de quem dorme o sono dos justos, dos que cumpriram suas missões do dia, encerrando nessa gaveta de proibições invisitáveis mesmo as ideias plausíveis, a própria lucidez: já não refletimos mais.

terça-feira, junho 02, 2020

Da inútil - evitável e risível - batalha de todos os dias de nossas vidas

Bonecos de piche nem sequer deveriam ser tocados, ainda que de leve, por seja quem quem diz prezar o próprio asseio, porque mesmo se ocorre de não se ver grudado à gosma, terá um trabalhão para limpar o que, é certo, lhe ficará sobre o corpo. Abordar mais violentamente um artefato desses é, portanto, sinal preocupante de não só o propósito de imundar-se, mas, é possível, de o fazer por gosto. Por infelicidade, parece haver uma compulsão da maioria da humanidade para ocupar-se desse gênero de tolice, na certa por ver nisso algum uso além da pura prática desportiva.

Bonecos de piche são claramente tolas armadilhas concebidas para os dotados de inimaginável estultice (que erroneamente se atribui aos pássaros que por infelicidade buscam apenas descanso para as asas pousando neles sem saberem o que são), sendo deprimente assistir-se a membros da outrossim autointitulada espécie dos homens debaterem-se em meio ao grude, ainda mais quando deixam claro não lhes passar pelas cabeças a intenção de se soltarem, mas, quando muito, de livrarem uma mão, um pé, um joelho, ou até mesmo a cabeça para continuarem arremetendo contra a indiferente mostruosidade. Repita-se: poderiam todos ter-lhe passado ao largo e não o fizeram, poderiam ao menos tentar descolar-se por inteiro, o que não seria tarefa para fracos, mas persistem na chafurdice, sofrendo toda sorte de dano, pois o esforço para desferir novo golpe não raro resulta em acertar em si mesmo ou em quem estiver nas imediações.

Os aprisionados em bonecos de piche estão, assim, em guerra perpétua uns contra os outros e, claro, contra o boneco mesmo. Se perguntados sobre o propósito de tamanho e desatinado esforço, quase em coro dirão que é o de reformar o espantalho, torná-lo menos desagradável de se ver, estética em que, percebe-se em seguida, não concordam entre si, e também por isso, não bastassem os golpes que desferem uns contra os outros sem intenção, se agridem. É indubitável, portanto, que gostam do boneco de piche, gostam de odiá-lo e de imaginar como fazê-lo menos intolerável, ainda que não tenham como, ou que o façam ainda pior com as tentativas.

Muitos - milhões - já passaram ao longo dessa insana labuta, a grande maioria, afixiada, seus corpos absorvidos, afundados no visgo espesso, seus ossos servindo aos vivos de armas, quando achados na massa disforme e mutante. A podridão, mesmo a boa distância, é insuportável e poucos  - muito poucos - são os que vivem fora desse jogo aterrador, poupados pela sorte de não haverem nascido em meio a ele. Vez por outra são convidados, aos gritos, pelos desesperados aprisionados, para se juntarem à sua luta desvairada, coisa que um mínimo de sanidade bastaria para conservar-se boa distância. Mas não é que há quem lhes atenda?

O que haveria de tão atraente nos bonecos de piche? Parece não haver, dentre os que lhes estamos grudados, quem tenha uma resposta.

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