sábado, setembro 12, 2020

Consciência de si (com exercícios)

Eu: algo passível de imaginar-se como densidade viscosa espalhando-se para qualquer parte a partir de um suposto centro, que o produz. Em aparência controlável, é provável ser aleatório tal movimento, que se designou por afeto ou amor, e cujo efeito é constituir o sujeito, açambarcando tudo quanto a este parece de utilidade para a sua permanência no mundo: se é mesmo ao acaso que se dá, então o útil se entende por aquilo a que por força tem o sujeito de adaptar-se para continuar vivendo e amor por uma mera constatação de ter isto de fato aquela utilidade.

A título de exemplo, realizar o exercício seguinte: definir exaustivamente a si mesmo e observar que os elementos usados na definição, sem exceção e com efeito, são distintos e externos relativamente a isso que se procura descrever, bem como, muitos deles, indiferentes no que concerne ao mencionado afeto ou amor, não raro incluindo o que o sujeito deveras detesta - ou o quanto tal movimento de açambarcamento enseja evitar. Notar que muitos dos objetos açambarcados - e efetivamente amados - já estiveram entre os que foram evitados.

Egoísmo: o ato mesmo de apropriação de tudo quanto a referida substância pegajosa açambarcou; o ato de, em diversos graus, tomar tudo isso por si próprio. Não raro se defronta o egoísmo com o fato de muito do que crê o sujeito pertencer exclusivamente a si pertencer também a outros. Na circunstância, só há duas escolhas, a partilha ou a usurpação, cada uma das quais dando, depois de efetivada, o tom - o modo - de o egoísmo do sujeito ser.

Exercício: enumerar, com vistas a estabelecer o tipo do próprio egoísmo, o quanto de si é partilhado e o quanto é usurpado. Notar que muito do que se acredita usurpado é de fato partilhado e vice-versa, e que a nenhum indivíduo é possível ser exclusivamente usurpador, pois teria de eliminar os demais que partilham o que usurpa (e, em fim de contas, tornar-se o único existente no mundo), nem exclusivamente compartilhante (a despeito da forte suposição de existir o amor incondicional, universal), pois deve haver algo do sujeito cuja partilha não interessa aos demais.

Afeto: ou amor; tudo o que o sujeito é capaz de expressar além do seu oposto, ou desafeto, desamor, ódio. Denota a ocorrência prévia de percepção, tratando-se, portanto, de uma reação ao percebido, embora o sujeito a sinta - ou perceba - igualmente. A idéia de sentimento - em princípio idêntica às de percepção, sentido ou sensação - induz à clivagem ordinária do fato (ou da existência - da manifestação, diria um grego antigo) naquilo em que o sujeito é, ou o eu, e no que ele não é, ou o mundo.

Paradoxalmente o mundo é tudo de que o sujeito se apropria para constituir-se e que, mesmo depois de apropriado, continua sendo passível de percepção pelo sujeito: em vista da mencionada clivagem, é de supor que o eu - ou o sujeito - percebe o que lhe é externo, uma vez ele ser precisamente o que ou quem pecebe, ao qual não se aplicaria a possibilidade de ser percebido sem afirmá-lo simultaneamente não-sujeito. Se ao sujeito, o que percebe, é aplicável a possibilidade de ser pecebido por ele próprio, isto se entende do seguinte modo: o eu, o cerne perceptivo, percebe-se no ato de perceber seja o que for; ele é perceptível enquanto perceptivo.

Por conseguinte, tudo mais lhe é externo, inclusive o quanto de que se apropriou do mundo, uma vez isto ser igualmente passível de percepção, desse modo sugerindo outra clivagem, complementar à de sujeito e mundo, desta feita no âmbito do sujeito mesmo, como se houvesse uma parte de si de que diria ser mais caracteristicamente ele próprio, a qual percebe o mundo, ou isto que ele, sujeito, não é, mas percebe também o que ele, sujeito, se torna quando se apropria das coisas do mundo, estas que, tendo-se tornado ele depois de apropriadas,  não o foram profunda ou inerentemente, no entanto.
 
É de supor, enfim, ainda em torno das clivagens que a idéia de percepção sugere, que o perceber a si mesmo do centro perceptivo é operação produtiva de contínuo afastamento desse centro perceptivo relativamente ao quanto percebe, donde, então, a idéia de que ao perceber-se (como se disse, no ato de perceber seja o que for - a si própria, inclusive?) a consciência se distancia de si mesma, afundando-se continuamente no suposto centro onde de hábito crê estar. Enquanto ato de afastamento, distanciamento ou clivagem, quando voltada para si mesma a pecepção como que termina por não se reconhecer como tal, mas como uma das coisas a si agregadas e que a constituem. Portanto, em quaisquer de suas modalidades perceber - e, por conseguinte, sentir - é distanciar-se, dar passos para aquém do que se percebe: é criar abistmos.

terça-feira, junho 09, 2020

Refletindo, como sempre, sobre o óbvio

Em verdade - diga-se com todas as palavras - praticamente todos estamos cooptados, primeiro, pela ideia de que há de fato oportunidade para todos, proposição delirante quando referindo um sistema de gestão de riquezas como o capitalismo; segundo, pela ideia de que a ideia anterior se sustenta porque há possibilidade de crescimento infinito num universo finito como o nosso planeta, outra proposição delirante que tem transtornado tanto o pensamento social quanto o da matemática (e isto já faz tempo!); por fim, terceiro, tendo por base as duas ideias anteriores, aprendemos a justificar a ganância generalizada, equanimizada, ainda que na prática isso resulte no perpétuo estado de guerra em que vivemos há milênios, seja entre nações, seja no interior de cada uma delas. 

E, o maior problema de tudo isso: já não nos damos conta de haver problema: engendramos uma resistência às angústias de vivermos nessas circunstâncias tirada do brinquedo de derrubar dominós com a queda de outros e na qual procuramos transferir a quem mais próximo de nós estiver a bordoada ou a dor da que acabamos de receber; terminou parecendo-nos natural ou lógico que a grei humana - nossa própria sociedade assim pobre de espírito - seja cópia piorada da competição pela vida no que chamamos 'mundo selvagem', o qual tememos e de que nos escondemos uns trás os outros, como se o perigo maior estivesse do lado de fora. E por não vermos o problema, por achar ser possível sonhar num pesadelo como este, proibimo-nos o sonho ele mesmo, o sonho autêntico de quem dorme o sono dos justos, dos que cumpriram suas missões do dia, encerrando nessa gaveta de proibições invisitáveis mesmo as ideias plausíveis, a própria lucidez: já não refletimos mais.

terça-feira, junho 02, 2020

Da inútil - evitável e risível - batalha de todos os dias de nossas vidas

Bonecos de piche nem sequer deveriam ser tocados, ainda que de leve, por seja quem quem diz prezar o próprio asseio, porque mesmo se ocorre de não se ver grudado à gosma, terá um trabalhão para limpar o que, é certo, lhe ficará sobre o corpo. Abordar mais violentamente um artefato desses é, portanto, sinal preocupante de não só o propósito de imundar-se, mas, é possível, de o fazer por gosto. Por infelicidade, parece haver uma compulsão da maioria da humanidade para ocupar-se desse gênero de tolice, na certa por ver nisso algum uso além da pura prática desportiva.

Bonecos de piche são claramente tolas armadilhas concebidas para os dotados de inimaginável estultice (que erroneamente se atribui aos pássaros que por infelicidade buscam apenas descanso para as asas pousando neles sem saberem o que são), sendo deprimente assistir-se a membros da outrossim autointitulada espécie dos homens debaterem-se em meio ao grude, ainda mais quando deixam claro não lhes passar pelas cabeças a intenção de se soltarem, mas, quando muito, de livrarem uma mão, um pé, um joelho, ou até mesmo a cabeça para continuarem arremetendo contra a indiferente mostruosidade. Repita-se: poderiam todos ter-lhe passado ao largo e não o fizeram, poderiam ao menos tentar descolar-se por inteiro, o que não seria tarefa para fracos, mas persistem na chafurdice, sofrendo toda sorte de dano, pois o esforço para desferir novo golpe não raro resulta em acertar em si mesmo ou em quem estiver nas imediações.

Os aprisionados em bonecos de piche estão, assim, em guerra perpétua uns contra os outros e, claro, contra o boneco mesmo. Se perguntados sobre o propósito de tamanho e desatinado esforço, quase em coro dirão que é o de reformar o espantalho, torná-lo menos desagradável de se ver, estética em que, percebe-se em seguida, não concordam entre si, e também por isso, não bastassem os golpes que desferem uns contra os outros sem intenção, se agridem. É indubitável, portanto, que gostam do boneco de piche, gostam de odiá-lo e de imaginar como fazê-lo menos intolerável, ainda que não tenham como, ou que o façam ainda pior com as tentativas.

Muitos - milhões - já passaram ao longo dessa insana labuta, a grande maioria, afixiada, seus corpos absorvidos, afundados no visgo espesso, seus ossos servindo aos vivos de armas, quando achados na massa disforme e mutante. A podridão, mesmo a boa distância, é insuportável e poucos  - muito poucos - são os que vivem fora desse jogo aterrador, poupados pela sorte de não haverem nascido em meio a ele. Vez por outra são convidados, aos gritos, pelos desesperados aprisionados, para se juntarem à sua luta desvairada, coisa que um mínimo de sanidade bastaria para conservar-se boa distância. Mas não é que há quem lhes atenda?

O que haveria de tão atraente nos bonecos de piche? Parece não haver, dentre os que lhes estamos grudados, quem tenha uma resposta.

quarta-feira, maio 27, 2020

CO-VIDA

A nova ortografia reserva o hífen, no caso desse prefixo,  apenas para quando o termo que o segue inicia por 'h', mas o propósito aqui é outro, que não desafiar a recente e malfadada norma culta da língua e, a bem da verdade, inteiramente singelo, autoevidente: enfatizar, deixando claro seu protagonismo, o prefixo,  prevenindo a hipótese de a má digitação (maneira corrente e privilegiada de denotar esse dever de parecermos espontâneos nas redes sociais) ter privado o termo de - por exemplo - um  'n'. Sob o peso de semelhante incerteza, o trocadilho não resultaria no intencionado, embora não seja de desprezar, em meio às tantas possíveis no presente contexto,  a ideia de ainda estarmos sendo 'convidados' - antes de 'compulsados' - a adotar esse modo de vida que, se caminho para certo morrer, como qualquer outro, decerto o é para um comum, um morrer coletivo e, é provável, de fome, caso o tédio não dê antes o seu serviço.

Mas não há negar que, designada como está, 'co-vida' é puro eufemismo, porque a vida com a qual vai, com a qual faz par, é agora de natureza puramente ficta, a ser vista passar, fantasmal, hipotética, da janela que mantemos aberta para o imaginário, embora não menos conducente, também, a um morrer único - ou unificado - do que o é a vida corrente, a co-vida, que da outra nos salva : há uma analogia com aquela charge do velho semanário 'O Cruzeiro', em que a solução para impedir a cama elástica de devolver a vítima do incêndio ao local donde saltara foi, moral da história, "abatê-la a tiros". Algo deveras humanístico, há-de reconhecer-se,  tem a sinistra ingenuidade desse humor, sintetizado no inevitável clichê "dos males, o menor" - ou, no caso, o mais rápido, detalhe dissonando do que seria de esperar de esperar-se sentado por uma de duas mortes certas.

De que, então, de tão terrível escapamos com aquiescer em co-viver? Qual sofrimento faria preferir morrer-se, antes, de melancolia ou inanição? A julgar do que se diz da pandemia desde sua infância, é muito provável a humanidade haver enfim deparado o coquetel do que a tem matado desde sempre, à exceção dos desastres, naturalmente, e do gênero  sombrio e comum de fim preconizado, agora também, na co-vida. O currículo de acometimentos atribuído a essa moléstia parece esgotar os polpudos tratados da patologia disponível e, respondesse o organismo humano com infinitas expressões a seus agressores, estaríamos já cunhando neologismos para nomear a inusitada sintomatologia, o que mais cedo ou mais tarde terminaremos mesmo por fazer, haja ver a emegência de incontáveis combinações do modesto conjunto de sinais somáticos e sua potencialização pelo que possa lhes estar ao redor: sem esgotar, evidentemente, a lista, considere-se o que a genética teria emprestado do HIV ao vírus,  seu disfarce de inocente resfriado conducente a colapsos respiratórios variados, as dores que o assemelham à dengue ou chikungunya, os súbitos infartos e apoplexias, os males dos rins, tonteiras e perdas do tino, os desarranjos digestivos, coceiras, eczemas, a cumplicidade com as torres de transmissão eletromagnética de dados, a subversão dos respiradores artificiais, as influências da mínima atividade por que passa o Sol,  da ressonância de Schumann e da mudança do clima, para não falar do ecossistema  - de espaços fechados com gente apinhada e ar permanentemente refrigerado - construído pelo capitalismo com o fim exclusivo de amealhar com eficiência o lucro e que maximiza  o virtuosismo de seu contágio.

O cosmologista Neil DeGrasse Tyson afirmou há coisa de dois meses, em programa de auditório, que compulsória e involuntariamente nos tornáramos parte de experimento de âmbito mundial cuja meta seria investigar o quanto confia na chamada ciência a humanidade e cujo resultado, em vista do tema impenetrável, se restringirá a um de dois graus possíveis e extremos: total - e cega - ou nenhuma. A co-vida tem sido até agora o que de mais consistente nos tem ela, ciência, oferecido quando é caso de mal contagioso e que, reconheçamos, não excede o que há milênios se tem aprendido das avós, enquanto soluções milagreiras, incluindo as vacinas, ganham e perdem apoio, inclusive no seleto meio científico, com a presteza com que deveríamos trocar de máscaras - como sugerido por alguns. Nada obstante,  em termos de eficácia , a co-vida parece ter a mesma dos estados de sítio mantidos até esgotar-se a paciência dos sitiantes, nada pequena, por sinal, para organismo assim diminuto, infinita, se comparável à de nós, sitiados, tornada ainda menor pelo exercício compulsório da tolerância recíproca dos que imediatamente convivem num mesmo espaço de confinamento ou, quando se está só, de si próprio: não admira, pois, que tantos venham escolhendo retornar à normalidade antiga e, agora,  tão nova da vida, a despeito da certeza nebulosa de seus riscos.

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