sábado, dezembro 28, 2019

Fuga em si

Embora parado, quase estático em frente ao monitor, está em fuga. Foge do vexame que como por desencanto o mundo lhe revelou ser. Foge - ou quer fugir - para algum lugar, não para um qualquer, como Passárgada, vez que inté lá é preciso ter amizade com rei se é desejo estar bem. Foge com os dedos, únicas partes do corpo que ainda é capaz de mover além das pupilas, naturalmente. Foge com olhos e mãos na direção única que lhe parece restar, ainda que à frente tenha por perspectiva vexame outro, vexame de que em tese é impossível fugir e ao qual já está - vexaminosamente, por inteiro - habituado. Por isso, a terceira pessoa, máscara ou disfarce que vestiu para fugir. Foge dum vexame para outro e para trás dum terceiro, que seria algo como o próprio corpo, ou tudo quanto aos de fora parece ele própeio ser, vexame a mais, desimportante, se comparado ao que o rodeia e ao que escolheu por destino. Vantagem alguma parece haver nesse fugir, salvo talvez a de saber que não excede a norma, que, enquanto foge, é como qualquer um, com a distinção, embora, de se saber fugitivo e fugitivo de um ridículo para outro, não, de necessidade, um menor, mas apenas tolerável, espécie de porto em que estará alerta, em trânsito e seguro do retorno da balsa que o levará ao lado sobrante, o outro, que é também lado nenhum, onde, enfim, será amigo de ninguém, vez que parece haver ali rei nenhum, pessoa ou mesmo coisa alguma, e onde estará a salvo de todos os vexames e outros sentimentos que os contrastam ou anunciam (o que dá no mesmo), a salvo da felicidade e, por conseguinte, do receio de quando é ou estará feliz. Parece não haver escolher, e isto ainda lhe parece bom.

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