sábado, novembro 23, 2013

Além do 'sou', só mesmo o infinito

Não é de hoje que convivemos com a ideia de infinito. Se quisermos uma imagem bem ao estilo cartesiano, digamos que nascemos com ela plantada na imaginação. Tratar-se-ia, portanto, de convivência forçosa, mas também forçada. Forçada porque não parece condizer com nada do que de imediato acreditamos encontrar à nossa volta, já que tudo parece terminar - e começar - em outra coisa, tudo parece ter um fim - e um começo - em algo, em miúdos, tudo é finito, ou assim parece, estando assim sujeito ao que, para a capacidade que temos de idear, é requisito primeiro, ou seja, ser definido, ter definição.

Então, ora, reconheçamos, 'infinito' é ideia e, por conseguinte, é pressuposto ser definida: há definição de 'infinito', sabemos. No entanto, acredito, 'infinito' define-se pelo que não se define o restante das coisas, por negação, ou como aquilo que, contrariamente a tudo mais, não possui fim (seja lá o que isso signifique, ajuntemos). Mas de momento em que o queremos ter presente no espírito como podemos fazer com a ideia de uma caixa ou de sua abstração em um cubo, por exemplo, bem, nesse momento o infinito se furta a nos exibir - digamos - suas 'bordas', como as exibem os outros dois objetos, a não ser assinalando-o como aquilo que, contrariamente a tudo mais, não as possui, enfim, assinalando-o negativamente.

Mas nem todo infinito parece arrancar-nos o mesmo estranhamento. Sim, admitamos, há mais de um infinito, ou melhor, há uma só ideia de infinito, mas que insistimos em aplicar a - ou a associar com - diversos objetos, ou melhor ainda, essa ideia única de infinito parece ser propriedade de tais objetos, como, por exemplo, o tempo e o espaço.

Em termos de tempo, no caso, toleramos muito bem a ideia de um infinito futuro que, embora inconcebível como qualquer infinito, está em ressonância com a ideia de imortalidade, estando esta última, por sua vez, em relação direta com a compulsão de sobreviver - ou, mais simplesmente, de durar - que parece ser propriedade essencial de tudo quanto vive. Talvez isto, enfim, explique a nossa capacidade ímpar de não nos inquietar a eternidade futura, não, pelo menos, como nos inquieta a eternidade no passado.

Este outro infinito - que mui justificadamente compõe um só com o anterior - causa espécie, acredito, também por motivo especial: tudo à nossa volta parece derivar de outra coisa, digo, tudo parece ter um começo algures, num dado instante. Desse modo, se desnecessário sentimos ser pôr termo no futuro (por uma questão de sobrevivência, como se supôs acima),  o viés é diferente quando sob o olhar está o passado: tem de ter havido um começo.

Neste ponto estou com Feuerbach, que reconhece a ideia de Deus como explicação única e possível para o quanto sobre quê não temos poder (ou para o au delà de nossa potência), e em boa medida com Descartes, quando afirmou termos nascido com essa solução no espírito. A ideia de Deus é posta aí, onde sempre a pusemos, de modo a tolerarmos a questão da origem, em sentido absoluto, das coisas: das coisas em geral, mas não de Deus. Nada mais evidente: se Deus aí está para dar sentido à ideia de começo de tudo, pouco - ou nenhum - sentido parece haver em lhe questionar também a origem. Sim, porque isto seria continuar no problema ou transferi-lo para o que trouxemos em vista de o solucionar.

Poucos ateus o compreendem, mas a ideia inata de Deus tem por fim proteger-nos da vertigem de mover-nos em imaginação - ou mesmo dedutivamente - para quaisquer lonjuras no passado sem esperança de lhe encontrarmos o fim, digo, o começo. Por isso os dogmas, que funcionam, a rigor, como quaisquer postulados ou axiomas que, por seus lados também, protegem-nos de incompreender os números: são todos, dogmas e axiomas, fundamentos sobre os quais se apóiam ideias como a de Deus e a de numerar, não podendo ou não devendo ser, por conseguinte, questionados, investigados, mesmo porque assim agindo se chegaria, em tese, a nada, a outros deles ou a eles mesmos, dogmas e axiomas.

Deus, portanto, não deve - ou não pode - ter tido um começo tanto quanto o ponto não pode - ou não deve - ter alguma dimensão. Ir além disto, digo, demonstrar o que seria não possuir começo ou dimensão, é submeter-se a linha diversa de paradoxos: num caso é preciso supor, por exemplo, que Deus não está no - ou submetido ao - tempo (que seria, naturalmente e como tudo mais, criação Sua); no outro caso, a demonstração indireta de que dois pontos contíguos, e sem dimensão, portanto, formam algo que, por seu turno, tem dimensão, a saber, um segmento de reta, leva à admissão de que o círculo deve ser composto de minúsculos segmentos de reta, incontáveis, provavelmente, sendo por conseguinte um polígono (como de fato é considerado). Mas o que viria a ser algo insubmisso ao tempo ou que tem infinitos (não seriam só incontáveis?) lados e possui, entretanto, forma acabada, finita (por assim dizer)? Bem, coisas semelhantes não podem sem problemas ser pensadas.

Ingênuo, entretanto, é quem pensa que o infinito nos acossa somente em temas como estes. Em aula de física experimental, há coisa de quarenta anos, deparei com um desses abismos bem à minha mão, diante de meus próprios olhos: medíamos o comprimento de uma prosaica barra de metal e nos exigiam a máxima precisão possível, haja ver nos proverem de tudo quanto à época parecia estar disponível para esse gênero de acurácia, como o micrômetro, por exemplo. Para encurtamento da história, tivemos de medir até as marcas finas feitas com o lápis e, nada obstante, uma lente razoavelmente potente mostrava-nos sobrar alguma coisa, sempre.

O que sugiro aqui? Bem, que talvez estejamos - por motivo que, se me peguntarem qual, não saberia dizer - estejamos talvez, dizia, considerando tudo pelo lado menos adequado: é possível que a única coisa com que temos contato direto - além, naturalmente, do 'sou, logo existo' - seja o infinito, não a finitude, e sabe-se lá por que temos preferido, uma vez mais, a fantasia à realidade.

sexta-feira, agosto 16, 2013

Do real na arte

Num contexto como o da nossa cultura uma obra de arte como a literária, por exemplo, não pode ter por significado nada da realidade, ainda que seja classificada como 'realista'. Fora o contrário, seria classificável como obra científica, embora muito provavelmente inverificável e falsa. Pois mesmo existindo pessoas, cidades, animais, bairros, cadeiras, cortinas, casas, anéis, casacas, nada disso é pressuposto existir ou ter existido para que tenha sentido a obra. É evidente, é necessário saber do que se trata cada um dos objetos que a compõem e, caso não conte o autor com o prévio conhecimento que deles tem o leitor, é provável se empenhar em descrevê-los um a um. Assim é que o real não passa de tijolo no interior da obra, elemento com que se tece o sentido intrínseco desta: aliás, o real e o imaginado, segundo os descreva o autor. E assim é que enquanto a ciência procura recriar o mundo em miúdos, a arte - toda e qualquer - se apropria dos elementos deste para criar um mundo à parte e só quando se sai do transe do apreciá-la é possível inteirar-se de que, afinal, não passava de igualmente uma coisa real entre as demais. E sim, é possível que o maior serviço prestado pela arte seja treinar ou habilitar a apreciação a perceber o mundo como arte ou, dizendo-o de outra forma, a demonstrar que o mundo é passível do mesmo tipo de apreciação.

sábado, julho 20, 2013

Para assegurar-nos de que não é assegurado (To ensure us that it is not assured)

O sistema de Berkeley tenta mostrar o quão benevolente é Deus por 'falsificar' para nós o mundo, sem o que a nossa convivência com Ele seria certamente insustentável. Ele simplesmente não pode ser seu amigo, não, pelo menos, da maneira que você pensa ou deseja. Por fim, deixe-O estar e aprecie o que você vê.

Em geral, os fenômenos descritos pelo sobrenaturalismo merecem menos ser estudados pela ciência do que quem os descreve e neles acredita.

O sobrenaturalismo tenta fazer o que a ciência faz: descrever o mundo. Portanto, seria errôneo, se não malévolo, não chamá-lo de conhecimento. Malévolo porque às vezes é feito de boa-fé e errôneo porque muitas vezes é falso, equivocado, enganoso, mas ainda conhecimento.

Talvez o fracasso mais marcante do sobrenaturalismo seja contar com hipóteses improváveis antes de esgotar as verificáveis, um problema vez ou outra acossando a ciência quando seus praticantes perdem a paciência necessária para testar, assim crescendo (ou diminuindo) em imaginação. Um bom exemplo disto é o dualismo de Descartes, uma doutrina incapaz de explicar como a substância pensante que postula se liga à matéria. E quem pensa que isto é apenas história está absolutamente errado.

Mas não, Berkeley não é um sobrenaturalista. Ele apenas mostrou como delírios podem ser postos de modo a não poderem sequer ser submetidos a testes, como os delírios são uma característica marcante nossa e como, no entanto duvidando do que supomos saber, nunca vamos ter certeza de qualquer conhecimento. Por exemplo - e essa observação não é minha, mas de um astrônomo : e se todo conhecimento é fruto do acaso, um acaso que até mesmo os nossos cálculos mais precisos não são capazes de estimar? Desnecessário dizer, você nunca vai ter certeza de se o que eu estou dizendo aqui é verdade.



Por que? Bem, primeiro, porque isso que você pensa do que estou dizendo, seja o que for, é suposto estar em sua cabeça, enquanto o que estou dizendo está aqui, duas coisas, diferentes, apenas correlatas, sem qualquer ligação causal, daí que porventura só os seus pensamentos podem causar uns aos outros; e, segundo, porque mesmo que algum de seus pensamentos possa causar a verdade de outro, ele tem de ter sua verdade causada por um terceiro pensamento, este por um quarto e assim ao infinito. Imagino que você não terá o tempo nem a paciência de verificar toda essa cadeia, caso fosse possível, embora não seja preciso ser um gênio da lógica para ter certeza de que tal é verdade: não é assim?


Pensamentos como aquele são com efeito um espinho na cabeça de um filósofo, verdadera invasão sobrenaturalista às crenças que ele cria verdadeiras. Conselho de outro filósofo: sempre que isto acontecer, não revide: não há como vencer; apenas ignore. Certamente uma solução um tanto sobrenaturalística para um problema sobrenaturalístico, por acaso o padrão de solução dada por todo autointitulado racionalista para seja o que lhe cheire a sobrenatural.

Necessário dizer, essa não é a melhor maneira de conhecer ou descobrir coisas. Pois embora frequentemente falsas, as assunções sobrenaturalistas nem sempre o são, e assim a investigação do que legitimamente alegam pode alargar a cosmovisão naturalística, que por certo  incluiria um perfil mais acurado, não tão mau ou estúpido, do sobrenaturalismo. Você acredita? Caso não, tudo bem. Basta virar a página.


(Berkeley’s system tries to show how God is benevolent by 'faking' for us the world, without which our acquaintanceship with Him would be surely untenable. He just can't be your pal, at least not in the way you think or desire. Ultimately, let Him be and enjoy what you see.

In general, phenomena described by supernaturalism deserve less be studied by science than who describes and believes in them.

Supernaturalism tries to do what science does: describe the world. So, it would be erroneous, if not malevolent, not to call it knowledge. Malevolent because sometimes it is done in good faith, and erroneous because it is often faked, mistaken, misleading, but is still knowledge.

Perhaps supernaturalism's most striking failure is to rely on improbable hypotheses before exhausting testable ones, a problem that every now and then harasses science when its practitioners lose the necessary patience to test, thus growing (or shrinking) in imagination. A good example of this is Descartes dualism, a doctrine unable to explain how the thinking substance it postulates is linked to matter. And who thinks this is just History is dead wrong.

But no, Berkeley is not a supernaturalist. He just showed how delusions can be put so that they can't even be submitted to tests, how delusions are a remarkable feature of ours and how, however doubting what we suppose we know, we'll never be sure of any knowledge. For instance - and this observation is not mine, but an astronomer's: what if all knowledge is due to chance, a chance that even our most accurate calculations aren't able to estimate? Needless to say, you won't ever be sure if what I'm saying here is true.


Why? Well, first of all, because whatever you think about what I'm saying is assumed to be inside your head, while what I'm saying here is here, two different, just correlate things without any clear causal tie, so that maybe only your thoughts can cause one another; and secondly because even if any of your thoughts can cause another to be true, it must be itself caused to be true by a third one and this one by a fourth one and so on to infinity. I suppose you won't have the time or the patience to check all the chain, if that is possible, although one must not be a logic genius to be sure this is true: is it so?


Thoughts like this one are indeed a pain in a philosopher's mind, a true supernaturalist invasion of his fortress of beliefs he believes true. Another philosopher's advice: whenever it happens, don't fight back: there's no way to win; just ignore. Indeed a somewhat supernaturalistic solution to a supernaturalistic problem, incidentally the standard solution every self entitled rationalist gives to no matter what smells supernatural.


It must be said: not the best way to know or discover things. For though often untrue, supernaturalist assumptions aren't always so, and thus investigating its legitimate claims can enlarge naturalistic world view, in which would certainly be included a more accurate and not so mean or stupid supernaturalism profile. Do you believe it? If not, it's OK. Just turn the page.)

sábado, julho 06, 2013

Em que tem de crer

Sim, crê num deus. Não tem escolha sempre que se inteira de ter vindo de alguém e de que estes vieram, por sua vez, de outrem; sempre que se inteira de que tudo parece vir de outra coisa, sem exceção. Em vista disto, arrisca supor que o mundo, em sendo coisas saídas de outras, em algum tempo possuiu coisas primeiras, as quais não foi capaz de imaginar incriadas: assim, visando talvez e somente dissimular para si essa incapacidade, supõe um criador dessas primeiras coisas, mas apenas para se dar conta de agora estar nele a sua ignorância do princípio de tudo. E percebendo que alimentar semelhantes suposições é trilhar caminho sem termo, alentar vertigem sem cura, contenta-se com acreditar ser esse o primeiro a ter criado, o deus.

E então apareces, acoimando-o por achar que o deus em que crê - em que teve de crer - é diferente desse em que crês e que alegas ser único. E lhe demonstras tal singularidade pelos mesmos passos que deu para encontrar esse em que, para conforto de sua ignorância das coisas, teve de crer. E, ora, fossem ainda distintos dos seus os passos que destes para encontrar o teu, é incompreensível que o condenes: pois ou falam do mesmo indivíduo, ou ele não é como o afirmas, único.

No mais, a despeito de tentado, esquiva-se de imaginá-lo como seja para além da unicidade, idéia que acata, embora não veja o por que de a criação não ser obra de muitos: conceber um só, entretanto, é ao menos medida da forçosa economia de uma mente inábil, como a que tem, para com mistérios dessa monta. Dizer mais é enveredar por idéias de que não dá conta, algumas de cujas conclusões, inclusive, desmerecedoras da obra e de quem a fez. Sequer pode mesmo afirmar que não passa esse deus de uma idéia, visto ter sido capaz de conceber um sem número de coisas cujos pares no mundo já deparou e outras que permanecem ímpares. Contenta-se, então, com achar que, se existe, não quer ser conhecido para lá da intuição de que criou e, se proclamou leis, fê-las perceptíveis sem necessidade haver de ser invocado, compreensíveis do próprio entretecer das  coisas. Contenta-se também com se inteirar de teus avanços sobre a natureza divina, não os acatando, no entanto, e espera não vejas nisso igualmente motivo para estranhamento, salvo tenhas gosto por continuar contrariando o que tu próprio afirmas, como dela teres intuído, entre tantas preciosas coisas, a compreensão, a compaixão, a misericórdia.

quinta-feira, maio 02, 2013

Por que não se descreve

Antes de mais, por não ter a mínima noção de quem seja, coisa que a esmagadora totalidade dos homens crê - ou finge crer - em contrário: em seus auto-retratos figuram sempre como bons ou como se possuindo uma boa razão para o mal existindo em si  (que admitem ser pouco) - esquecendo-se de que por natureza se é bom, a despeito do quanto disso decorra. É evidente, tais representações buscam produzir alguma analogia com os retratados, embora delas resultem dois tipos únicos: o dos bons e o dos justificados. Desnecessário dizer que é mais difícil reconhecer quem posou para as do primeiro do que para as do segundo tipo, ao fim aparecendo todos, sem exceção, como um indivíduo só e uma tênue variação deste. Sem exceção enganam-se, embora cada qual acredite enganar somente aos demais.

Irônico perceber como em poucos pensamentos, acreditando ser impossível ou vão descrever-se, lhe apareciam - como se por absurdo - ao menos dois traços distintivos próprios, exclusivos: o desconhecimento de si, decorrente da incapacidade de admitir-se como realmente é, e a surpreendente sinceridade do saber - e do tolerar esse saber - que todo o tempo se engana, que é hipócrita para consigo, sendo essa, em tese, a verdadeira, a única descrição de um indivíduo por si mesmo, algo como o desdobramento lúcido do 'cogito': sei que sei o que não sou. Lúcido por apontar um conteúdo palpável (a própria singularidade) para o que sabe - pois dizer 'sou quem sabe' ou 'sou porque sei', convenhamos, não é dizer muito: sou quem finge saber quem sou e sei disso - o que na fórmula falta em elegância, sobra em acuidade.

domingo, abril 28, 2013

Por que tem de estar só.

Porque, ora, já lhe basta carregar a própria hipocrisia, a própria impotência para se tornar o indivíduo melhor que entende dever ser. Já lhe basta o incômodo permanente de não encontrar o que as justifique. Daí então a tolerar quem acredita ter as mais justas razões para conservar-se hipócrita e para sequer tentar tornar-se indivíduo melhor, está seguro de o entenderem quando afirma ser isto demais para uma sensibilidade combalida como a sua.

quarta-feira, abril 10, 2013

Penso, logo,...

...  desisto. Há quem não creia, mas essa é uma das convicções com freqüência atribuídas ao chamado espírito prático. Nesse contexto indica de hábito a ineficácia do pensamento quando uma outra ação é requerida - em geral em caráter de urgência - na solução de seja o que for. Aqui pensar confina com postergar e, em fim de contas, com inação, inércia. Para esse espírito o pensamento é usado em vetar a quem dele se vale o acesso à oportunidade e, embora pareça inverossímil, é a um raciocínio - ao pensar, portanto - que deve esse juízo, e cujas linhas gerais podem escrever-se: ora, nem todo ato dá com a oportunidade, seja ou não seja ele determinado pelo pensamento, tornando-se assim irrelevante para o sucesso de uma ação que se a preceda de ponderá-la.

E que se imbua de tolerância para com o espírito prático o espírito mais tendido a ponderar, uma vez que parece aquele encontrar apoio para sua tese na irretorquível ciência, segundo a qual, se bem entendi, os membros do nosso corpo estão habilitados a atuar também de modo autônomo, ou seja, sem o concurso do órgão a que presentemente atribuímos o papel de pensar, o cérebro. (A maior compreensão dessa descoberta, é de temer, deverá de futuro ter importância crucial no que há de passar em julgado, se já não a tem, servindo-nos inclusive para melhor compreender a sabedoria judicial antiga, cujas sentenças capitais vez por outra referiam, em lugar de indivíduos, partes destes, as que de certo cometeram  - e quiçá à revelia - os crimes de que os acusavam.)

Mas além da vetusta ciência - que, como a entendemos hoje, nem é tão idosa assim - há também fator quiçá mais incisivo no veredito favorável à ação imediata, fator esse alçado a posição das mais influentes no quotidiano das gentes, a saber, o tempo. Não seria de surpreender se uma enquete criteriosa acerca do que isto de fato seja ou representa para quem dele fala - o que, no caso do tempo, parece em princípio ser o mesmo - no-lo definisse como aquilo que a todos falta ou, no mínimo, como o que temos todos muito pouco à disposição. E aqui ao espírito ponderador poderia seduzir a possibilidade de interpretar esse resultado como apenas exprimindo a consciência de ser transitório o indivíduo, da qual, crê, nem o mais radical espírito prático seria capaz de isentar-se. Já este tenderia a rir-se de tão singela interpretação, uma vez que, embora a contragosto, incessantemente pensa, é evidente, como qualquer um (não o pode evitar), e assim a tem por lugar comum, não o preocupando senão o quanto lhe é possível obter, realizar, com o pouco que lhe falta até deixar de existir. E desse pouco, por pouco ser para tantos, lamenta ele, justificando-se, ainda há quem lhe tire porção, disto lhe sobrando o bastante para que jamais cogite de investi-lo no pensar, pelo qual se arriscaria inclusive a convencer-se da inutilidade ou inoportunidade de reaver o que lhe tomaram e mesmo da indignidade de fazer igual a quem seja.

Por essa e outras razões é possível cogitar para o espírito prático uma variação do seu seu lema, que por praticidade manteria sua estrutura sintática e mesmo os termos iniciais, substituindo apenas o último por 'resisto'. O sentido final permanece aqui inalterado, sendo bastante perguntar a quem o professa de que desiste ou a que resiste quando se põe a pensar, apenas para o conhecer em toda a sua prática ambigüidade: ora, diria,  quando se pensa  desiste-se de - ou resiste-se a - agir de imediato tanto quanto pensar mesmo esse agir, uma vez que é aconselhável desistir de ponderar uma ação - ou resistir a pensá-la de antemão - caso não se queira, inclusive, desistir da oportunidade - ou caso não se queira resistir a realizá-la.

Neste ponto sorri o espírito ponderoso, um sorriso que lhe é próprio, algo búdico, compassivo, mas que não esconde ironia fina. Seja talvez essa a única maneira de chamar ao espírito prático a atenção para si antes de este desembestar na atitude a que mais recorre, seguir em frente. É que, como é de adivinhar, tem algo a dizer do raciocínio que supõe o espírito prático justificar o seu modo de agir. E assim  é que este, um tanto a contragosto, posterga sua ação preferida para inteirar-se de que, ora, se o ponderar não garante em absoluto o sucesso no agir, melhor fosse, quiçá, não agir de todo, deixando ao mundo, em si ativo, agir sobre si, sujeito; enfim, deixando ao acaso o que ao acaso já está. Mais: em se contando ser o pensamento igualmente ação, algo de que o espírito prático parece esquecido, que se desista então de - ou resista a - pensar de todo, inclusive, sugere o espírito ponderoso, certo, entretanto, de ser tal impraticável por quem seja - e isto diz com um rabo do olho para o autointitulado espírito meditativo, em lótus e que com costumeira maestria não dá mostras do que for, como se, com efeito, fosse o único em suceder à interrupção do fluxo pensante, como alega repetidamente após esses transes (e quanto a isso o espírito ponderoso nada tem a dizer, cônscio de ser tema por inteiro alheio ao escrutínio de sua razão, uma vez ter jamais sucedido em livrar-se dela ou de qualquer outro tipo possível de pensamento - a despeito de insistentemente instruído pelo meditador - e, naturalmente, por lhe ser intangível a experiência privada desse instrutor, contentando-se portanto com tão-só ouvi-lo). E é desse modo, em pleno gozo de sua impotência para recusar a própria capacidade pensante,  que o espírito ponderador pontua, finalizando: penso, sim, logo, insisto.


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