sábado, dezembro 03, 2016

Ao ler, 'cante' para entender.

Certa musicologia tem prazer particular em tratar da 'retórica da música'. A intenção evidente é cercar por mais este lado a descrição de uma impressão persistente do ouvinte de música, a de que se veicula nela uma mensagem, como sugere Schopenhauer: "A música é um exercício de metafísica que se ignora, durante o qual o espírito não sabe que filosofa."

Definir ou descrever seja o que for, atividade inevitável e corriqueira que não é preciso ser-se filósofo, cientista, lexicógrafo ou enciclopedista para realizar, é uma das grandes armadilhas do pensamento: acreditando que se fala em determinado objeto ou fato, fala-se na verdade no que se relaciona a ele, o que em teoria seria rigorosamente tudo mais, verdade assombrosa, embora contornável pela escolha do que se estima ter relação mais estreita ou direta com o que se descreve ou define. (Ao falar-se de uma cadeira, por exemplo, tem-se subconsciente e automaticamente em consideração seus mais imediatos constituintes e cujos nomes ou definições, por sua vez, referem 'coisas' ou ações mais distantes dela, como 'pernas', 'braços', 'encosto', 'assento', o material de que é feita, onde ela está, e sem os quais sua noção como um todo não faria sentido. Mais distantes do universo privado da cadeira - e por isso menos considerados em sua definição corriqueira, mas nem por isso livres de serem invocados se necessário - estão o endereço onde a puseram, sua posição relativa a outros objetos, numa lista interminável que, a depender do uso que na linguagem se faz dela, pode incluir sua constituição atômica e as estrelas mais distantes.)

Justo e natural, assim, que se aproxime a língua falada da música, ou seja, que se descreva uma por intermédio da outra, porque afinal, na prática, mais do que próximas, são indistinguíveis, não fosse havermos estabelecido correspondência entre isto que se canta ao falar e as ideias de coisas quaisquer, o significado - o qual inclui até o que é falado, ou seja, palavras e frases (como quando se diz "o termo 'tal'", "a frase anterior", por exemplo). Revogue-se essa correspontdência, isto é, retire-se da fala a espessura semântica que lhe apusemos e eis que resta somente o som de vogais e consoantes percorrendo de agudo a grave a extensão da voz em ritmos e andamentos diversos: pura música.

O emprego do termo 'retórica' em música parece à primeira vista hiperbólico, presumiria demais, como por exemplo a presença de espessura semântica amplamente compartilhada por quem a usa, análoga à da linguagem falada. Há, de fato, algum significado imposto à música, semelhante ao da fala, mas é relativamente insignificante se comparado a este, em particular quanto à sua porção não especializada, não técnica, como o que refere ritmos (samba, fado), estilos (sertanejo, clássico), certas formas (rondó, prelúdio, sinfonia) etc. O vocabulário técnico não é muito maior, e além disso não se trata tanto de uma autêntica espessura semântica semellhante à da linguagem falada quanto de um estratagema da língua para referir certas configurações musicais (compasso binário, cambiata, retardo, meio-cadência e incontáveis outros).

Quanto aos termos empregados para exprimir o que se sente ao ouvir música, até podem constituir volume considerável e haver algum consenso a seu respeito, mas as controvérsias que acarreta compreendê-los como expressões de uma retórica da música já desestimularam a teoria há uns dois milhares e meio de anos, quando em definitivo Aristoxeno pôs de lado as 'musicologias' platônica e aristotólica, pensadas sobre um presumido etos da músca, ou seja, sobre os sentimentos que por suposto ela sugere. A rigor, como se percebe, antes de constituírem alguma espessura semântica da música, são os diversos aspectos da música, inclusive os semânticos, que constituem a espessura semântica desses termos: para o ouvinte a música com efeito evoca ou pode evocar significados oriundos de outras fontes, em particular da língua).

A 'retórica' a que a musicologia refere, de fato denotada em termos de imagens, sentimentos e sensações nem sempre consensuais do ouvir música, é algo intrínseco ao que Aristoxemo se propôs a investigar: o próprio código musical, como ele se organiza segundo exclusivamente os paradigmas ou propriedades que se admite ter o som - duração, altura, intensidade e timbre - e nesse sentido inaugurou a hoje chamada musicologia sistemática. Desse viés e se de fato pertinente falar-se numa 'retórica da música', seria como - dizendo-o de um modo não menos retórico - o diálogo estabelecido entre quem a cria e as propriedades gerais do som acrescidas da que caracteriza o chamado som musical e ignorada em teoria ao tempo de Aristoxeno.

Os sons resultantes são uma parte um tanto nebulosa da teoria acústica, em princípio associados à constituição do timbre e certamente presentes em todo e qualquer evento sonoro, embora não como se apresentam no som musical, em que sua disposição peculiar é evidenciada. A uma análise precipitada o som musical pode parecer mais do que indício do idealismo platônico relativo às formas geométricas, por ser usualmente produzido por instrumentos cujas estruturas se aproximam das mais simples dessas formas, como 'cilindros' (os tubos), 'retas' (as cordas), 'segmentos de plano' (plaquetas e superfícies regulares percutidas) etc. E os sons que produzem, com o deslocamento de moléculas que lhes estão próximo, podem ser descritos como espécie de reprodução ou propagação dessas formas no entorno.

Nesse contexto, o das formas geométricas simples, o som produzido a partir delas parece também desafiar a compreensão comezinha do que seja matéria: as cordas, com que de hábito o fenômeno é demonstrado, apresentam padrôes vibratórios superpostos, se assim é possível referir o fenômeno, em que vibram simultânea e 'independentemente' tanto a corda por inteiro quanto cada uma de suas divisões segundo a série de números inteiros positivos. A resultante, ou série harmônica, é aglomerado de sons, em teoria infinito, dispostos segundo proporções (isto é, numericamente exprimíveis) relativamente às quais se estruturam as escalas e os acordes no fazer da música.

Os harmônicos são na realidade o principal interlocutor do criador de música, enquanto as demais quatro propriedades - duração, altura, intensidade e timbre - seriam como os padrões organizando a língua por cujo intermédio o compositor e harmônicos se comunicam. O diálogo, em si, não se distingue muito dos que travam dois sujeitos quaisquer, girando ao redor de endossos e contestações recíprocas do que se argumenta ou propõe, ao longo do que prevalece, em termos mais tradicionais, a estrutura básica dos harmônicos, paradigma que mormente a música erudita do século XX se empenhou em subverter.

Isto não significa dizer que não se faz música senão com som musical, mas sim que as feitas exclusivamente com outros sons tendem a consistir em diálogo distinto, porque o aglomerado de sons resultantes não permite que se evidenciem, como no som musical, aquelas proporções representadas pela série numérica de inteiros positivos: usando outra vez de uma figuração por assim dizer 'retórica', haveria como que monólogo, antes que diálogo, do criador frente aos sons ditos 'não musicais', presumivelmente devido à quase impenetrável complexidade dos aglomerados dos sons resultantes, pelo que prevalece o emprego como que livre das quatro propriedades restantes do som - duração, altura, intensidade e timbre. (E é provável ser este o motivo de John Cage, ícone da música erudita do século passado, ter afirmado que a percussão, em especial essa utilizando materiais não produtores de som musical, seria essencial na transição da música tradicional para a música do futuro.)

Em ambos os casos, em que se utiliza e em que não se utiliza o som musical, a habilidade humana tem produzido trabalhos contendo invariavelmente o que se vem exprimindo com 'retórica'. E tal não redunda em pouca coisa. Organizar sons sem presumida espessura semântica - no caso, a arbitrariamente atribuída, como se dá com as palavras - acarreta produzir com o encadeamento diversificado deles o significado que, a princípio tido por simples, é poderoso o suficiente para orientar o ouvinte ao longo de ´périplos' invisíveis, oferecidos exclusivamente à audição. Objetos como início, meio e fim, por exemplo, referentes não só a uma peça de música como um todo, mas a cada uma de suas partes, além de tensão e distensão, encontram-se entre os básicos nessa semântica e com os quais são construídos outros, comuns ou não a obras e estilos.

Enfim, o discurso musical eficiente é aquele em que se foi capaz de produzir a orientação bastante para nele o ouvinte encontrar certo sentido. É verdade que podemos definir o pensamento - e decerto não somente o nosso, humano - como autêntico farejador de sentidos em tudo no mundo: somos capazes de ouvir música nos sons dos pássaros e, entre incontáveis circunstâncias mais, em gotas caindo sobre superfície d'água, embora seja também verdade que sabemos distinguir entre essas e a música produzida por outro humano - se assim este o quis, é evidente.

De volta ao discurso das palavras, percebe-se agora que enquanto som elas já são o que se chamaria de discurso, já produzem ou oferecem o suficiente para com elas se elaborarem múltiplos sentidos, sentidos que por certo interferem ou dialogam com os significados apostos (os oriundos de fontes como a língua), na medida em que é suposto estes prevalecerem, por isso não sendo coisa lá muito simples fazer poesia, e infinitamente mais difícil a poesia boa. Coordenar a coerência sonora da linguagem verbal com os ditames do significado do que se intenta dizer é trabalho em pouco distinto do compor sinfonia, formular em matemática ou em lógica, equacionar em física e menos ainda se é o caso de um Schopenhauer, citado acima, de um Borges, de um Pessoa, em que não se abdica nem por um instante da música no engendramento de pensamentos de enorme complexidade.

Mesmo os discursos ou textos mais banais, etretanto, não podem, ainda que o quisessem os autores, abrir mão da espessura sonora porque as línguas se organizam em torno dela. Hoje temos o favor da pontuação - infelizmente nem sempre aceito de bom grado por todos que escrevem - para prover de maior número de combinações expressivas a escrita e de orientação mais eficiente a leitura, coisa com que não contavam as línguas até recentemente, salvo quando faladas, em vista dos limites do fôlego, sem falar na própria organização sonora, que impõe cadenciamento. Muitas das dificuldades na interpretação de textos antigos se devem à ausência de pontuação ou a alguma insuficiente, irregular. Seus contemporâneos decerto não viam nisso inconveniente e por motivo preciso: estavam mergulhados no cadenciar da fala de seus tempos. Nada mais acurado, pois, para testar o poder da música inerente ao falar do que oferecer para leitura de improviso um texto qualquer a quem não treinou para o desafio. Por mais coerente e trivial que seja a urditura do que lê, tropeços, entonação equivocada, pausas inusitadas e outros inconvenientes terminarão, é provável, por fazer do texto nonsense puro.

Isso remete a certo procedimento da educação para a língua que se usava nos meus tempos de colégio, pequenos vexames individuais passados em sequência a cada vez que nos mandavam ficar de pé e continuar a leitura donde parara um colega até que outro nome fosse designado para seguir de onde pararíamos. Hoje - lugar comum dizer - não canso de agradecer por esse 'suplício', assim como pelo das aulas de solfejo (ao compasso de um lápis ferindo a mesa e da mestra vocalizando nossos equívocos - "a ligadura, fulaninho", "aí é staccato, sicrano"), em ambos os casos, no fundo, quase a mesma coisa: era preciso aprender a cantar o texto lido para lhe extrair o sentido. E hoje, em vista do que ouço dizer depois da apreciação de algum escrito, é com algum horror que suponho ter alguém deparado ali silêncio mortal. Para concluir: não parece mais tão acertado, quanto se acreditou, falar em uma 'retórica da música' depois dessas considerações, embora dizer o contrário, ou seja, 'música da retórica', a despeito de em aparência inusitado, passa a fazer todo o sentido - enfim, é por ser música que a fala é retórica e não por ter algo da fala que a música faz sentido. A música, ao que tudo indica, apareceu primeiro, falando do que vai dentro de si mesma, do que se move em suas entranhas.

quinta-feira, novembro 24, 2016

Relaxe e pense: é melhor do que implicar.

"Mas isso é discussão filosófica profunda. Não cabe num papo informal." - é o que canso de ler em incontáveis variações nos fóruns Internet afora. Eis como entendo a frase:

Eu usaria a expressão 'discussão conceitual' no lugar de 'filosofia', que não parece cair bem aí. Porque 'filosofia' significa o prazer de pensar como os conceitos se relacionam entre si, não mais. Enfim, significa o prazer de realizar isso que por natureza fazemos, mesmo sem querermos. Como - exemplo bem 'concreto' para não deixar dúvidas do que quero dizer - defecar: não há quem não o faça (até onde sei) e desses há quem desfrute em detalhes o momento, embora em maioria o toleremos e a contragosto, quase sempre reiterando para si o desprezo por esse aspecto 'animal' de nossa condição - aliás, aspecto altamente informativo do quanto nos vai por dentro sem que disponhamos de muitos outros meios de o detectar e pelo que mereceria o devido apreço.

O mesmo ocorre com pensar sistematicamente os conceitos: é da nossa natureza especular sobre os sinais do que outrem está pensando sobre nós, se um conjunto de fatos indica a ocorrência prévia de outros ou, mais 'atrevidamente', seus desdobramentos fututos etc etc etc. Sem isso seríamos o que acreditamos serem as pedras e a esse respeito só há um punhado de alternativas: fazê-lo bem ou mal e gostar ou não de o fazer, que se combinam em pares, o mais comum dos quais esse resultando mal por pura má vontade.

E antes que esqueça: a questão da 'profundidade'. Alguém uma vez disse ter encontrado Einstein perambulando, perdido pela universidade, sem saber se vindo de uma aula ou indo dá-la. Coisa semelhante ocorria com Platão, segundo seu discípulo Aristóteles, mas no universo dos conceitos, ignorando com frequência se ia ao encontro dos mais básicos, os fundamentais ou axiomáticos (autoevidentes), ou se enveredava na direção dos mais complexos. O pensamento sistemático tem disso: depois de mergulhar nele é comum não se ter ideia clara de a qual profundidade se está, o que é provável apavorar muita gente, pois não se tem escolha senão a de nadar (já que se nasce e se morre à deriva nesse oceano), e em desespero esse pessoal põe-se a se debater.

sábado, novembro 19, 2016

Relativo a quê?

O rastro do einsteiniano é seguido a certa distância por outro relativismo nada afeito a cálculos numéricos e menos ainda aos que recomenda a lógica. Trata-se de espécie parasitária que sem vexar-se deriva da vetusta constatação de tudo ser relativo a única objeção de que se vale para seja o que for: "mas isto é relativo!"

Hoje se sabe que o verdadeiro trabalho de Einstein foi o de extrair consequências inusitadas de umas tantas proposições de Galileu, filósofo cujo tino levou-o a ajuntar ao nascente método científico isto que o mediano estudante de metafísica, sendo aplicado o suficiente, faz milênios compreendeu: tudo quanto se conhece ou é passível de conhecer-se está ou tem de estar relacionado a outra coisa, em suma, o bom e velho dito 'tudo é relativo'.

Mesmo os espíritos sob voto de indigência são capazes de entender que um tijolo, por exemplo, não existe nem pode existir, isto é, não é compreendido nem pode o ser sem que se tenha em conta a matéria de que é feito, a forma sob que se apresenta e, entre incontáveis propriedades outras, a finalidade para que se o concebeu. É imprescindível considerar
também as relações que mantém com objetos mais abstratos como espaço e tempo, ou seja, que é relativo ao lugar onde o encontramos, ali tendo de permanecer o suficiente para, além de propriamente existir, tomarmos conhecimento de que existe.

Se algo de inédito fizeram Galileu e Einstein quanto ao tema, foi trazer de volta à memória coletiva, aí mantendo-a ao passo em que a exploravam, observação igualmente multimilenar e a cuja evidência pensamentos tão díspares como os de milésios e eleatas tiveram de anuir: a de que o objeto de conhecimento é também e necessariamente relativo àquele que o conhece e não só quanto aos respectivos pontos ocupados no espaço e no tempo, aspecto de maior interesse para a física, mas também quanto a tudo que já conhece o observdor. Enfim, além do ponto de vista propriamente geométrico - e temporal - há aquele que se pode chamar de epistemológico, cultural ou de seja como convier à ocasião.

É justo dessa observação, que para lá de sua evidência tem sido fonte donde a imaginação vem derivando paradoxos e outras singularidades que a extasiam ao considerar a natureza, que o relativismo rasteante se vale em sua permanentemente inane condição, apondo a tudo quanto se diga seu único mantra:"mas isto é relativo." Quanto ao que intenta com a insistência no dito, à primeira vista parece incerto, ou ainda, seria até relativo, como admite ao conceder em jogar com o próprio brinquedo, ou seja, até o mantra, ele mesmo, não é absoluto.

A uma análise ainda que sumária, entretanto, suas intenções não poderiam mostrar-se mais singelas, nem mais frágil pareceria sua artimanha, esta sustentada apenas no silêncio anuente de seus alvos: quer dizer apenas que não concorda com seja o que lhe disseram e quanto ás razões, os motivos para tal, bem, fica por dito o não dito, do que se deduz o óbvio: está em ponto exclusivo no espaço, tem exclusivo 'background', por conseguinte não sendo o outro, nem podendo pensar ou julgar como ele. Desnecessário observar, mas já observando que a depender dele, relativismo de rasto, o conhecimento, assim com o entendemos, seria impossível porque não compartilhável e, por isso, não testável frente ao de outrem, a cada qual de nós cabendo saber do mundo o quanto o permitirem a circunstância e a duração da vida.

O relativismo da física preconiza de fato a validade da visão - ou teoria - singular, obtida sob condições que serão de necessidade únicas para todo o sempre, entretanto sem esquecer de que são muitas, infinitas, as singularidades, de que não estão isoladas, incomunicáveis, uma vez que são parte do mesmo continuum que chamamos de universo, e de que vêem - teorizam - umas as outras, assim completando-se no que seria a visão - teoria - consensual do todo (espécie de epifania exclusiva de quando se sonha). Por esse prisma é possível adiantar, primeiro, que além da quimérica visão da totalidade é provável que apenas a relatividade do conhecimento seja absoluta e, segundo, que se com seu mantra o relativismo rasteiro quis somente dizer de seja o que for, exceto essas duas coisas, que não se trata de absoluto, nada mais indicado do que anuir com o silêncio à óbvia verdade da afirmação, mas em caso contrário é mister ter sempre na ponta da língua a pergunta: 'relativo a quê?'

segunda-feira, outubro 31, 2016

Pontas de virtude

a Imna

Em cinco pontos uma parábola dá lição breve de ética valendo-se de um lápis. Como ele, então, a) não seríamos autônomos, mas guiados por uma mão - no caso, a de Deus, evidentemente; b) precisamos ser eventualmente 'apontados' para funcionar a contento, ainda que com isso ocorra desgaste; c) o que 'escrevemos' - ou, segundo o proposto em a), seria o que se 'escreve' conosco? - deve ser passivel de rasura, não havendo mal em emendar o erro; d) somos o conteúdo, não o que o envolve: e) tenderíamos a vincar o lugar por que passamos, deixamos marcas, sendo preciso cuidar para que sejam as melhores.

De saída o ponto a) contradiz c) e e): um lápis não é de fato responsável por nada que se faça dele ou com ele. Mas a contradição na metáfora ilustra as dificuldades que surgem ao se propor o problema da origem - ou da Criação - como obra em progresso, sugerido na imagem da mão e sua ascendência absoluta sobre o lápis e o que com ele se produz. Desse viés Deus estaria perpetuamente criando, inclusive por intermédio do que já criou: a ideia de onipotência divina sofre aqui um revés com a sugestão de eventualmente necessitar Deus de intermediários - de se valer de instrumentos - para o que cria, caso não se justifique que o faria por puro desfrute, ou seja, apenas porque pode. Não deixa de ser também uma eloquente defesa do homem pelos incertos resultando de tudo quanto inventa e faz, como a tecnologia e seus reveses.

Os pontos c) e e) trazem outra evidente crítica, desta feita no que tange a como concebemos Deus quanto ao atributo 'perfeição', por certo o mais importante: ainda que guiados pela mão divina, erros são produzidos. Dessa perspectiva Deus é mostrado como, a despeito de imperfeito, moderadamente cauto, tendo-nos feito como o lápis, cujos riscos podem ser apagados, embora não os vincos que obrigatoriamente deixaria.

Mas justo por estarem em contradição com o ponto a), c) e e) podem ser entendidos independentemente ou à revelia dele: assim aparecemos como aqueles a quem - por 'escreverem' como os lápis - é dada a chance do emendar os próprios erros e a quem se recomenda o cuidado com o que mais dura do tanto que produziu, que são as marcas ou os vincos deixados nos lugares por que passamos. À diferença da ideia do risco, a do vinco o sugere como resultado não intencional, embora inevitável, da escrita, o que a experiência com os lápis contraria, uma vez que também há vincos intencionais, assim como é possível com algum empenho não vincar ao escrever com eles. De modo que, do ponto de vista do sujeito em pleno gozo de sua volição (ou não guiado por mão divina), a recomendação de cuidado para com as marcas que deixa pode referir também a passagem incólume do sujeito pela existência, se assim desejar e lograr, deixando de si o mínimo ou mesmo nada.

b) e d) tratam do que se dira estrutural ou essencial da existência do indivíduo, em contraste com o que ele produz, objeto de c) e e), correspondendo a uma visão mais realista, ainda que pouco  auspiciosa da vida. O corpo é o involucro de madeira e a alma, o grafite, enquanto a ponta seria a parte da alma em contato direto com o mundo, que nele atua, modiicando-o ao produzir coisas. Entretanto ocorre de o uso desgastar a ponta, tornando imperfeito o que produz: a solução é então afilá-la, procedimento necssário à boa qualidade do produzido, mas danoso para o lápis como um todo, reduzindo progressivamente seu tamanho até a inutilidade, quando então manuseá-lo será penoso ou impossível.

A metáfora parece bem apanhada, exceto por um ponto crucial: se por motivo central a parábola tem o estimulo à realização de obras virtuosas e se estas se fazem por intermédio da parte atuante da alma quando - e somente quando - está em condições de o fazer, então tanto o uso da virtude quanto o seu aprefeiçoamento seriam as causas ou, no mínimo, estariam na raiz da degradação física do indivíduo, conclusão que, apesar de um tanto inesperada, nada tem de absurdo. Visto desse viés o ponto não faz da virtude prática convidaditva.

Com efeito parece não haver objeção eficiente à constatação de ser, sim, no esforço de corresponder às demandas do mundo que aos poucos o indivíduo se desgasta. E esse esforço pode ser dito, em tese, como o emprego de alguma virtude, como ação virtuosa, não de necessidade uma do tipo que a parábola quis referir, isto porque mesmo o ato egoístico - ou malévolo no pior dos sentidos - contém lá sua virtude, em particular se resulta, se é eficiente. Mas seja qual for o caso, em verdade o uso da virtude seria no mínimo duplamente danoso, por depender ela de ser exercitada - ou esmerilhada como a ponta do lápis - antes de usada com sucesso.

Quando criança e, claro, sem a minima ideia de décadas à frente vir a tomar conhecimento assim tardio da parábola do lápis, intrigavam-me ou afligiam-me em certos estojos, em geral de meninas, alguns exemplares colecionados de lápis reduzidos ao que se poderia chamar, em termos de suas dimensões, de inteira miséria, embora apresentassem as pontas notavelmente bem feitas. Uma ou outra de suas donas, como se querendo justificar tê-los guardados, de quando em vez se exibia com um desses coitados em exercícios de caligrafia, a despeito do esforço exigido para o feito.

Lembrar deles agora, depois de inteirado de sua metafórica ontologia, é acordar uma certa tristeza, a de entender que aquelas virtuosas pontas foram as últimas na sua condição de lápis, que refazê-las depois de gastas seria extirpar o que resta da madeira ao redor do grafite. Talvez não fosse à toa, por exibicionismo tolo, que os usassem até o final aquelas meninas, mas por espécie de caridade que os tirava do esquecimento naqueles depósitos diminutos, livrando-os da tragégia de por tempo indeterminado serem virtuosos apenas em potência. Como é de imaginar, havia também uns suportes em plástico com o comprimento normal dos lápis, em que eram encaixados os cotocos, exceto aqueles ínfimos, cujas donas, parecendo adivinhar o que representavam, os tomavam então com as pontas dos dedos e, sem fazer caso do transtorno, caprichavam na letra.

sábado, julho 16, 2016

Pensamentos em economia

Intróito


Antes de mais: sem essa de achar que não tenho direito de pensar economia, já que, músico, não me intrometo quando você pensa música, o que sempre faz ao por alguma para tocar ou ao falar de suas preferências. Como usuário ou agente inescapável do mercado é inevitavel que o pense, ainda que não como economista, o que é certamente uma vantagem, na medida em que minha opinião não precisa agradar a gregos ou troianos em troca de me sustentarem, o que se entenderá melhor a seguir.

Interlúdio


Como é legivel, humor, se algum, no cáustico, paciência, no vermelho. No fundo, gosto de abordar o tema, mas do viés do aborrecimento, da zanga, pois é sem dúvida o que melhor lhe cai. Assim, se acha que perde tempo em continuar lendo, pare de achar e não o perca ainda mais.

O assunto ele mesmo


Balela isso de dizer que dinheiro precifica coisas, arbitra para elas valores que alguma vez tiveram relação com o que intrinsecamente valem. Valor intrínseco é atributo circunstancial, ainda que a memória o retenha por precaução, e diz respeito à saciedade ou satisfação de necessidade, ainda que tola. Não há no mundo como quantificá-lo com um cardinal impresso em moeda: o que agora vale o próprio avassalamento, depois de saciada a necessidade pode chegar a valer nada ou mesmo a causar repulsa - valor negativo.

O que se precifica, em realidade, é a energia humana, em particular a produtiva, expressa grosso modo no preço do que se produziu. Por modulador dessa valoração tem-se outra forma de energia, a volitiva ou desiderativa, em razão direta do aumento dos preços: assim, se você precisa demais dum salário e deixa isso patente, esteja certo de que obterá menos do que pretendia e sob a impressão de que lhe fazem favor, podendo também obter nada, isto porque seu extremado desejo permite ao empregador superestimar o próprio dinheiro, com que lhe pagará, se for o caso, sem falar em que no restante do mercado o seu ganho terá valor igual ao dos ganhos dos restantes indivíduos, se não menor, a depender sempre do tamanho de seu desejo, é claro.

Outra: é evidente que o mercado está sujeito a influxos como o da sazonalidade, por exemplo, mas bem menos do que nos fazem acreditar. Na verdade em economia as estações correm ao sabor da oportunidade de ganhos maiores, o tempo aí tem estado sob controle humano há milênios sem que para tanto se tenha necessitado de outra tecnologia senão a movida a energia humana, essa do trabalho e, neste caso, principalmente a do desejo. Nunca houve no mercado outra tração além da humana, mesmo porque é ela o que dá sentido à tração animal e à da máquina, que em si mesmas valem nada.

Cenário de outra ação este não é senão a do escravagismo, seja ao modo esclarecido, seja ao dissimulado. Leis que tipificam as chamadas 'condições análogas à da escravidão' não passam de outra balela, a que visa exclusivamente conter os adeptos mais afoitos da forma esclarecida de escravizar, que dela se aproximam simulando a maneira dissimulada a que, via de regra, os demais nos submetemos: parece mesmo que assalariam, mas forçam o trabalhador a consumir a preços imorais e impagáveis o que tão só lhe permite não morrer, condenando-o a débito em crescimento perpétuo. Por função precípua teriam essas leis a de evitar que abusos do gênero, correndo frouxos, terminem por despertar a analogia posta para dormir em nossas imaginações desde quando se aboliu a escravatura descarada, imaginações em tempos de Direitos Humanos, pondo-nos assim a compreender a mecânica da escravidão dissimulada.

Não se engane: não é por estar nas galés, na lavoura ou puxando blocos de pedra na construção das pirâmides que se caracteriza o escravo, que pode até desfrutar do conforto de servir à mesa, de cuidar das crianças da casa, ou do pecúlio modesto que lhe concedem em troca de alguma confiabilidade, de certa conivência. Aliás, vale o lembrete: escravo é aquele que quer muito algo, embora muito pouco disso mesmo. Em outros termos: quer viver, não lhe importando como.

sábado, abril 30, 2016

Esboço de crítica estóica à moral neoliberal

É preciso continuar lembrando aos picados, entre outras, pela ideia de liberdade assim como a manipula a doutrina neoliberal, que o poder de escolha, indício maior - segundo esses ideólogos - de ser livre quem o tem, denota ignorância, talvez a mais profunda e elementar. E isto por uma simples razão: se o indivíduo de fato sabe o que é certo, inequivocamente certo, é evidente que não tem escolha e, em consequência, não há liberdade alguma nesse sentido, o pregado pelo neoliberalismo.

Insisto no meu exemplo batido, o do mate em três diante do qual estariam o diletante e o mestre enxadrista: o primeiro tem boas chances de desperdiçar a oportunidade por ver na disposição das peças apenas profusão de movimentos a serem escolhidos, enquanto o outro não poderá evitar de mover a peça que desencadeará o mate inevitável, salvo entenda haver proveito em empatar ou perder a partida. Um se encanta com as possibilidades de ação à sua escolha, o outro só enxerga um movimento porque tem em vista o melhor na circunstância e sabe não haver outra coisa a fazer nela; um sabe, o outro ignora e pode malversar a oportunidade - e principalmente contra si. Em suma, nestes termos ‘liberdade (de escolha’ - é claro) denota apenas ignorância daquilo cujo resultado o torna incontornável, sem rivais, sem alternativas, o que não acarreta proscrevê-la, pois é evidente que ela sempre existirá enquanto o indivíduo não conhecer o que não tem alternativas, o que também não implica, por sua vez, tê-la por algum tipo de vantagem, por algo de que se possa vangloriar-se por se estar à sua mercê: ao contrário.

Mas, excluídas situações especiais ou extremas, quase nunca a circunstância determina como sendo a melhor a solução resultando em ganhador e perdedor, como é próprio de jogos como o xadrez e muito frequentemente, segundo os neoliberais, do chamado 'mercado', havendo inclusive alguma teoria sugerindo ser mais adequada a saída pela colaboração, seja qual for.a disputa: no go, por exemplo, o grande mestre ê reconhecível por privilegiar essa linha de ação colaborativa, a qual se reflete na configuração final do tabuleiro, de inegável excelência em termos estéticos - uma partida desse jogo que resulte em disposição desarmônica de peças deixou patente ter sido violenta, terem os contendores visado a vitória crua antes que o jogo, antes que sua beleza e prazer.

Não sendo sempre contornáveis as situações de ganho e perda, parece ser, pois, evidentemente desnecessário que sem motivos claros se as enfatize, provoque, desencadeie e, menos ainda, que se as torne em motivo de regozijo, como parece ensinar o privilégio do estético no jogo do go. É preciso lembrar que em fim de contas somos todos favas contadas na batalha de que nenhum de nós tem sido capaz de desertar, a batalha por manter-se vivo, em que dia a mais, dia a menos, estaremos sem exceção derrotados - e da lógica que esse destino determina talvez só escape o suicida, evidentemente por ter mudado de lado nessa guerra. E em vista de desfecho assim universal e inevitável parece pouco perspicaz tirar dele outro proveito senão a compaixão, termo que em seu sentido estrito descreve tão-só a constatação de estarmos todos na mesma balsa montada com os destroços dum naufrágio que não vimos, não percebemos e em que quiçá sequer estivemos, a despeito de sem dúvida sermos seus náufragos e de não haver terra à vista no horizonte oceânico.

Ao postular indevidamente como 'liberdade' o poder de escolher do indivíduo inebriado com a profusão de possibilidades sobre as quais exercê-lo e sem estar previamente advertido do dever de manter sob constantes revisões os critérios orientando sua escolha caso esteja entre suas preocupações prevenir desastres, o neoliberalismo escancara porta já perigosamente aberta para o egoísmo, essa que antes dá no atoleiro em que são retidos os de cepa menos resistente: aí chafurda quem tende a fazer do drama da balsa de náufragos a tragédia duma ‘balsa da Medusa’. Porque em essência o egoísmo não passa da manifestação numa consciência da propriedade do ser que propicia a individuação, que permite à consciêcia conhecer e reconhecer as individualidades e o quanto as sustenta, não lhe aparecendo o mundo, por isso, como massa indiscernível - e em que é de supor incogitável ser capaz de sobreviver. O egoísmo é a teoria de si que produz cada consciência no afã de subsistir, de permanecer (no tempo, portanto), consistindo então em instrumento antes de em arma. E é exclusivamente o conhecimento sempre mais aprofundado do que proporciona à consciência a sobrevida o fator a garantir ao egoísmo a condição instrumental - é somente na medida do entendimento de que se existe numa rede de proporções inestimáveis cujos membros têm todos papel crucial na existência ou permanência de cada um dos demais e a despeito de certas consequências nem sempre aceitas sem contragosto, como a inevitabilidade do morrer, e que em aparência alteram em nada a justeza desse entretecimento de individualidades. O egoísmo instrumental confere ao indivíduo consciente a capacidade de reconhecer tudo mais como partes imprescindíveis de si mesmo: continua ‘amor-próprio’, sim, mas de abrangência universal.

Daí ser fácil de ver por que ao invés de objeto do domínio que se chamou ‘transcendente’ (se ideia de tal é sequer pensável), ou o reino do chamado ‘místico’, a compaixão é, ao invés, matéria do imanente, o reino do que se denomina ‘humanístico’, ‘ético’, ‘político’ etc: o ‘compartilhamento do mesmo páthos’ não pode ser ato ocasional, intermitente, sem que se denote dessa infrequência ignorância grosseira, sem que se negue sua condição de dever de conceder direitos a quem de direito for e sem que se o transforme em coisas como a ‘caridade' assim como o senso comum a compreende. Introduzir nesse contexto a ideia de escolha, então, não é senão submeter-se ao barbarismo de cogitar haver alternativa ao egoísmo instrumental de viés universalista, de cogitar de o contrário dele trazer algum proveito para quem ou o que seja.

Se definível de modo sério ou que a torne em conceito relevante, a liberdade o seria, ainda que de forma tíbia, como a desincumbência de dever cumprido, definição um tanto inquietante na medida em que confere ao dever conotação negativa de estorvo, entrave, o que de necessidade não é. Vê-se portanto que em sua acepção forte ‘liberdade’ só pode traduzir o desvencilhamento do quanto estorva, entrava, só pode referir a supressão do que escraviza. Assim o entendeu um dos mais admiráveis pensadores e um dos meus preferidos, o estóico Epicteto, que foi inclusive escravo na Roma Imperial do primeiro século desta era, sendo só por isso credível tratar-se de autoridade na matéria, não bastasse o cabedal do estoicismo de que foi herdeiro.

terça-feira, março 22, 2016

Um dos encantos de ler Epicteto

... é entender que a filosofia é pura ética, no sentido de ser em ética que ela se resolve e se consuma. Depois de empenhar-se em superar os problemas em que tropeça por estar no mundo, agrupando-os sob rótulos como os de metafísica, lógica, ontologia, cosmologia e tantos mais, ela - filosofia - tem de  enunciar como o seu sujeito, o indivíduo que a possui e processa, pode ou deve estar no universo: resulta a filosofia, então, em ética.

Em Epicteto a ética preside, incontestada, e tem por critérios o que se expõe na estética, apenas porque estar no mundo tem de ser bom, ou perde o sentido. E tudo mais nessa obra é apêndice para justificar ou demonstrar a ação adequada, não necessariamente a acordada, ou moral, a ditada pela pressa que tem a comunidade humana de funcionar, ainda que não a inteiro contento. Assim, metafísica, ontologia, lógica, cosmologia, quando ali aparecem, é como apostos, separados por vírgulas do conteúdo principal, desse modo reafirmando também o propósito estóico de não interferir além do necessário na máquina do mundo - propósito este desvirtuado por Descartes, do que se redimiu ao compor capítulo inteiro de intuições errôneas a respeito das coisas, pois seu racionalismo, de raiz estóica, seria jamais capaz de as compreender, ou não, ao menos, sem parceria com o empirismo.

O estóico quer, antes, modular seu sujeito, propósito este afinado com o fim da ética e internado no indivíduo com os critérios estéticos, que não passam de atribuições, de mera rotulação do que está no entorno visando o desfrute das ideias que este suscita. É por intuir o bom no mundo que encontra o estóico a moderação nos atos, o auto-domínio, pois é mister deixar ao máximo como está a arrumação que aqui achou ao chegar, pois é assim que aprendeu a desfrutá-las. Neste ponto o estóico não esconde ser na verdade uma espécie de hedonista, pois o que o conduz à ética não pode ser diferente de algum prazer que, por sua vez, é o simples sinal ou sintoma do contato do sujeito com algum bem.

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