quinta-feira, maio 03, 2018

Razão proficente ou 'intuição'

Só o fato de discutir, analisar, a afirmação de a intuição ser substitutivo da razão é indício de o assunto não ser intuitivo, ao menos não no sentido que se faz de 'intuição'. A rigor perceber e compreender, além de semelhantes ou quase sinônimos, são ações que de necessidade passam pelo crivo da razão, no sentido aritmético mesmo, uma vez que, até onde se sabe, na massa encefálica e nas enervações que a completam permeando o restante do corpo tudo se dá, em última análise, por meio de pulsos, os elétricos, ao passo de reações químicas que os estimulam. Som, cor, textura, sabor e cheiro, sem falar na denotação interna, no meio cerebral ele mesmo, disto e do tanto mais que isto faz aparecer ali, como os conceitos, as ideias, tudo se passa no cotejo de pulsos e em sua resultante razão.

Mas nem era preciso ir-se a essas lonjuras ou miudezas porque seguramente a humanidade as ignorava quando se deu conta da analogia de razão numérica e processos cognitivos, que resultam sempre, do cotejo ou comparação de ao menos duas coisas, na ideia ou conceito em que é resumida a operação.  Os antigos já sabiam igualmente que assim como quaisquer dos demais processos do corpo, como o correr, pular, cantar, tocar um instrumento, desenhar, e outros tantos, os da cognição podiam ser aperfeiçoados, inclusive no tocante à rapidez, sem falar na profundidade e no alcance.

De volta aos nossos tempos, hoje se sabe, por exemplo, que o tatibitate dos bebês está longe de ser brinquedo tolo e via de regra as crianças serem mais sincera e rigorosamente científicas em seu escrutínio do mundo do que muitos dos seus pares cientistas por profissão - que por terem mais idade, como já observava Aristóteles, estão mais enfronhados no disse-me-disse da pólis, o que não seria sempre tolerável por um espírito de ciência autêntico. A preocupação com o exercício do corpo como um todo e o desfrute da consequente proficiência parecem inerir à natureza animal antes de exclusivamente à humana: e aí o intuicionismo afobado tenderá a ver o buraco onde proteger-se do que estará certo de ser ameaça à sua existência, no que, é lamentável, se engana, porque o objetivo aqui, como já deve 'intuir-se', é o de ver a intuição como o mais próximo possível do que de fato pode ser.

Em vista de tudo no ato de conhecer ter de passar pela 'ratio', intuir seria, pois, a ação da cognição proficiente, ágil em virtude do treinamento, ao invés de faculdade suplementar e suposta distinta e até superior à de raciocinar. Fosse diferente da razão e efetivamente superior a ela, a própria língua ter-se-ia encarregado de eliminar a porção negativa da dubiedade que muito justificadamente usa para referi-la: na fala comum 'intuitivo' se diz tanto da proficiência constatada como da falha grosseira de um palpite. Insistir em dizer de alguém 'intuitivo' cerresponderia, portanto, a louvar os acertos de suas opiniões súbitas ou a qualificá-lo de improfícuo - ou de coisa pior, como de preguiçoso contumaz.

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