quinta-feira, novembro 02, 2006

Discurso liberal

a um amigo

Ora, meu amigo, é uma maravilha esse mundo liberal! Como indica o próprio nome, é tudo quanto pode alguém desejar: liberdade, direito inalienável com que nascemos e pelo qual nos é permitido fazer o que desejamos de nossas existências, até mesmo errar, se assim for necessário ou acaso apenas assim o queiramos. Pois só se é livre quando é possível escolher, inclusive o pior. Sem ser isso da conta de ninguém.

Ou você preferiria o mundo onde alguém lhe dissesse o que fazer, o mundo sem escolha, pronto e acabado a despeito dos seus anseios particulares? Sendo esse o seu desejo, é bom se apressar: não há mais tantos lugares onde tais experiências são feitas e em breve nenhum restará. Mas não vá, depois, reclamar, pois isso é malvisto por essas bandas, se não impossível. Nem me venha dizer que eu não avisei.

Um dos pontos notáveis do liberalismo diz respeito diretamente ao significado mesmo do termo. É-se livre para dar-lhe aquele que se acredita ser o mais cabivel. São possíveis tantas idéias liberais quanto houver de indivíduos a concebê-las, havendo para tal, em aparência, somente o limite da interdição ao aparecimento de novas: em vista dessas premissas, a única proibição tolerável por um espírito francamente liberal só pode ser a de proibir, ao menos e em particular a concepção do que seja a liberdade. Semelhante panorama, como é previsível, se apresenta como a convivência, nem sempre pacífica, tampouco inteligível para a maioria de nós, de idéias em franca oposição, em aberto conflito. E ao liberal autêntico, é natural, não inquieta semelhante composição. Do contrário, nada mais livre do que a profusão, ainda que conflituosa, de convicções.

Dado o fato de tais juízos dizerem respeito, por necessidade, ao modo idiossincrático de cada indivíduo entender e lidar com a realidade, é de esperar o recurso freqüente às vias de fato na dirimição das divergências. É claro, há regras moderando o uso de tal solução, havendo também um sem número de objeções e de reparos às mesmas, propostos com o fito de conservar o equilíbrio ideal de duas forças contrárias (pois no liberalismo, reiteremos, é-se livre para virtualmente tudo que não cerceie seu princípio seminal, o da liberdade), redundando todos no favor incontornável a uma delas. Eis, ouso afirmar, um dos problemas genuínos enfrentados na experiência liberal do cotidiano.

Correntes mais realistas do liberalismo, entre cujos bordões está o uso da silenciosa ironia num dos cantos dos lábios constantemente dirigida aos liberais afeitos ao idealismo, costumam justificar essa insubmissão das regras a todo esforço corretivo como a emergência da lei natural do mais forte, contra a qual é impossível insurgir-se sem pôr em risco a continuidade do princípio liberal. O indivíduo, evidentemente, é livre para manifestar-se como é, e se a posse de maior força é sua condição originária, nada poderá coibi-la sem o fazer de enfiada com sua própria liberdade. É de esperar que num ambiente de liberdade semelhantes situações sejam contornadas de maneiras igualmente livres, mas uma dessas contingências - talvez só explicáveis nas leis da físicas contemplando o comportamento imprevisível de partículas dispondo-se segundo padrões simples e determinados a despeito de se moverem aleatoriamente - tem produzido a adesão em massa, se não total, dos adeptos do liberalismo à convicção de haver também um equilíbrio intrínseco a essa lei natural do mais forte provendo cada indivíduo de força particular cujo emprego adequado pode levá-lo a superar a de outro semelhante. Assim convencidos, professam ou demonstram o livre direito de cada um ocupar, segundo o uso conveniente das próprias capacidades, as posições mais elevadas - as mais cobiçadas por praticamente todos - na estrutura da sociedade liberal.

Só mesmo um tolo, é óbvio, escolheria viver num sistema não liberal, seja ele qual for (pois não há, para algumas correntes do liberalismo, senão ele mesmo em oposição a uma profusão de versões inconsistentes do seu contrário, o não liberalismo). Onde mais, senão cá, seria possível prevalecer sobre os iguais, ainda que por período incerto? Onde mais se toleraria a submissão senão onde existe a perspectiva de, algum dia e a depender da própria habilidade, submeter também? Há quem prevaleça por lustros consecutivos e mesmo quem o faça por décadas ou séculos e, nada obstante contestados e até combatidos, gozem do merecido respeito dos seus contendores, garantido no princípio liberal. Tornam-se história, exemplo, esperança para gerações de submissos no aguardo de suas horas ditosas de preeminência. São, tais ícones, prova definitiva da liberdade de meios usados para atingir os seus objetivos. Para comprová-lo é suficiente consultar suas biografias, cuja reunião, aliás, é o objeto central da ciência histórica.

No cerne do pensamento liberal, é consabido, está a noção de erro. Ali o erro é apresentado como o direito maior ao qual fazemos todos jus. Em particular pela compreensão de que a todo erro cometido num certo âmbito corresponde um acerto noutro. Imperdoáveis, entretanto, são os erros do indivíduo cometidos consigo próprio, tidos como manifestação de incontornável fraqueza e merecendo, quando menos, o escárnio universal. Os demais, todos decorrentes da passividade, são inteiramente compreensíveis, tanto que para designá-los adota-se o eufemismo 'engano', pois os cometeram quem procedeu com acerto para si, induzindo os restantes aos equívocos ditos perdoáveis. Sem errar tornar-nos-íamos inertes, seres desprovidos de qualquer desejo de movimento, fadados à sucumbência, se não pela depressão, decerto pelo suicídio. Motivados pelo temor de semelhante marasmo, há mesmo quem admita o perdão para os erros imperdoáveis como alternativa para evitá-lo. Mas os autênticos pensadores liberais, convencidos do império incontornável da liberdade (pelo que nem mesmo preocupam-se com criar-lhe dispositivos protetores), não reservam para estes desesperados senão o mesmo sarcasmo de canto de boca lançado ao liberalismo idealista.

A seguir à risca o pensamento desses genuínos liberalistas chega-se à conclusão inelutável de que a consideração de outro princípio fundamental da ética que não o da liberdade, como o da igualdade, por exemplo (precipitadamente associado a ele no fervor renitente de revoluções), é apanágio dos desprovidos da força, da astúcia ou do poder bastantes para alguma vez acharem-se no ponto mais alto na roda de fortúnio, confinando-se indefinidamente à parte submersa dela mesma. É o caso de quem não logra escapar de moto próprio ao erro alheio recaindo sobre si ou de quem erra contra a própria pele. Só estes, segundo essa filosofia, são capazes de imaginar, como o faz quem tem sede no deserto, modelos perfeitos de eqüidade com os quais iludem-se em massa, configurando em seu delírio ameaça suficiente para aqueles cujos poder e habilidades para conservá-lo são congênitos. Tendo conseguido mudar de posição em esforço coletivo, dominando quem antes os submetia, percebem-se, esses fracos, quase de imediato regidos - ainda e de fato - pelo princípio liberal, reconhecendo como secundários aqueles outros princípios que os guiaram a prevalecerem, passando de imediato a proceder como é de esperar e, caso não hajam aprendido de sua experiência de ascenção a perspicácia para manterem-se onde estão, descambam de volta nos submundos donde a custo se ergueram. Em vista dos fatos, para o liberalismo realista a conclusão óbvia é a de não haver pensamento outro a refutá-lo nem iniciativa alguma a destituí-lo.

Rio, 02/11/2006

Waldemar Reis

segunda-feira, setembro 18, 2006

Melancolia

A idéia de depressão traz a mim a lembrança de uma charge, se não me engano, do Sempé, monumentalmente estampada em duas páginas de um número dedicado à literatura latino-americana da antiga revista Status. No traço descuidado e sujo típico da caricatura do século XX, mas nem por isso feio ou ininteligível como o foram muitos da sua espécie, divisavam-se, do alto, blblioteca ocupando todas as paredes de um enorme salão obscurecido e, quase perdidos na imensidade da detalhada garatuja, duas personagens assentadas sobre poltronas fartas. Apenas uma delas fala e discorre sobre os seus motivos para evadir-se da depressão, a frivolidade dos quais a deprime.

Sou de opinião que o deprimido só tem mesmo solução para o seu mal na folia - com o perdão pelo galicismo, mas ele ilustra suficientemente bem uma face do comportamento que a moderna psiquiatria diagnostica como doença bipolar. Nos termos de Sempé, dir-se-ia que o doente adere aos motivos inconvicentes ou permanece melancólico, pois não os há de outro tipo. E tal adesão só se verifica quando o sofrente o faz com todo o seu ser, digo, de modo frenético, estado cuja duração é medida na razão direta de sua resistência física: se o sujeito tem sorte, há falência orgânica; se não, um repouso temporário é o prelúdio para, caso encontre motivo, retomar o desvario ou, no caso contrário, intoxicar-se outra vez com a bile negra. Afora essa, à inteira disposição de espíritos menos exigentes ou mais necessitados, há soluções mais demoradas, da ordem das terapias propriamente ditas, e que requerem, se não maiores refinamentos, por certo boa dose de determinação.

Tenho alguma experiência no assunto, claro, como padecente e, de quando em vez, como leitor de doutas opiniões na matéria. Conheço a envolvente gravidade das razões depressivas, bem como a trivialidade exasperante das que as combatem (assim vistas do viés de quem se deixou convencer pelas anteriores). É efetivamente impossível escapar ao assédio das primeiras quando se sobrevive um pouco ao corte do cordão umbilical (não estou sendo hiperbólico, visto o corpo recém-nascido, a descoberto dos cuidados automáticos do organismo materno, já ser provido do arcabouço sensorial na raiz do fato depressivo, pelo qual tem de, doravante, chorar quando tem fome ou frio, ao menos). Entretanto, talvez em virtude do período de formação do indivíduo, ao longo do qual constitui e consolida essa parte sua mais afeita aos motivos depressores, falo da razão, só quando adulto virá discernir dos demais sabores à sua disposição o amargor característico desse mal, dar-lhe-á um nome e perceberá que sua saída está em abrir mão disso que lhe concedeu a maturação, em retornando a um estado mais próximo do inicial, grandemente desconfortável quando se está em contato com quem não reconhece ou aprova essa via terapêutica. Há quem, como eu, encontre modos aceitáveis do viés da sociedade de alternar a inexorabilidade da tristeza com uma atividade física radical, no caso, um esporte, mas há quem encontre solução em exasperar-se com os entes queridos até as vias de fato ou com os opositores numa tribuna e quem consuma drogas ou se exaura em sexo para não se entregar ao fim decerto o mais lamentável reservado a um vivente.

Além do padecimento de intermitentes depressões, minha experiência na área tem sido larga como testemunha de crises alheias. Uma destas arrastou-se por anos, cerca de doze, mas eu a assistia demasiado próximo para só lhe extrair os ensinamentos mais de década depois. Tratou-se de um construto cuidadoso, muito bem justificado (pois era indivíduo de enorme inteligência quem o fez) e cuja raiz se alimentava do truísmo que, não obstante de presença insidiosa em todos os instantes da vida, só à razão maturada caberá defini-lo assim: há sentido, sim, pois correm as coisas umas com as outras, umas após as outras, em diversos encadeamentos, sendo impensável negá-lo; mas não há finalidade, justo em virtude desse mesmo encadear-se de coisas, ou seria preciso estabelecer aí um ponto terminal (algo que, diga-se en passant, é preciso tanto coragem quanto desespero bastantes para fazer!). Em suma, nesta, cruamente demorada, tanto quanto nas demais depressões, passageiras ou não, a que assisti, reduziam-se os sintomas à simples formulação do efêmero. Em aparência noção excessivamente geral para dar conta da diversidade de melancolias, é suficiente considerar-se o que lhes serve de estopim, os aliciantes motivos no cerne dos quais esconde-se ao menos um 'não': 'não é possível', 'é inviável', 'não consigo', 'não deu'...

A depressão ataca fundo a segunda das virtudes teologais, a esperança, a qual não passa do modo de a primeira, a fé, manifestar-se. Em meu entender, fé é instinto sem o qual a idéia de vida não se consuma: estar vivo é o mesmo que ter fé, que é o dar o passo sem a certeza de sê-lo possível ou o continuar por continuar, por ser assim que se foi feito, para a continuidade. Já a esperança é a presunção de que o passo a ser dado possa ter finalidade outra que não o dar o passo mesmo: a esperança é como a cenoura pendurada à frente do burro por quem o monta. Pois bem, e o deprimido é aquela montaria que entende ser impossível morder a isca, aliás, já nem a considera como tal, mas como a fonte de seu tormento: e então empaca. Justo aqui melancólico e eufórico se separam, digo, é precisamente no modo de agir diante da cenoura que o eufórico pode desfrutar da graça efêmera da folia: basta acreditar - ou mesmo fingi-lo de si para si - que, sim, é possível alcançá-la, pois, ora, é de fato mais agradável essa crença do que a contrária. E, como que por milagre, assim pensando o nosso burrico é capaz de fazer-se em alazão, embora com tal arroubo arrisque surpreender seu montador, derrubando-o e à cenoura, a qual poderá, finalmente, ser degustada, mas ao custo da decisão previsível do dono de não usar tão cedo da artimanha, pelo que ao burrinho folião as cenouras parecerão mais apetitosas quando eternamente diante dos olhos do que eventualmente dentro do estômago.

O deprimido obstinado tem uma de duas sentenças: aguardar que nada em si ouse o passo seguinte, o último dos quais será dado pelo coração, ou estabelecer uma data para sair de cena (conheci alguém que elaborou o enredo exato para convencer a enfermeira a levá-la ao terraço do prédio, donde se lançou). A última alternativa, é bem verdade, um deprimido convicto das razões de o ser a rechaça com a alegação de que nela encontrou-se ao menos uma esperança e se a fisgou como fez o burro com a cenoura, com a vantagem de essa estar envenenada, poupando-o da futura decepção pela ausência provável de mais iscas. Mas o deprimido convicto também não escapa às próprias críticas, pois no fundo espera que, morta a esperança, morra-lhe de imediato a fé (sim, não é a esperança, mas a fé a última a morrer, visto que o sistema basal parece insistir em seu trabalho meramente orgânico quando à consciência faltam objetos que esperar). Ao soi disant deprimido autêntico (como o da charge do Sempé), no entanto, não se pode imputar a infidelidade aos princípios, reconhecidamente universais, de sua depressão.

Tal acusação se aplica do mesmo modo aos que escolhem a euforia: são rigorosamente fiéis aos motivos que os agitam, motivos esses, reitere-se, idênticos àqueles do melancólico e tão prosaicos como uma cenoura. Está livre de erro, portanto, a ciência médica ao vê-los como faces de uma mesma moeda compulsivamente lançada ao ar. E sustentarem-se como tais, eufóricos e deprimidos, é questão da resistência orgânica de cada qual, devendo o estado de um ser substituído pelo estado oposto enquanto o corpo o permitir. Há, não obstante, um modo de evadirem-se desse jogo, existindo quem o faça como que por natureza, embora o comum seja topar com quem o conseguiu em longo e continuado esforço. Trata-se de estado intermédio, não estático, tampouco eqüidistante de tristeza e folia por isso mesmo: quem nele se encontra não se torna imune a uma ou à outra, sendo capaz de experimentá-las alternadamente como qualquer indivíduo, mas com o privilégio de não se ver enredado por nenhuma. Chamam-no de indiferença, frieza e insensibilidade, havendo também quem escolha formas menos parciais de nomeá-las, como beatitude, ataraxia, nirvana e satori, e quem aprecie as designações oriundas da clínica psicoterápica, dizendo que se está em alta, que se tem o passe, ou da clínica psiquiátrica, onde o alcunham de dopagem. À exceção dos pacientes psiquiátricos, aos quais em sã consciência não se pode atribuir a experiência de alguma emoção, aqueles cujas imunidades à bipolaridade foram conseguidas por esforço próprio experimentam uma dificuldade singular: a de conservarem-se como estão, pois permanecem à mercê das forças que tangem para lá e para cá deprimidos e eufóricos, sendo por elas testados sem pausa, a ponto de terem de habituar-se a viver em dúvida quanto a terem ou não conseguido o que pretendiam, considerada melhor do que a certeza, que lhes acarretaria presunção ou frustração e os conduziria de volta à roda de excitação e infortúnio.

As fórmulas para aí se chegar são variadas, havendo particular predileção pelo divã psicoterápico e pelas práticas originadas em culturas asiáticas, entre as quais a meditação, sem falar nas farmacopaicas, legais ou não. O espírito cristão, por outro lado, desperdiça hoje, resultado da ignorância apondo toda sorte de estapafurdice à singeleza da doutrina original, as propriedades balsâmicas da caridade, terceira das virtudes teologais, indo buscar na compaixão budista sucedâneo eventual, com a desvantagem de esta não se encontrar tão imiscuída nos códigos de sua cultura quanto a outra. Pondo outra vez de lado as conotações de teor místico ou religioso, parece-me evidente que, assim como a esperança é a fé provida de objeto, a caridade vem a designar o objeto mesmo a nutrir (a dar corpo a) a esperança. Entendido como apenas outro nome para esmola, o termo caridade tem servido a cada dia menos como auxílio para se atingir a beatitude, o estado para além de bem e mal. Observando-se, entretanto, alguns dos seus significados anteriores, encontra-se ali a idéia de 'caro', designando tanto preço alto quanto afeto, sendo a dádiva, em particular a monetária, um modo relativamente eficiente de o indivíduo demonstrar, na esfera social, o presumido cultivo desses dois valores.

Nisso, acredito, reside o maior entrave do sujeito à solução de sua durável condição bipolar, visto parecer o mesmo para o seu semelhante que ele de fato a tenha superado ou que apenas o aparente. O recurso às drogas legais recende um pouco a essa idiossincrasia social, restaurando a tranqüilidade do meio - o grupo - e do indivíduo enfermo, embora sem qualquer controle deste sobre seu novo estado e a um preço ainda desconhecido em termos orgânicos. (Essa observação ajuda a entender o porque de a religião ter sido refinada como sorte de opiáceo popular.) A considerar a tendência orientando toda iniciativa em nosso já bem sedimentado hedonismo tecnológico, por meio do qual o homem não mais necessitará demover de moto próprio qualquer obstáculo de seu caminho, é provável que em breve tenhamos de receber a primeira geração de seres geneticamente planejados sem propensão alguma à melancolia. E parece natural que os queira também imortais, como se demonstrasse a ciência, por intermédio de seus admiráveis artefatos, a ingênua crença de o nirvana - o paraíso - ser mesmo aqui, bastando apenas povoá-lo de quem o tolere indefinidamente.

Rio, 17de setembro de 2006

Waldemar Reis

domingo, agosto 20, 2006

O que dizer de Bertold?

Personagens para quase-atores: o corpo é a parte visível do fantoche, em cujo interior a mão do texto atua. Por vezes o boneco se insurge contra o que o anima, por outras ri-se de sua vida fajuta, canta e suspende com sarcasmo o próprio roupão em cumplicidade com a platéia.

Cenas para quase-público: ninguém se convence mesmo de o boneco ser alguém. Tampouco se quer senão resvalar no real, fazer pouco dele, atitude única cabível à massa de impotentes.

Verdades para quase-crenças: dali, distando umas poucas portas do restante do mundo, quem acreditaria nessas falas que não dizem muito, quem ousaria dar fé de sua frágil mensagem se, passada a farsa, retornarão todos para suas casas, passando por calçadas, miseráveis, meliantes, rufiões, sacerdotes, ou no interior de ônibus e táxis observando automaticamente manchetes sangrentas, coexistindo em inevitável harmonia?

Rio, 20/08/2006

Waldemar Reis

quinta-feira, agosto 10, 2006

Quase tudo

O que dizer? Todo o passível de dizer-se é por demais óbvio e repeti-lo, se não inútil, é decerto aviltante. Aviltante para quem diz, aviltante para quem lê. Para quem lê, por razões evidentes: é colocar-lhe diante espelho de reflexo cristalino o bastante para ali enxergar a própria deformidade, circunstância insustentável. Para quem diz, porque diz, porque dizê-lo é prova suficiente de tolerar em boa medida a imagem grotesca impingida ao outro no espelho - do contrário lhe daria as costas - enquanto desfruta do verso do mesmo, no qual nada se reflete; e é prova direta de ser essa tolerância assentimento ao quanto produz semelhante aberração, o embate interno de dever e desejo. E é tamanho o aviltamento, tão universal, que o da face vítrea acredita olhar tão-só através de janela donde vê não a si, mas quem lhe apresenta e segura o objeto revelador, enquanto o outro sequer suspeita de, caso se atrevesse a olhar o lado refletor, ali dar com visão horrenda que jamais admitiria como sua. Dizer, enfim, por pouco que seja, é dar seqüência à comédia cuja renitência só faz irritar. Melhor seria calar, ou melhor, nada escrever, apresentar aqui o já clássico manifesto da arte moderna da protestação, um espaço em branco, ícone do vazio tanto quanto índice do todo: tudo dizer dizendo nada.

Pois não conhecemos o certo? Não nascemos - como o afirmava e demonstrava um sábio antigo - dotados do sentido para ele? Aliás, não nascemos com os sentidos para o localizarmos perenemente, para o perseguirmos até o obtermos? E é tanto verdade que dele falamos o tempo inteiro, em geral na forma de cobrança a outrem que, por seu lado, não sabe fazer diferente conosco. Em nome disso, correção, chega-se, já entrevistas desde o dedo em riste e desde mesmo uma ponderosa argumentação, quase sempre às vias de fato quando se possui os instrumentos necessários para chegar-se de fato às vias, sempre. Não faço aqui má antropologia, chula interpretação da ciência arqueológica, mas mera observação das ocorrências corriqueiras cujos relatos reiteram à agonia a condição universal de enredamento dos indivíduos: estamos montados, amontoados, uns sobre os outros numa espécie de pirâmide impossível, reciprocamente abaixo de quem está embaixo, acima de quem está por cima, de tal modo, num tão inefável equilíbrio que, é bem verdade, a ausência de muitos nem sequer se faz notar. Entretanto, não é preciso estar fora da teia ou mesmo em vias de ser dela extirpado para se experimentar em imaginação o sentido disso. E ainda assim brincamos do jogo perene do desterro alheio mesmo em vista do risco de em algum momento sermos nós os desterrados.

Não, não acreditamos em promessas que jamais nos fez a senda civilizatória: elas eram mesmo consenso, estiveram sempre embutidas na misteriosa força tornando-nos grei. São parte de sua lógica, são evidentes. Por isso tão grande o protesto, tão silencioso deve ser. Sendo preciso continuar e, continuando sem mesmo saber por que é preciso, sendo imperativo gozarmos de alguma coerência, justificamos: é a natureza. Embalde nos esforçamos por nos mantermos de parte dela, em nicho seguro donde, atingido o átimo da compreensão, no instante do completo entendimento, proclamar-nos-íamos redimidos desse prolongado pecar: mas dalgum injustificável modo ela se imiscui no trabalho incerto de nossos teares e, apropriando-se da urdiduta para sempre incompleta, no limiar de completar-se, ali aplica sua leis. A natureza tem leis irrevogáveis, misteriosamente promulgadas, executadas com rigor. São observadas em quaisquer partes do seu reino e desafiam os propósitos mais obstinados de sequer revisá-las. Em compensação, conferem impunibilidade a quem as observa e tranqüilidade às respectivas consciências : a despeito de todo ideal, somos - da primeira à última instância - cidadãos do mundo, garanta-se nele quem souber ou puder. Pecadores? Sim, mas sem culpas! E sem vontade também!

Como dizia, não faço pífia antropologia nem pior arqueologia: não começamos essa milenar história com anseios por justiça, pois sequer a conhecíamos, mas por mera fraqueza, por temermos a inconstância dos céus e a fome das feras, a fúria do mar e a sanha da terra. E então, enredados uns aos outros, em presumida segurança, sonharíamos a equanimidade, a óbvia e translúcida equanimidade emanando da própria teia, de que somos o fio, onde nos guardamos do inevitável para apenas o assistirmos - impotentes, fracos como só nós - exercer a sua lei. A natureza de que pensamos fugir sabe assomar do interior da horda humana, nela reinstaurando a noite, a selva, o vendaval e o maremoto, fazendo dum indivíduo o raio e de outro sua vítima, dum terceiro as fauces e do quarto a carniça, no conhecido espetáculo em que o consolo é não termos culpa.

Como sugeri, deveria ter dito nada, mas disse: pouco. E pouco, entre nós, é quase tudo.

Rio, 10 de agosto de 2006

Waldemar M. Reis

segunda-feira, junho 05, 2006

Volta a um mote

"Respondendo a seu mail, eu agi. Se "escolhesse" nada mais responder, estaria igualmente agindo? Olhe que essa linha de pensamento leva longe. Pelo menos até o deserto, com uma pedra para sentar em cima, à maneira do famoso ermitão." (Humberto Marini)


O deserto é para onde se dirigem, com certeza, os verdadeiros seres pensantes. E de lá jamais sairão, não por culpa da vastidão, de fato incomensurável, mas por vontade própria ou por instinto de sobrevivência, pois se trata do seu habitat.

Sua esperança - ou seu desejo - é o de chegar ao menos a um oásis, ainda que aí só encontrem poça d'água, nenhuma vegetação, visto ser incerta a presença de sequer nichos assim parcos nesses exílios do espirito. Pois tais eremitas sabem que, existindo algum, há boa chance de haver outros, às vezes luxuriantes, entenda-se, dessa luxúria que só o contraste com a aridez faz ver.

Mas dão-se por satisfeitos se concebem uma miragem, aliás, sua maior cobiça, já que miragens, ao contrário dos oásis, nunca ficam para trás quando é imperativo seguir caminho e jamais se apresentam mirradas: estarão sempre a certa distância dos olhos e figuram o paraíso almejado onde seu vagar teria fim.

Sorte terá algum se der com algo como uma pedra para sentar-se, o que, com certeza, só fará por instantes, uma vez que estará muito quente ao longo do dia e muito fria à noite. Seu propósito, entretanto, é tão arraigado que mesmo desdenha da possibilidade de descanso, inclusive nas horas intermediárias do crepúsculo e do amanhecer, quando é amena a temperatura e pode parar brevemente.

Sendo doutos, estão advertidos das incertezas dos céus e inteiramente aptos a caminhar por linhas retas à mercê duma estrela, o que muitos fazem, embora preferindo andar em círculos: primeiro, em vista da perfeição da forma, sentimento inexplicável que os compraz; depois, por fiarem-se no mapa em que se demonstram a imobilidade, a finitude e a redondez do mundo inteiro, pelo que conhecem a impossibilidade, caso existisse o movimento, de chegar-se a outro ponto senão aquele onde já se encontram (e nada obstante seguem caminhando, decerto por ato reflexo, pois não crêem mesmo que de fato o fazem); enfim, movem-se em círculos por conhecerem que toda reta possuindo mais de dois pontos é fragmento de arco cujo raio é imensurável, preferindo alguns trilhar curvas finitas a entregarem-se à aventura de jamais reverem o lugar donde partiram.

E, não sendo poucos tais caminhantes, admira que jamais se cruzem os seus caminhos - há quem suponha existirem tantos desertos quantos há de seus ermitães, desertos paralelos que, como se acredita, se tocam no infinito. No entanto, é comum conversarem, mas nada se vê à sua frente. E em tais monólogos, em verdade diálogos partidos ao meio, prevalece de hábito a discórdia.

Rio, 05/06/2006

Waldemar Mendonça Reis

sábado, abril 08, 2006

A prece e o mal

Vi a matéria, primeiro, no 'Monde', mas percebi que a notícia saíra também em outros jornais estrangeiros como o N. Y. Times e em ao menos um brasileiro. Para entender semelhante repercussão é preciso considerar dois fatores: a ausência de novidade mais significativa no último número do The Aamerican Heart Journal - referência americana no assunto (e fonte privilegiada de reportagens que consolam e aturdem a massa de hipocondríacos em que nos transformamos a cada dia) - e a oportunidade de protesto contra os cerca de dois milhões e meio de dólares gastos numa pesquisa de premissas de duvidosa relevância no cenário contemporâneo da medicina.

Só desse modo entendo a razão de os noticiosos tratarem com certo destaque uma investigação científica cuja conclusão sugere ser nociva a prece: assim seduz o título da matéria. Indo mais adiante, percebe-se que a reza má seria não toda nem qualquer uma, mas aquela enfocada no experimento, a endereçada aos doentes, especialmente àqueles em processo ou em esperança de cura e que sabem da antemão estar alguém pedindo aos santos por si. Até aqui, nada mais espantoso e nada mais natural: espanta, em primeiro lugar, que se tenham submetido seres humanos reais a tal investigação; depois, parece verossímil a ocorrência de piora e até de morte quando um enfermo se dá conta de o seu estado ser grave o bastante para reclamar o uso de instrumento vulgarmente conhecido pelo seu emprego em momentos de desespero. Não esqueço um agravante dando toque negro ao inequívoco espírito mordaz da investigação: todos os voluntários eram cardíacos na iminência de intervenção cirúrgica.

Trata-se, como é visível, de uma experiência pertencente mais ao domínio da psicologia do que ao da medicina propriamente dita, muito embora seja notória a intrînseca dependência das duas ciências. Dos três grupos de voluntários envolvidos obteve os piores resultados somente aquele cujos pacientes souberam que seriam de fato objetos de prece, equivalendo-se os resultados dos outros dois. Destes, apenas um não recebeu efetivamente os duvidosos préstimos da oração, embora todos os pacientes de ambos soubessem da possibilidade de serem rezados. À guisa de conclusão parcial pode-se dizer que a incerteza de ser alvo de prece é melhor do que a certeza, ou ao menos é tão boa quanto não o ser (pois não se orou pelos doentes de um dos grupos).

Custo, escopo, cobaias: fosse isto insuficiente, o jornal francês conclui informando que o patrocínio veio de uma fundação religiosa, a John-Templeton! Verdadeiro tiro no próprio pé? Ou a John-Templeton, suspeitando da eficácia desse serviço tão antigo quanto a civilização, o da oração pelos enfermos, estaria financiando sua extinção? Antes tarde do que nunca: as preces foram ditas por comunidades cristâs. E, para finalizar, um atenuante: as mortes foram percentualmente iguais em todos os grupos.

Assim, em vista do modo como se procedeu à pesquisa, se não é possível afirmar a absoluta nocividade da prece, pois ela não se provou mortal, reafirma-se a observação, desde sempre parte do senso comum, de que a sua necessidade indica o esgotamanto dos meios ditos meramente humanos na solução de um problema e, conseqüentemente, situação desesperadora, informação esta danosa para quem é questão a saúde, em especial a cardíaca.

Mas não foi este o único golpe sofrido hoje pela religião: um outro diz mais diretamente respeito à fé cristã. Refiro o anúncio, em virtualmente todos os jornais do planeta, do completo restauro e tradução do Evangelho de Judas, texto do primeiro cristianismo, de que já se tinha notícia pela menção no Contra os Hereges de Irineu de Lyon. Um Jesus sarcástico emerge dos diálogos no Evangelho, pronto a gargalhar em face das dúvidas e questões dos apóstolos, capaz de estimular-lhes a raiva e eleger Judas como o obreiro maior de sua própria paixão, desse modo oferecendo-lhe o conhecimento do "mistério da traição" (segundo expressão do próprio Irineu).

Se histórica ou não, a circunstância é certamente decorrência natural da consabida presciência do Cristo no que respeita a própria sina: seria 'traído', imolado e ressucitaria, para tanto havendo necessidade de 'traidor' e imolador, sem os quais os mistérios da crucifixão, da morte e da ressurreição nos seriam ignorados. O sacrifício no Calvário e a subseqüente redenção da humanidade seriam impossíveis sem um 'lado podre' a cumprir o seu papel, tornando-se este, por isso mesmo, agente do bem, ou melhor, do bem maior. E alguma voz, ao menos por uma questão de coerência, haveria de levantar-se sobre o problema ainda cedo na formação da cristandade, o caso do Evangelho de Judas. Ecos seus se escutam no século XX, na obra de Borges, que usou do tema e de variações em alguns contos e ensaios.

O leitor atilado decerto já percebeu que a predestinação de Judas para a maldade, assim coadjuvando um bem tido e havido como supremo, é variante de outro problema, clássco desde o judaísmo, o da onisciência divina em face do mal. A sua solução mais difundida alega o livre arbítrio, supostamente dado a nós por Deus, pelo qual estaríamos habilitados a seguir tanto a virtude quanto o vício. Mas, como é sabido, a própria noção de onisciência acarreta a anulação dessa outra, a do livre arbítrio, agravando-se desse modo a questão: se nos indigna saber que Ele conhece com antecedência o advento do que nos aflige, o mal, e não o evita, sendo Todo-poderoso, o que dizer de Sua passividade em face do conhecimento prévio de nossas más escolhas?

Enquanto a idéia de Deus não se reconciliar com a de mal, suponho, a pergunta acima permanecerá sem resposta. No entanto, o próprio Demiurgo apõe às Escrituras de Seus profetas breves pistas de Sua natureza inconcebível, uma das quais encontrei coligida pela Loucura no elogio que lhe dedicou Erasmo de Roterdam: decreta Ele, em Isaías, que confundirá a sabedoria dos sábios e reprovará a prudência dos prudentes, donde se conclui que jamais Se fará conhecer e que o Seu eleito é o imprudente, o parvo. Da cita a erasmiana Moria retira, segundo sua natureza, naturalmente, as mais encantadoras lições. Os episódios da tentação de Adão e da torre de Babel sugerem o mesmo: em ambos fica a lição de o conhecimento da Verdade ser-nos impossível, todo esforço nessa direção passível de castigos como a expulsão do Paraíso ou a incompreensão recíproca dos homens e a diáspora. Não foi casualmente que um cristianismo mais rasteiro fez do néscio o fiel típico, exemplo de uma almejada fé espontânea, aparecida sem o concurso do intelecto. Hordas de santos e doutores da igreja concordaram em que somos e seremos sempre ineptos diante da possibilidade de conceber o Criador, caso de Douta Ignorância de Nicolau de Cusa. O Evangelho de Judas não deixa de iterar a fórmula, num diálogo em que Jesus diz aos discípulos: "Como me conheceis? Em verdade, eu digo, geração alguma do povo em meio a vós conhecer-me-á."

É possível traçar um perfil teológico da humanidade usando o problema como eixo: em torno a ele dividimo-nos entre aqueles que crêem a despeito das adversidades da fé - grupo compreendendo os que tomam a si próprios por ignorantes de Deus - e aqueles revoltosos, na verdade mais pios do que os primeiros, pois preservam tão ciosamente a idéia de Deus associado irreversivelmente ao bem que mais justo lhes parece renunciar a essa idéia mesma a ter de admitir Deus como fonte ou veículo do mal. Sob esse prisma o ateísmo seria a mais radical manifestação do teísmo.

A dimensão paradoxal da fé cristã mereceu tantas análises quanto é possível à questão. O teólogo e filósofo Kierkegaard ensaia a sua na forma de extensa meditação sobre a passagem em que Abraão é intimado a sacrificar Isaac: ali defende a condição privilegiada do Pai da Fé relativamente à dimensão ética (ou moral), à qual fere com o seu silêncio ao longo do preparo para a imolação e do percurso até o local onde ela se daria, ou seja, o fato de Abraão ter como lastro uma solicitação divina o isentaria das obrigações éticas e morais, como o prestar contas de seus atos ao menos aos membros mais próximos da comunidade, familiares e amigos, e mesmo das obrigações estéticas, como o desafogo de sua angústia; pois a instrução divina o poria em 'relação absoluta com o absoluto', acima, portanto, do quanto diz respeito ao mundo inteligível, ou o 'geral', segundo a terminologia do filósofo. Já Nicolau de Cusa leva o debate para o âmbito da epistemologia, justificando nossa ignorância da natureza divina na evidente incomensurabilidade do nosso pensamento, finito, e da infinitude de Deus. No século XVII Jacob Boehme pintará uma cosmologia panteísta na qual um vórtice centrífugo - ali chamado, entre outros nomes, de Vontade - aparta-se de outro, centrípeto, ou Desejo, também alcunhando o primeiro de Manifestação ou Deus e o segundo de 'sem-fundo' e Inferno, mas eventualmente denominando o conjunto inteiro como Deus, donde se infere que, para o filósofo, Este não só proviria do mal como também o incluiria em sua natureza: na cosmogonia bohemiana Deus escaparia de si próprio, enquanto Desejo, fazendo-se Vontade e originando assim o mundo, modelo este de universo, segundo pondero, um dos melhor concebidos.

Em dias atuais o aparecimento de notícias como essas é sugestivo: de um lado, um experimento estatístico, como de hábito o são os da ciência, demonstra de forma algo complicada o óbvio (é desagradável saber-se desenganado a ponto de necessitar da oração, que se mostra, entretanto, inteiramente inútil de acordo os dados da pesquisa); doutro, um Evangelho gnóstico lembra-nos de noção não menos conhecida de nossa intuição, exortando-nos a reconsiderar o mal num enredo que acreditamos protagonizado pelo bem e a nossa inamovível ignorância quanto à Verdade de Deus, pouco importa o quão sábios sejamos!

Desnecessário é listar o quanto em nosso tempo se põe como campo onde fertilizar a certeza gnóstica de não vivermos num mundo bom: para conhecê-lo é suficiente continuar folheando as seções de política e economia dos jornais ou freqüentar cultos religiosos. A visão da atualidade é porventura o melhor retrato já produzido do mundo abastardado dos gnósticos, onde efetivamente vivemos, mundo originado em erro cuja causa é o desejo de saber, Sophia, resultando em seu húbris desenfreado e, não obstante, permanentemente contrário às aspirações do homem. Mas como o saber não produz senão a si próprio, sendo apenas potencial para a produção dos demais artefatos, é um artesão, o Demiurgo, quem cria a materialidade, essa espécie de imitação de Pleroma, nome do universo do Deus primordial. Isto feito, proclama-se o Demiurgo, nesse seu novo e falso reino, o único Deus existente. Cristo, ou a salvação, segundo o evangelhista, adviria não deste, mas daquele universo primordial para auxiliar-nos, por compaixão, em nossa emigração para o lugar de origem, o lugar do sumo bem.

Intentando instaurar o cristianismo como religião autônoma, muitos dos primeiros teólogos da nova seita buscaram distanciá-lo do judaísmo e mesmo opô-lo a este. Para tanto descartaram de saída o Antigo Testamento, partindo dos Evangelhos canônicos, desvenvolvendo, inclusive, traços do que a partir do século XIX se chamaria anti-semitismo: o Deus desse Éon - ou nosso universo - é o Deus de Israel (assim pregava Basilides, filósofo e teólogo do segundo século da era cristã), divindade esta favorável, portanto, a tudo quanto diz respeito a esse povo e à sua terra e causadora de toda sorte de entraves a todos os envolvidos com as questões judaicas, muito embora não poupando eventualmente nem os próprios judeus. As exegeses de vários desses primeiros cristãos, muitas vezes conduzindo a hipéboles intoleráveis ao espírito religioso da época, foram acusadas de heresia e convenientemente banidas dos ensinamentos usuais, embora hajam contribuído significativamente com estes, ao menos no apontar-lhes certas inconsistências.

Enfim, o gnosticismo parece ter sido espécie de guardião da coerência para o cristianismo nascente, prevenindo sua imobilização, comum a toda nova crença, num pietismo leigo, promovendo o seu elo com as principais correntes de pensamento vigentes à época, como platonismo e estoicismo. Procurou mostrar aos novos crentes a inexistência de garantias da intrínseca bondade do mundo nos escritos judaicos e, extirpando o Messias dessa tradição, dava-lhes a noção e a esperança do bem verdadeiro, assim como o entendia o mundo helênico.

O cristão futuro, entretanto, escolheria a via da omissão ou da hipocrisia. E se hoje dizemos habitar um mundo erigido segundo preceitos de linhagem judaico-cristã, tal afirmação desvela-nos uma realidade onde o mal, tão ciosamente escondido ou providencialmente desdenhado ao longo de milênios, mostra-se agora explícito e apadrinhado por justificativas morais, éticas e mesmo lógicas que a filosofia ainda não soube conciliar. Pessoalmente, não creio que, desse ponto de vista, algum dia haja sido muito diferente a realidade: o mal sempre se exerceu sobre o quinhão que lhe cabe.

Há, entretanto, uma particularidade deste nosso momento, em pleno 2006: já não concebemos salvação! Não, ao menos, aquela arquitetada no gnosticismo. Não somos mais engenhosos e ingênuos o bastante para tecer a solução do insolúvel: o habitarmos um mundo diverso do que desejamos, consolando-nos com a idéia de outro melhor anunciado pelo seu messias. Pois a salvação do gnóstico está dentro de si, na certeza de existir o lugar ideal, compatível com os seus anseios, a qual é, como a Idéia platônica, espécie de marca de proveniência ou de origem atestando o seu pertencimento primeiro a esse lugar, Pleroma, onde está o verdadeiro Deus, em verdade espaço emanado de Si. Do nosso lado, não conseguimos reconhecer em nós qualquer idealidade por que nutrir esperanças, pois talvez já nutramos incomensurável paixão por este mundo que criamos, mundo de certos confortos, mas também de finanças, de política, religiões (ainda!) e o que tudo isto implica, assim não vislumbrando alternativa melhor ao que já nos é oferecido e prometido: nosso paraíso é o aqui e o agora, o qual, por discrepar do que verdadeiramente desejamos, é também nosso inferno.

Conjugados na imprensa às catástrofes e aos crimes, os dois achados da ciência assumem nota sombria. Rezar é tanto inútil quanto daninho, enquanto o mundo permanece o mesmo, aqui, diante de nós, adverso, intolerante, inclemente, sem esperanças em si. Quanto à marca distintiva fazendo de nós - e de boa parte dos seres vivos! - entes direcionados para o autèntico bem (bem ausente, não obstante, de onde habitamos), dela é possível afirmar-se, com incerta ironia, que, se de fato a possuímos todos, seria isto a melhor prova de que não faltam ao Inferno, de fato, as boas intenções.

Rio, 06/04/06

Waldemar M. Reis

sábado, fevereiro 04, 2006

Borges nas sombras

É estranho o jogo de 'Borges à contraluz'. De saída, o confronto de uma algo singela e por vezes discretamente insinuante Estela Canto com outra, muitíssimo mais velha e remendada com tinta, laquê, muito pano, colares, anéis e brincos. Tanto uma quanto a outra fazem as vezes da bem-amada: a primeira, em fotos de 1945, parece ainda pesquisar essa frente do recente feminismo, embora já teorizando sobre a variante que escolheu para si, a de mulher livre e sexualmente satisfeita; enquanto a segunda presta contas, ao cabo de décadas, dessa escolha admitindo secretamente que o amor poderia ter-lhe sido bem mais generoso.

Não é difícil ver no livro uma mulher 'mordida', decerto por erro próprio, ao avaliar o potencial de 'glória' oferecendo-se aos seus pés e 'garfado' trinta anos depois por Maria Kodama. Algumas fofocas: disse Esther Vásquez - a outra biógrafa do Borges, também sua amiga, colaboradora e ex-musa - que 'la' Canto foi vista 'bebida' e rogando impropérios de amor traído na porta Biblioteca Nacional argentina ao então diretor do estabelecimento; para Vásquez 'la' Canto quis muito os cachês do poeta, como a primeira esposa, Elsa, que além do mais os roubou todos (o Prêmio Formentor, que dividiu com o Becket, junto!); tanto Vásquez quanto Woodall (James, autor inglês de uma terceira versão do biografado) insistem no mau gosto do trabalho da Canto, a qual, como que por instinto de defesa, deixa claro desde a Introdução não haver composto uma biografia no sentido restrito, mas um relato do que viveu com o poeta e do qual não poderia excluir incursões mais íntimas - dada a natureza múltipla da relação - e, naturalmente, suas observações e análises quase psicoanalitico-feministas. Como se vê, a luz prometida desde o título é 'contra', disso resultando imagem destoante daquelas tidas como boas, seja pela nitidez, seja pela poesia. Além de mistério, é possível entrever sensualidade na sugestão da Canto, o que, nada obstante, é paulatinamente rechaçado.

Entretanto, é bom encontrar ali um Borges mais humano do que o dos outros dois trabalhos. Ainda não conheço o do uruguaio Monegal, a quarta biografia do argentino, também seu amigo e especialista em sua obra, mas creio que o enfoque seja, no bom sentido, acadêmico (tenho uma antologia borgesiana do Monegal, que me pareceu correta). Em Woodall e Vásquez há uma certa idealização, no primeiro, em vista da distância, no tempo e no espaço; já na segunda há alguma humanidade, aquela do ângulo da amiga dedicada, colaboradora e ex-desejada do grande mestre, além de ser muito, muito mais nova do que ele. O Borges de Canto mostra-se ainda mais frágil que o dos demais: foi de fato criado para ser literato, projeto que a mãe continuou tocando após a morte do pai, e quando saía à noite ligava para casa de hora em hora para manter D. Leonor a par de onde e com quem estava; beijava mal e não sabia tocar; sua mão parecia não ter ossos quando cumprimentava; era pálido e gorducho, mas alto; apaixonava-se ridiculamente, como um cavaleiro medieval na imaginação do século XIX.

Em suma, Estela 'fala demais': a partir de sua mágoa pinta sua versão verossímil de um sábio, um pouco como Xenofonte e mesmo Aristófanes nos apresentam um Sócrates certamente mais prosaico que o dos diálogos. Não passa, no fundo, de uma grande fofoqueira recebendo-nos, toda emperiquitada, 'para un té en su casa'. Promete algumas vezes falar de 'O Aleph', que o poeta lhe dedicou, e nem possui mais o manuscrito (presente valiosíssimo que o então diretor cego da Biblioteca Nacional argentina também lhe ofereceu), negociado com um colecionador. Mas só comenta o relato lé pelo fim do livro, além de outros três ou quatro tidos por ela como emblemáticos da mente borgesiana. O tom dos comentários é fortemente sabido às artimanhas freudescas e, se não faz suficiente psicanálise, menos ainda faz de teoria literária.

Os mexericos 'cantianos' - ou seria melhor dizer 'cantescos'? - perdem, aqui e eli, como é habitual no calor desse tipo de narrativa, a compostura presumida em sua autora, premiada romancista para quem o romance é planura, carecendo, por natureza, de clímax, o qual seria próprio do relato curto. É bem possível que, ao urdir sua 'teoria' do romance, 'la' Canto jamais tenha escutado nomes como Machado de Assis, Pirandello e Balzac, talvez se degredando voluntariamente nas infinitas planícies dum Proust ou nos planaltos escarpados de Mann... Seu Borges é, por conseguinte, contumaz depreciador e leitor improvável de romances, mesmo dos tantos aludidos em seus contos, ensaios e poesia. Seria, portanto, culpado de uma das mais prosaicas imposturas intelectuais, aquela de dizer-se leitor do que apenas conhecia 'de orelhas'.

Mais para o fim do trabalho a autora reabilita a imagem do biografado, ou melhor, a torna mais condizente com aquela, exaustivamente divulgada, de sua vetustez, imagem idealizada concebida não só nos esforços dos editores como também na faina do argentino em suas palestras e derradeiros trabalhos. O quanto o consagrou foi, no entanto, concebido antes, em sua maturidade ambígua, parecendo restar-lhe, nesses derradeiros decênios de vida, tão-só passear as jóias que lapidou no passado, exibindo os mais variados ângulos do seu brilho. De fato, não é incomum que na obra tardia nostalgicamente se debruce um autor sobre sua produção primeira, tampouco são raros os que se vêem inexoravelmente atados a uma única fórmula até morrerem. Poucos, entretanto, o fazem como o portenho e não é à toa que trabalhos como 'O Aleph' sejam considerados como chaves para a compreensão de toda sua produção: o objeto 'mágico' ali descrito enseja a visão de tudo no mundo tal qual cada conto, ensaio ou poema seus são, em última análise, perspectivas diferentes dum mesmo cerne, o qual é ele mesmo, Borges, em seu perene assombro em face duma existência que o tornou quase imaterial, coibindo-o à renúncia de parte significativa de sua condição corpórea.

'Borges à contraluz', enfim, pode ser tido como o sítio onde soem combinar-se as diversas mesquinharias, como a dessa velha dama cuja cama recusou antes de casar-se aquele que admirava (embora não o desejando sexualmente), e como a nossa, mesquinharia de admiradores sabendo a escrevinhadores que se consolam da mortal condição nas desventuras comezinhas de quem, um dia, logrou urdir a própria imortalidade. O 'té' de 'la' Canto é a ocasião 'par excellence' do confronto de mediocridades variadas que, a despeito de consabidas e toleradas, refestelam-se em longas risadas a bochechas intumescidas e dentes postiços empastelados de bolacha molhada. E é desejando compensar-nos de suas alusões incontidas que a escritora nos oferece provas tidas e havidas como cabais, abrindo-nos, lá para o meio do livro, o seu correio íntimo, donde nos saltam Borges inesperados, em fotos e em caligrafia, ingênuos e ordinários em grande parte, dos restantes sobressaindo este, mais condizente com aquele das obras completas e, não obstante, trescalando Pierre Menard como se, esquecido de si mesmo, 'Georgie' se inventasse para esse amor da meia idade: "No sé qué lo ocurre a Buenos Aires. No hace otra cosa que aludirte, infinitamente".

Rio 31/01/06

Waldemar Reis

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