quarta-feira, julho 26, 2017

O lugar de justiça e liberdade na saga dos inclementes

Uma das belezas de Game of Thrones, perdida junto às demais por quem se recusa a acompanhar a série acreditando tratar-se de exercício primário do teatro da violência, é a percepção de sua espessura para além da violência mesma, sobre a qual e exclusivamente, aliás, tal espessura é possível - ou se justifica - construir-se. Trata-se da saga em que parece procurar seu lugar na humanidade a Justiça, de início aparecendo acomodada num feudo no Norte gélido, regido pelo clã dos Stark, sendo em pouco desalojada dali à medida em que são sistematicamete dizimados quase todos os membros dessa família. Daí em diante é como se tentasse ela, Justiça, retornar ao espírito humano por quaisquer passagens que julgue disponíveis e consequentes, transmutando-se ora em estratagemas de usurpação, ora em efêmera moral religiosa e, com maior frequência, em vingança sumária, sem que, naturalmente, tenha sucesso. Aqui e ali, entretanto, é possível ver-se lampejos de sua natureza autêntica nos Stark sobreviventes em sua faina de acresecentar um dia a mais a suas existências, num nobre enjeitado por ser anão e que, obrigado por isso a trilhar vias mais exíguas do que as dos demais, é instado a abrigá-la intermitentemente, e finalmete no aprendizado de uma princesa banida, usada pelo irmão em troca de alianças que o conduzissem ao trono máximo de onde caiu - assassinado - seu pai, mas que soube como que esculpir num destino de aparência inflexível sua ascensão a rainha de povos díspares e a postulante de peso do trono usurpado.

Daenerys faz de si o perfil da monarca que se pode dizer justa ou, ainda, o perfil assumido por qualquer forma de poder de um indivíduo sobre outro que decida manter-se à maior distância possível do despotismo. É a linha de conduta que escolheu desde quando apareceu nessa história, construindo relação de amor, de confiança, com o marido, a quem foi dada em troca dos exércitos que comandava, chefe tribal mais propenso ao afeto por sua montaria do que pela figura feminina. Destruída a tirania do irmão e tornada viúva, inclusive tendo perdido o filho, herdeiro, e a posição na tribo, vê realizar-se sorte de profecia em que sobrevive ao fogo onde também são chocados os ovos de três criaturas intratáveis, selvagens, três dragões, dos quais se torna como que mãe. A nova relação lhe proporciona o comando de um dos maiores exércitos nessas terras, falanges de escravos condicionados a suportar com bravura e indiferença o horror além de todos os limites no campo de batalha: numa transação a princípio de compra, em que daria pelos guerreiros um dos dragões, Daenerys trai os escravagistas e decreta a liberdade dos soldados, convidando-os em seguida a seguirem-na em seu projeto por um mundo livre. Usa o novo poderio militar para libertar de oligarcas locais populações inteiras e para reformar as tradições espúrias dessas terras, como as chacinas rituais, ao passo que constitui o suficiente em alianças para a travessia do mar separando-a do trono que tem por meta tomar.

Com sutis variações, essa é a tônica da campanha de Daenerys, seu propósito complexo e inflexível: tornar-se poder absoluto, mas não por mérito da força, que reserva exclusivamente para destruir seus inimigos, os inimigos da liberdade, e sim por força de ela própria se fazer encarnar pela liberdade e desse modo ganhar a confiança e a adesão de todos quanto querem e precisam extinguir a tirania. Daenerys encarna uma ideia capaz de mover hordas, a de se porem ao seu lado de livre vontade. Seu poder se estabelece não exatamente enquanto ligação externa, dela para com o outro, mas no interior mesmo deste, em sua consciência, o que ela demonstra seguidamente ao reafirmar perante todos a possibilidade permanente de cada qual decidir deixá-la com a garantia de jamais ser molestado pela decisão. No entanto, como todos em Game of Thrones e por certo não somente lá, execra a traição, que parece ter por análogo da escravização (no que tem razão), punida nos mesmos moldes. É nesse contexto que dialoga com personagem inusitado, Varys, eunuco e mestre-espião a seu serviço cuja lealdade põe então em dúvida e à prova por ter servido os usurpadores do seu reino e assassinos do seu pai depois de tê-lo servido. Varys defende-se narrando sua condição original de criança do povo submetida a todo tipo de sevícia até chegar aonde está na escala social, em que lhe cabe obedecer ordens enquanto urde o quanto pode em defesa do mesmo povo donde saiu, meta que tem por sagrada. Varys é sinuoso, escorregadio como poucos em Game of Thrones: sua história parece convencer Daenerys, que por ser quem é ou quem se propôs ser tem de acatar a defesa do espião enquanto não provada em contrário, o tipo de confiança que na saga é sentença de morte para inúmeros. Sua saída dessa zona de risco, no entanto, não foi senão magistral: pede ao eunuco que jure lhe dizer a verdade com a mesma franqueza de então quando julgar que ela, Daenerys, está em erro, jurando em seguida queimá-lo vivo se algum dia a trai.

No permanente pesadelo da política em Westeros Daenerys é constraste marcante, inclusive com os Stark, os bons senhores, mas senhores, nada obstante. A Justiça parece encontrar nela espécie de assento permanente de onde pode reinar sobre o mundo com eficiência absoluta. A jovem rainha não parece ter por inimigo ninguém ou nada, senão a tirania, a subjugação, decerto a maior - se não a única - forma de injustiça. Talvez por isso não faça inimigos: mata-os todos ao encontrá-los, caso não veja motivos para submeter algum a suplício temporário à guisa de exemplo. E por isso se deixa acompanhar só por quem a segue de vontade própria: fazer servos ou escravos seria fazer inimigos. Em várias ocasiões e, de modo mais explícito, no diálogo com Varys mostra a desimportância de sua pessoa em comparação com o que esta representa ao sugerir que entretém relação de iguais com quem a segue em virtude dessa ideia - a de liberdade. Seu poder primeiro se resume à imunidade ao fogo, de que deriva outro poder básico, sua relação com as três bestas ígneas cuja fidelidade se estabelece nos mesmos moldes da que obtém dos humanos. Trata-se de poderes de que dispóe a todo momento e que a um só tempo são a proteção possível para si, ou para a ideia que emula, e para quem, seguindo-a ou não, não fira a liberdade. Daenerys parece saber que são as ideias o que os humanos necessitam seguir, embora acreditando seguirem pessoas. Num mundo cego para a possibilidade de auto-determinação dos indivíduos comuns como o de Westeros, sabe também que para eles não fará sentido ordenar ou sugerir que sejam - que sigam - todos livres, como se fosse ainda inepta a capacidade de abstraírem, necessitando de alguém - mais do que algo - que saiba dar vida aos conceitos que apenas vislumbram. Os perigos dessa associação de ideias a personagens são enormes, mesmo em se tratando de ideia como a de liberdade, e é provável que, prevenindo isto, mais do que um guia ou mão condutora para uma liberação a ser lograda adiante no tempo, a Mãe dos Dragões tenha decidido ser ela própria a liberdade presente, com que todos à volta têm a oportunidade de interagir.

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