sábado, dezembro 28, 2019

Fuga em si

Embora parado, quase estático em frente ao monitor, está em fuga. Foge do vexame que como por desencanto o mundo lhe revelou ser. Foge - ou quer fugir - para algum lugar, não para um qualquer, como Passárgada, vez que inté lá é preciso ter amizade com rei se é desejo estar bem. Foge com os dedos, únicas partes do corpo que ainda é capaz de mover além das pupilas, naturalmente. Foge com olhos e mãos na direção única que lhe parece restar, ainda que à frente tenha por perspectiva vexame outro, vexame de que em tese é impossível fugir e ao qual já está - vexaminosamente, por inteiro - habituado. Por isso, a terceira pessoa, máscara ou disfarce que vestiu para fugir. Foge dum vexame para outro e para trás dum terceiro, que seria algo como o próprio corpo, ou tudo quanto aos de fora parece ele própeio ser, vexame a mais, desimportante, se comparado ao que o rodeia e ao que escolheu por destino. Vantagem alguma parece haver nesse fugir, salvo talvez a de saber que não excede a norma, que, enquanto foge, é como qualquer um, com a distinção, embora, de se saber fugitivo e fugitivo de um ridículo para outro, não, de necessidade, um menor, mas apenas tolerável, espécie de porto em que estará alerta, em trânsito e seguro do retorno da balsa que o levará ao lado sobrante, o outro, que é também lado nenhum, onde, enfim, será amigo de ninguém, vez que parece haver ali rei nenhum, pessoa ou mesmo coisa alguma, e onde estará a salvo de todos os vexames e outros sentimentos que os contrastam ou anunciam (o que dá no mesmo), a salvo da felicidade e, por conseguinte, do receio de quando é ou estará feliz. Parece não haver escolher, e isto ainda lhe parece bom.

sábado, agosto 10, 2019

O masoquismo em seu 'não-lugar'

O conhecido 'princípio' que se escreve como 'fazer ao outro o que se faz a si mesmo' ou como, em versão negativa, 'não fazer ao outro o que não se quer feito a si', tido por lema de vida para os autodenomimados 'indivíduos de bem', seria de fato um princípio? Estaria ele de acordo com a noção de 'princípio', isto é, seria noção fundamental, verdadeira, da qual se deduzem outras igualmente verdadeiras? Parece que não, se pensamos no masoquista - ou na porção de masoquismo em aparência tolerada em si próprio por todo indivíduo dito 'normal'. Na circunstância de um masoquismo 'padrão' ou 'por definição', como se sabe, seu sujeito é instado a acatar o sofrimento, mas não de necessidade a impô-lo ao outro, caso contrário, é de imaginar, tornar-se-ia um sádico, salvo se - parece pensável ou provável - tomasse a atitude por imperativo moral, esse mesmo de proporcionar o bem a seu semelhante, exatamente como é proposto pelo 'princípio' acima. E como para ele, masoquista, é bem o que para outros, ditos normais, é mal, sua consciência poderia continuar tranquila quanto a, inclusive, estar passando-se por sádico, desgosto esse suposta ou necessariamente profundo para o masoquista ávido de egoística satisfação e, aliás, por isso mesmo fonte potencial a mais donde extrair seu prazer às avessas: o dissabor de praticar o sadismo pode, sim, ser uma maneira legítima de satisfação para o masoquista 'padrão' e, evidentemente, de demonstrar a falsidade do 'princípio' em questão, chamado por alguns de 'regra de ouro'!

O alvo evidente dessa regra é,  para bom entendedor, o disciplinamemto do sadismo, o igualmente 'padrão', cujos sujeitos são supostos rejeitar todo sofrimento que não seja o de outrem. O perfil dum sádico não aparenta ser, então, o de quem rejeita prazeres em geral, tendo embora preferência particular por esse de desfrutar do sofrimento alheio. Em termos de prazer, portanto, ele parece estar de certo modo mais ou melhor alinhado com o perfil da 'normalidade' do que o masoquista, que viola o que para ela, normalidade é, isto sim, fundamental, o princípio da autopreservação, no qual estaria implícita mesmo dose 'cautelar' de sadismo, isto é, o conhecido comportamento de que é exemplo a popularíssima expressão 'antes você (ou ele) do que eu'.

O masoquista, segundo parece, é essa entidade aparentemente sem lugar próprio ou muito claro na realidade, quase como os paradoxos: sua existência - ao que tudo indica, verossímil - é capaz de violar, como se vê, a 'regra de ouro', sem falar em que frustra, em sendo por natureza como é, a potencial fonte maior de seu prazer, que se acredita ser o sádico e que  em termos lógicos não pode mesmo desempenhar semelhante função, já que desfruta do sofrimento alheio, que o masoquista é incapaz de lhe proporcionar. Nem o lugar de complemento do sádico, pois, o masoquista parece conquistar neste mundo, porventura restando-lhe aviar-se por conta própria sempre que falha em enganar algum com apenas fingir-lhe que sofre, o que, a propósito, parece ser outro modo de o masoquista amealhar gozo extra, isso de reprimir a manifestação de que goza.

quarta-feira, julho 17, 2019

De sucessos e fracasso

Os paradoxos que temos de engolir, é provável que por serem as maneiras mais à mão - talvez as únicas - de que dispomos para fazer sentido das coisas.

No I Ching, por exemplo, se demonstra haver uma só coisa imutável: a mutação sem pausa das coisas em outras, fonte exclusiva - inclusive(!) - da noção que temos de tempo.

Se compreendemos e aceitamos esse argumento como regra geral, universal, temos de admitir que a permanência (no tempo, portanto) da ideia que fazemos de nossas identidades próprias, pessoais, se dá por termos 'algo' dizendo-nos constantemente que mudamos e como isto se dá, 'algo' dando conta de uma história cujo sentido inescapável é o de tornar-nos melhores! - 'melhores' no sentido básico de 'adaptados o melhor possível' às reviravoltas (ou transformações) de tudo mais ao redor.

O que possuímos de ponderável, pois, não passa da consciência de sermos imponderáveis por possuirmos habilidade limitada para estimar as mudanças por virem, mas de sermos também confiantes de que continuaremos a responder da melhor forma que pudermos a todas, de que nos manteremos adaptados.

Nesse sentido somos uns vitoriosos e, como dizia Humberto Marini, "pecadores sem culpa": o fato de permanecermos é sempre indício de sucesso, a despeito mesmo do que de miserável se faz para permanecer e seja qual for a medida em graus ou volume usada para estimar os valores de uns relativamente aos outros sucessos - o que não acarreta dizer que  aquietemos, que nos locupletemos de ou nos resignemos a perspectivas quaisquer, não importam seus tamanhos - ou grandezas.

Já o fracasso, outro absoluto, não tem senão um modo único de se dar, todos o sabemos ao testemunhar quando se abate sobre outrem, e se algo de bom há a esperar de quando vir apresentar-se a cada um de nós, em maioria nutrimos a expectativa de o não percebermos, de o não vivermos em sua imperscrutável condição, ou não além de notar, como se concede a uns tantos de nós, que é iminente.

quarta-feira, maio 01, 2019

Da arte de ser tão só parte

Como diz  mesmo o termo, 'política' seria a arte de viver em grupo - para os gregos, a 'pólis' - e abrange infinitamente mais do que o desejar um bom dia ao concidadão ou lhe endereçar  um sorriso combinado. Política seria a arte de pôr em prática a compreensão das regras, a maioria das quais mutáveis, que se autoimpõem no momento em que sentimos o quão impotentes nos revelamos quando sós para a realização de tarefas básicas do estar vivo.

É preciso, pois, adentrar de vontade própria o universo dessas regras, as leis, se queremos sustentar o diálogo difícil do 'quem faz o quê' na grei. É preciso manejar alguma lógica ou, na verdade, muita, ter em foco a ideia do outro como se teria a de si mesmo e sem piedade saber colocá-lo também onde você, sujeito, está.

Mas é preciso muito mais ter persistência, ser paciente, curioso com o que há de mais simples, respeitando sua complexidade inerente com a aplicação dedicada do entendimento. É preciso, acima de tudo, ser exemplo, pois só ele, exemplo, é capaz de coreografar as ações à volta, porque ações só existem em encadeamento, jamais isoladas, livres umas das outras, como se quer acreditar. Além disso, só é preciso um pouco de medo do exemplo que se dá - do exemplo que se é - para manter o sujeito sempre um pouco fora de si, como se não fora nem mesmo o outro, como se fosse ninguém.

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