sábado, agosto 10, 2019

O masoquismo em seu 'não-lugar'

O conhecido 'princípio' que se escreve como 'fazer ao outro o que se faz a si mesmo' ou como, em versão negativa, 'não fazer ao outro o que não se quer feito a si', tido por lema de vida para os autodenomimados 'indivíduos de bem', seria de fato um princípio? Estaria ele de acordo com a noção de 'princípio', isto é, seria noção fundamental, verdadeira, da qual se deduzem outras igualmente verdadeiras? Parece que não, se pensamos no masoquista - ou na porção de masoquismo em aparência tolerada em si próprio por todo indivíduo dito 'normal'. Na circunstância de um masoquismo 'padrão' ou 'por definição', como se sabe, seu sujeito é instado a acatar o sofrimento, mas não de necessidade a impô-lo ao outro, caso contrário, é de imaginar, tornar-se-ia um sádico, salvo se - parece pensável ou provável - tomasse a atitude por imperativo moral, esse mesmo de proporcionar o bem a seu semelhante, exatamente como é proposto pelo 'princípio' acima. E como para ele, masoquista, é bem o que para outros, ditos normais, é mal, sua consciência poderia continuar tranquila quanto a, inclusive, estar passando-se por sádico, desgosto esse suposta ou necessariamente profundo para o masoquista ávido de egoística satisfação e, aliás, por isso mesmo fonte potencial a mais donde extrair seu prazer às avessas: o dissabor de praticar o sadismo pode, sim, ser uma maneira legítima de satisfação para o masoquista 'padrão' e, evidentemente, de demonstrar a falsidade do 'princípio' em questão, chamado por alguns de 'regra de ouro'!

O alvo evidente dessa regra é,  para bom entendedor, o disciplinamemto do sadismo, o igualmente 'padrão', cujos sujeitos são supostos rejeitar todo sofrimento que não seja o de outrem. O perfil dum sádico não aparenta ser, então, o de quem rejeita prazeres em geral, tendo embora preferência particular por esse de desfrutar do sofrimento alheio. Em termos de prazer, portanto, ele parece estar de certo modo mais ou melhor alinhado com o perfil da 'normalidade' do que o masoquista, que viola o que para ela, normalidade é, isto sim, fundamental, o princípio da autopreservação, no qual estaria implícita mesmo dose 'cautelar' de sadismo, isto é, o conhecido comportamento de que é exemplo a popularíssima expressão 'antes você (ou ele) do que eu'.

O masoquista, segundo parece, é essa entidade aparentemente sem lugar próprio ou muito claro na realidade, quase como os paradoxos: sua existência - ao que tudo indica, verossímil - é capaz de violar, como se vê, a 'regra de ouro', sem falar em que frustra, em sendo por natureza como é, a potencial fonte maior de seu prazer, que se acredita ser o sádico e que  em termos lógicos não pode mesmo desempenhar semelhante função, já que desfruta do sofrimento alheio, que o masoquista é incapaz de lhe proporcionar. Nem o lugar de complemento do sádico, pois, o masoquista parece conquistar neste mundo, porventura restando-lhe aviar-se por conta própria sempre que falha em enganar algum com apenas fingir-lhe que sofre, o que, a propósito, parece ser outro modo de o masoquista amealhar gozo extra, isso de reprimir a manifestação de que goza.

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