terça-feira, junho 19, 2007

Filosofia, narcisismo, ética e moral

Filosofia não é uma ciência. Jamais poderá sê-lo. Se de fato cunhado por Sócrates, em tudo parece condizer o termo com a reputação sobrante desse filósofo, cujo interesse centrou-se no que mais tarde se chamou de Ética, esta, sim, ciência das ciências. Filosofia, como o próprio nome indica, designa tão -só disposição especial do sujeito para fazer ciência. Sua idéia nasce, provavelmente, quando este se inteira de sua condição irrefreável para conhecer, atividade central de sua existência, pouco importa o que de diverso pense fazer, e a incorpora como o amante ao direcionar sua inclinação amorosa para outrem ou mesmo para ninguém em particular, mas a exerça indiscriminada e integralmente por gostar de exercê-la.

Filósofo é tão-só quem ama sua disposição inata para o conhecimento e a aplica, seja a um só, seja a muitos objetos, observando-os e entendendo-os de um ou de variados modos. Distingue-se dos demais indivíduos exatamente por esse amar, pois conhecem apenas por serem dessa maneira constituídos. Por outro lado, o filósofo não se mostra em essência diferente de outro humano qualquer: é suficiente admitir que a cada um pode caber afeiçoar-se a uma ou muitas das inúmeras características de que é constituído, podendo amar-se o próprio braço, por exemplo, pela força ou pela forma que apresenta, o próprio nariz, a boca, os olhos, as próprias mãos, os pés e mesmo o corpo por inteiro, a inteligência ou o humor descontraído, a própria honestidade e até a malícia e a vilania de que se é dotado. Embora possa concomitantemente amar uma ou mais de suas partes constitutivas, o filósofo ama sua condição cognoscitiva. Mas ama-a sem hesitação.

Ao encarar a si com tal sinceridade um filósofo percebe não passar de mais um dos acometidos de narcisismo, talvez não de um narcisismo integral, pois nem todos são como Alcibíades, cuja beleza física, entretanto, não pareceu comover Sócrates, encantado, como era, com apenas ser filósofo, mesmo porque não via em seu próprio corpo motivos para amá-lo. Mas não devemos esquecer que assim como conhecedores inatos, embora não por necessidade embevecidos com o conhecer, embora não por necessidade filósofos, somos também e em essência narcisistas, temos de amar ao menos uma, se não várias, de nossas características, ou mesmo todas elas, do contrário viver pode tornar-se experiência de todo desaconselhável. Há quem diga ser possível desprezar tudo em si e ainda assim ter vida tolerável, quiçá agradável, quando se aprecia outra coisa qualquer fora de si: nesse caso, entretanto, goza-se ou ama-se esse apreciar mesmo, o qual, sem dúvida, é parte do sujeito.

Filosofar, como se vê, não faz de ninguém um ser especial, mais ou menos louvável do que qualquer outro entre cujas predileções não está o conhecer. Entretanto o seu gozo com o conhecimento, porta aberta que é para a ciência, propicia-lhe o ensejo de tornar-se alguém distinto dos demais, um ser verdadeiramente singular. Isto ocorre quando o filósofo finalmente entende o por que do seu conhecer: conhece para agir, embora também aja para conhecer, embora em certas circunstâncias aja como se em aparência ignorasse o motivo ou a finalidade de sua ação e embora aja e sempre tenha agido, desde sua primeira ação, por ter algum conhecimento, aquele suficiente para ação assim primordial. Sua sabença está a serviço de como se comporta diante das coisas, pois é preciso considerá-las ciosamente, ou arrisca viver em desacordo com elas e mesmo desaparecer, extinguir-se.

Pelo inerente amor a si o sujeito - qualquer um - tem de saber como coordena suas ações dirigidas ao meio, tem de saber resistir a este e com tal resistência tem de igualmente preservá-lo, pois depende disto para continuar existindo. Em sua afeição pelo conhecimento o filósofo parece mais afeito do que os demais indivíduos a admitir essa interação necessária com o mundo e, claro, a cultivá-la de modo singular, buscando entendê-la cientificamente, ou seja, segundo princípios aplicáveis a uma ampla gama de situações e aceitos mediante provas, ou não lhe merecem a fé. Para tanto inteira-se da necessidade de valer-se de tudo quanto sabe, de todas as ciências que cultivou ou pode cultivar, pois encontrou a ciência por excelência, a ciência de todas as ciências: encontrou a Ética. E quando a encontra, de modo diferente de outros filósofos, cujas sabedorias se aplicam segundo princípios variáveis ou instáveis ou segundo princípios dizendo respeito tão-só ao seu amor a si próprio, o filósofo versado em Ética não pode empregar a sua senão sob os pressupostos inflexíveis dessa ciência máxima, tem de, por conseguinte, comportar-se como o sábio que é, caso contrário mostrará não passar de aprendiz, não passar de um curioso movido apenas por uma paixão qualquer.

Mas a todos, queiramos ou não, termina por interessar a Ética, sugere-me a voz que me inteirou também de sermos conhecedores e narcisistas natos. Sim, respondo-lhe, temos todos de estudar Ética, embora não do modo ou com a intensidade de um apaixonado por conhecê-la, não como o filósofo convencido de ser ela a única ciência possível, diante da qual as demais encontram justificativa, mero apêndice que são dela. Diferentemente do Ético, chamemos assim a esse filósofo, nós outros não buscamos perfeição sequer semelhante à que encontra em sua ciência. Seríamos, quando muito, versados numa espécie de sombra desta: pois se conforma em função das múltiplas superfícies sobre que é projetada, sendo variável e volátil como os acordos que propicia, incerta e sinuosa como as justificativas para as ações que enseja, quase que uma para cada sujeito. Enfim, sem amar o conhecer que nos é inerente podemos até fazer ciência, mas por imposição da própria natureza, e tal ciência congênita tenderá, também por necessidade, a algo como a Ética, a um seu arremedo, ética de amadores, não de verdadeiros amantes do conhecimento, ética possível a quem deseja exclusivamente desfrutar a vida sem saber ao certo se por mérito ou mesmo se de fato o faz: e seu nome correto é moral.

Rio, 19/06/07

Waldemar M. Reis

domingo, junho 17, 2007

Voltas ao mote do Mundo

Ao desconcerto do Mundo

Os bons vi sempre passar
No Mundo graves tormentos;
E pera mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado,
Fui mau, mas fui castigado.
Assim que, só pera mim,
Anda o Mundo concertado.

Luís de Camões


Pobre poeta! Perdido em descaminhos indescritíveis até para sua dialética tortuosa. Foi mau, estupidez, cuidando obter o bem, inalcançável enquanto bom foi. Quiçá melhor faria em continuar passando no Mundo tormentos, do que aventurar-se nos exclusivos contentamentos dos maus. Ovelha em pele de lobo, ignorante de estar nos focinhos, por excelência, o tino de predadores tais.

Presunçoso poeta! Oh, porventura quisesse apenas passar-se por bom; até ser mau, naturalmente, pois apenas o bom corre o risco de mau tornar-se. E quem o puniu, finalmente? O mal, por sua desfaçatez de invadir-lhe o território em busca dos prazeres de quem o professa de corpo e alma, ou o bem enciumado? Ora, poeta, o seu castigo não é prova de estar o Mundo, ainda que só para si, concertado.

Que o Mundo não é como nos fazem crer, poeta, disto já me havia inteirado. Nele é bom quem do mal não tem oportunidade, cabendo-lhe assim tão-só sofrer aquele que outrem lhe faz. Estóico poeta! O mal é para peritos! Estultos sábios de antanho, cavilando do bem pedagogias, quando é para a maldade que carece adestrar-se. Fosse o contrário, não seria o bem saber inato.

Já o mal, em sendo novidade, tem de demonstrar-se, verificar-se, justificar-se! Doutro modo, não se o aprende. Preciso é torcer a bondade de que se vem ao Mundo dotado, contrariá-la com argumentos terríficos, irrefutáveis, inquebrantáveis, e depois testar-se, mostrar-se proficiente. Por isso o castigo, poeta. Foi reprovado.

É, o mal não admite fraudes. Nem indecisões. Não contemporiza: o mínimo deslize é o retorno ao chão. Uma vez erguido, no entanto, são oceano as retribuições. A começar pela posição, de mestre, para quem os discípulos, literalmente sob os seus pés, são só gratidão. Ora, poeta, não se anoje, ou mostra ter nada aprendido. Lembre do ditado: só a dor ensina. Ensina a ocasião de infligi-la para a instrução de algum coitado.

Rio, 17/16/07

Waldemar M. Reis

segunda-feira, junho 11, 2007

Livre e abreviada teoria das democracias

Como pode ser justo um sistema político no qual todos sustentam como insígnias suas mais miseráveis diferenças? A bem da verdade sequer há consenso, na prática, de sermos todos humanos, de necessitarmos basicamente das mesmas coisas ou mesmo de coisas semelhantes. Espalhados pelas manchetes de jornais, exemplos disto só nos convidam a concordar com Churchil, para quem a democracia seria o melhor dentre os piores sistemas de gestão pública.

Exageros à parte, estes não podem ser motivos para darmos as costas para o sistema democrático e partirmos em busca de um mais apropriado. E a razão é, pelo menos em princípio, inexistir outro capaz de oferecer ao indivíduo melhor perspectiva de liberdade - assim como de hábito é concebida. Se a história não mente, o ser humano praticou já todos os possíveis métodos de organização comunitária, os quais, valendo-se da lógica mais rasteira, contam-se nos dedos de uma só mão: ou governa um indivíduo, herdando ou não o cargo, ou governam alguns, que igualmente podem ou não transmitir suas funções, ou, por fim, governam-se todos.

De novo com o auxílio da lógica é possível afirmar que, desconsiderada a quantidade de governantes, é a totalidade da população que outorga a estes as atribuições que têm - não fosse assim, governar-se-ia quem? Em suma, é sempre o povo que governa. O segredo de imperadores, ditadores, presidentes, legistladore, resume-se em manter a massa em dissensão continuada, pois é na ciosa administração das desigualdades que reside o poder, assim como é ordinariamente entendido o termo. Um tirano competente jamais delibera contra porções significativas da população. Do outro lado, um povo tiranizado, prova cabal de masoquismo coletivo, nada obstante cuida de moderar os efeitos do jogo político ou perece.

O poder democrático é passível de descrever-se, segundo é comum entendê-lo hoje, como o exercido por déspotas potenciais coagidos pelas massas, enfim esclarecidas, à negociação. Figuras assim seriam versões políticas de pais benevolentes, não fosse mais forte a vocação para o domínio a transformá-los em sólidos personagens num enredo em que a população, sem o perceber, permanece manipulada. Por isso é mais fácil definir democracia como o padrão de gestão coletiva admitindo variantes ao longo das eras, nas quais os indivíduos participam mais ou menos das decisões de um governo central, tendo-lhe previamente outorgado e continuando a lhe garantir a atribuição de governar. Como se vê, não pode haver motivo para dar-se as costas à democracia em favor de outro sistema, visto não existir a alternativa: melhor do que uma dada democracia só mesmo outra melhor - ou não tão ruim, se quisermos aderir à ironia de Churchill.

A quem está convencido, chegando neste ponto do ensaio, tratar-se tudo de puro non-sense, fica a sugestão de analisar, ainda que de maneira superficial, a evolução (no sentido de malabarismos, acrobacias - segundo sugestão de Antonio Caetano) das democracias no correr do último século. Em todas é visível a cuidadosa cisão das massas jogadas, assim partidas, umas contra as outras; e mesmo em momentos de maior participação coletiva prevalece ainda a separação em blocos, dos quais sobressaem líderes cuja função mais significativa é a de manter aquela facção centrada no quanto a distingue das demais, forma esta de perpetuarem suas respectivas influências e, tendo na retaguarda contingentes consideráveis de indivíduos, obter determinados privilégios, sempre mais pródigos para si do que para suas bases. Finda a análise, o bom observador terá concebido espécie de imagem tingida de uma única cor em vários matizes e jamais esquecerá de que oligarquias, despotismos e mesmo realezas são partes mais ou menos ativas, mais ou menos fortes, da democracia como até hoje a conhecemos. Tudo, como não poderia deixar de ser, de conluio com a patuléia.

A associação de idéias como a de perfeição democrática com educação não é casual. A despeito do grau de conhecimento de distintos membros de uma sociedade, esta se move numa massa de informação cujo nome é senso comum. Tanto mais o senso comum de uma população se aproxima dos níveis de conhecimento ditos de excelência, maior tende a ser a liberdade de cada indivíduo, ou seja, maior tende a ser sua auto-suficiência. Nada mais natural: senso comum é o repositório do saber de uma comunidade, é onde se preservam os meios de esta lidar com seu entorno visando a sobrevivência. E toda política, sendo, como é, arte de administrar ou manipular as massas, tem de lidar, evidentemente, com esse conhecimento rigorosamente acessível a todos, ou não sucede.

Mas a educação em quaisquer das modalidades de democracia conhecidas tem de, para manter-se coerente com o princípio de dominação, exercer-se num determinado âmbito, fora do qual torna-se atividade subversiva. Ensinar-se-á, assim, a conservação das instituições políticas vigentes, jamais seu real aperfeiçoamento. Uma mancheia de educadores de aluguel terá torcido os narizes para tais afirmações presumindo que educam para a liberdade, para a livre-iniciativa, portanto, para prover o mundo de gerações cada vez mais aptas a corrigir os desvios do poder público. E de fato é improvável encontrarem-se dois momentos consecutivos quaisquer em que não tenha havido alguma reforma, algum aperfeiçoamento, a despeito de persistirem falhas incontáveis e, o pior, descontentamento quase universal: mudar é revolver, sendo também condição inescapável das coisas no mundo.Assim, prescrevem as gestões públicas: se é imperativo mudar, que se o faça então em pequenos bocados, sutis revoluções que não desandem a ordem coletiva. Formam-se, portanto, pela educação consensualmente tolerada, pequenos revolucionários, indivíduos capacitados a manter ao máximo as condições próximo de certo estado admitido como ideal para a conjuntura vigente. A única razão a conservar de pé as democracias como as conhecemos, por quase perfeitas que sejam, parece ser a esperança em cada um de nós de um dia passarmos pelo funil conduzindo a sucessão de privilégios, à imitação dos poucos que nos últimos decênios o fizemos: e tal em nome da renovação, das pequenas e controladas revoluções em cujos finais é possível constatarmos a presença de grupo de atores diferente do anterior, mas desfrutando de privilégios idênticos. Por isto são raros os grandes revolucionários, mesmo aqueles praticantes e pregadores da paz, que em tese não o fereceriam qualquer incômodo, mas talvez que por isso mesmo sejam caçados e suprimidos.

Por força da intuição, entretanto, sabemos todos como de fato tem de ser a melhor democracia: cada qual conhecendo exatamente o que de melhor fazer e, o principal, sem prejuízo de ninguém (uma coisa, na verdade, acarreta a outra, mas não custa reiterar). Em vista de como estimamos nosso caráter mediano, tal intuição define comunidade de sábios, seres imagináveis e mesmo reconhecíveis, mas a quem é impossível imitar, segundo se crê em consenso. Na raiz de tão insensata crença, entretanto, reside equívoco secular, pelo qual a figura do sábio metamorfoseou-se naquela do indivíduo provido de grande quantidade de informação tornando-o apto a manipular ou dominar o meio ao redor, a natureza, nela incluídos seus semelhantes. Antes, por milênios, o sábio foi, ao contrário, aquele capaz de manipular ou dominar a si mesmo, sua natureza pessoal. Uma democracia no limite da perfeição só pode ser praticada, evidentemente, por sábios à moda antiga. Essas democracias 'quase perfeitas' - e, ainda assim, tão insatisfeitas - hoje circundando-nos ou circundadas pelas nossas (a meio-caminho da perfeição das primeiras), têm-se mostrado como exemplos de gestão pública abundando em sábios à maneira moderna, sábios entre cujas especialidades está a acurada manipulação de seus semelhantes, sejam estes sagazes ou não. Suas ações estendem-se, não raro, a populações estrangeiras, pelo que não demonstram serem deveras auto-suficientes tais sábios à moda recente, sempre necessitando do esforço alheio provendo-lhes do que viver.

A educação capacitadora de cidadãos em verdadeira liberdade constitui-se de princípios de Ética antes de princípios das demais ciências, dois gêneros de princípios que, por sinal, não discrepam, embora sem os do primeiro tipo os do último tendam a desgovernar-se em presunção. Com os princípios éticos é possível chegar-se a uma ciência limpa, capaz de extrair do entorno apenas o suficiente e sem o concurso de massa de indivíduos manipulada para atender aos fins de outros, menos numerosos. A democracia perfeita, constituída por homens sábios é, por fim, alcançável sem transtorno maior do que uma inflexível boa vontade e já possui mesmo um nome, sendo definida como o federalismo tendo por limite apenas o indivíduo, sua unidade menor: Anarquismo. Assim se intitula o pacto no qual o homem professa entender que sua liberdade existe em função da fraternidade e, principalmente, da igualdade, conceitos enfim alçados da condição de meras promessas e mantendo distância segura das definições que lhes atribui a sabedoria de tipo moderno. Em tal pacto a convicção das partes não oblitera a noção do todo, as dificuldades são resolvidas topicamente - pois singulares são as condições de cada ponto do planeta - e nacionalidade será apenas designação geográfica. O acúmulo de riquezas, em vista do custo do futuro, só terá sentido se administrado pela totalidade dos indivíduos e é possível ser-se, quando assim se o desejar ou preciso for, engenheiro, operário, médico, lixeiro, músico, lavrador etc, embora jamais presidente, general, polícia, juíz, pois o pecado não se faz mais perceber tanto a norte quanto a sul do equador. Entretanto são todos - questão de ordem - legisladores, investigadores insaciáveis de regras segundo a ocasião, mas orientadas por par de princípios que, a bem dizer, são conhecidos de nascença: produzir o melhor (sem prejuízo de ninguém - não custa insistir). Fora essa, temos mesmo de contentar-nos com estar em alguma das melhores dentre as piores democracias.

Em 11 de junho de 2007

Waldemar M. Reis

terça-feira, maio 15, 2007

Fides et Ratzinger

A meu pai, em seus oitenta anos, no décimo quarto ano de ausência de minha mãe.

No princípio, era a confiança. Apenas confiança, mas num sentido do qual você e eu não guardamos mais do que uma noção descorada, confiança em sentido absoluto. Hoje é sentimento atribuído aos parvos, indivíduos dotados da coragem, a eles conferida pela ingenuidade, para confiar cegamente, confiar simplesmente, a priori, quiçá sem garantias. Confiança assim só se deposita, é natural cogitarmos, em quem de certo a malversará jamais. E de espantar é que tenha havido quem a merecesse ou que tenha alguém acreditado em sua existência.

Mas, conta-se, teria de fato existido tal sentimento. E veio ele à tona, diz a história, quando um homem e seu clã deixaram para trás o lugar onde nasceram em busca de uma promessa. Foi por nela confiarem que seguiram caminho e de passagem testemunharam a destruição de cidades sem sequer um olhar, a transformação de um dos seus em estátua de sal, entre outras mostras impressionantes do preço de não confiar.

Muitas são as provas por eles deixadas do quão firme foi sua confiança. Jamais esqueceremos da saga do pai conduzindo o filho à imolação depois de abandonar às portas do deserto um outro, o primogênito, com a mãe, sua antiga concubina, designada por seu Deus para lhe dar a descendência negada pela constituição física de sua esposa e meio-irmã, a quem por duas vezes vendeu em troca da própria vida e por duas vezes restituiu em meio a riquezas incalculáveis. Fraqueza, diriam os incautos, diriam os incréus leitores de sua sina; loucura, completariam. Mas o fariam por não mais confiarem, não no sentido daquela confiança de quem estava seguro de não haver lugar senão para o bem, para o bom, neste mundo de desígnios imponderáveis. Foi suficiente tolerar o peso do revés para que o ventre vetusto da esposa inesperadamente concebesse, para que o filho por dever renegado se tornasse patriarca do povo do deserto, para que um anjo viesse conter o braço antes do golpe do punhal.

Como se não bastassem essas e outras mostras desse confiar (não esqueçamos daquele pai cuja firmeza não se abalou com o decesso de toda a família, a penúria extrema e a temporada no estômago de um cetáceo), como se fossem insuficientes para o entendermos, séculos adiante, ou melhor, livros à frente, a história nos dá um pregador de cujo delírio brota a ambígua noção que doravante orientará a razão, mas também a desrazão, do homem. Em nome dela, fé (como passou a chamar-se a confiança), segundo a definiu Paulo, apóstolo tardio dum Cristo já ressurgido, milhares, quiçá milhões, pereceram sob a acusação de não a possuírem, de não a exercerem: eis um dos mais bem acabados exemplos da demência. Pois como é possível sequer suspeitar de haver quem seja destituído de fé? Como é possível conceber vida sem fé? A estas interrogações entregaram-se os espíritos verdadeiramente lúcidos, embora não dessem com outro meio para evitar os inúteis suplícios senão oferecendo às prováveis vítimas, os supostos destituídos de fé, o objeto sobre que depositarem a que sempre tiveram e que de fato existia, embora não a percebesse o clericalismo irracional, decerto por tratar-se de fé em estado bruto, aliás, como a quis Paulo mesmo, a saber, a espera do que não se pode ver.

Cristo, imagino, dar-se-ia por contente se seus seguidores apenas se inteirassem da fé que sempre possuíram e que sempre possuiriam em sendo viventes, tomando cada qual, em seguida, caminho próprio. Creio, entretanto, ter em mente o Cristo ideal quando assim o digo, o Cristo coerente com a pregação que lhe atribuíram. Não sei se para o mesmo fim posso invocar o Cristo histórico, personagem dia a dia emergindo da pertinácia ou da fantasia de arqueólogos e historiadores, cuja suposta vaidade teria levado ao paroxismo, no breve intervalo em que viveu, a corrompida sociedade desse tempo e cuja recompensa foi inserir-se na história, a passada, com a qual fez coincidir cada um dos seus passos desde que adentrou Jerusalém em lombo de jumento até a crucifixão, e a futura, a habilidade de cujos escribas o tornou em lenda.

Por que se daria por satisfeito o Cristo ideal com a contrita diáspora de seu rebanho? Por ser um visionário, como o confirma em boa medida o Cristo histórico assim como o esboçam. O Cristo coerente estaria lasso das invectivas dos poderosos sobre o comum acusando-o de desligado, sua meta seria a de livrá-lo de uma vez por todas desse tribunal insano. Mas desligado de quê estaria o comum? Ora, de sua natureza primeira, de sua essência imaterial, de sua origem na divindade. Não é outra a premissa religiosa, de seja qual for a religião. Mesmo a etimologia do termo, em sua ambigüidade, pende ao fim para delineá-lo como o esforço de fazer tornar o indivíduo ao essencial, em suma, de reatar seus laços com o que não percebem os sentidos nem alcança a razão. Como se possível nos fosse escapar ao incognoscível e ao paradoxo enquanto vivos e conscientes! É verdade: a empresa religiosa padece cronicamente da presunção de estarmos tecnicamente apartados de nossa origem, a despeito de atribuir-lhe poder, conhecimento e presença absolutos. Em sua opinião teria Deus criado o universo e o povoado de criaturas capazes de eventualmente apartarem-se disto que criou, não obstante tudo, absolutamente tudo, seja criação Sua. Em suma, é simples a dedução: para onde quer que tais supostos fugitivos pensem rumar, permanecerão sempre confinados à Sua obra. Enfim, os pressupostos religiosos jamais justificaram ou justificarão as conclusões que deles se retiram e muito menos os atos determinados pelo que se concluiu.

 Até onde alcanço, só vislumbro uma causa única para a profissão religiosa: o vício da dominação. E melhor viceja sua semente onde antes adubou a ignorância aterrada com o fado dos viventes. Pois o mundo é útero e túmulo, berço e esquife, palco e cadafalso, saciedade e penúria, de que, mais dia, menos dia, vamo-nos dando conta. Mas se vem à luz com uma imcumbência, uma só, contrariadora da metade - a metade indesejada - disto que o mundo é, a incumbência de cá permanecer o quanto possível for. E, não importa o tanto que se perdure, não há quem ou o que cumpra por inteiro a tarefa nem quem ou o que dela deixe dívida: todos o sabemos, intuitivamente; sem qualquer pressa a vida no-lo ensina. Tememos tudo cujos efeitos desconhecemos ou não logramos mensurar, dos eventos da natureza aos pensamentos de terror que estes nos infundem, frente aos quais só duas atitudes se mostram possíveis: a obstinação perquiridora, naturalmente decorrente da incumbência - ou, melhor dizendo, da imposição - de perdurar, e a submissão incontornável aos fatos, cuja continuidade termina por extinguir-nos. A vida é a temporada durante a qual oscilamos entre uma e outra posições e talvez sua duração se relacione diretamente com a eqüidade com que nos mantemos mais na primeira, visto ter a outra a função de mera pausa antes do impulso pelo qual penetramos mais e mais no conhecimento das coisas. E é nesses momentos de dúvida, quando por qualquer motivo se enfraquece a confiança que temos de ter no que somos capazes de saber, é em tais hiatos - por vezes mais duradouros do que desejávamos - que as admoestações religiosas se vêm imiscuir.

Suas ofertas não são de todo despreziveis: convencendo-nos de estarmos desgarrados, acenam a seguir com a reentrada no mundo verdadeiro, segundo o concebem, para tal ofertando-nos o conhecimento total e instantâneo da realidade. Abstenho-me de julgar o teor ou o valor desse conhecimento, pois tal só se mede tendo em vista um sujeito e o quanto isto lhe tem serventia. E de hábito não é raro topar-se com 'religados' cuja vida sucede à sua satisfação, prova esta porventura considerável do valor do que conhecem. Arrisco-me inclusive a reputar tal conhecimento, em essência, o melhor, o único mesmo. Mas recuso conceder-lhe o acabamento às pressas arranjado pelos doutores das religiões para torná-lo palatável ao indivíduo em dúvida profunda, convencido de estar de parte da Criação. Prefiro restringir-me à letra da palavra de Paulo em Hebreus (11:1), para quem a fé é a forma da esperança e a prova do invisível, descartando os objetos que a tradição a ela apôs à guisa de isca para os destituídos de paciência e imaginação. Pois o objeto da fé, da fé que é apanágio de todo vivente e não apenas dos devotos desta ou daquela religião, não se constitui senão na espera que o desvela infinitamente em sua infinita perfeição. Bem aventurados os que não se apressam em pôr no seu lugar qualquer coisa que, no incessante desvelamento, dá à fé a impressão de ser como uma árvore, o trovão, o mar ou as divindades. Pois ela é tudo isto e muito mais, é qualquer coisa, é todas as coisas. Mas só o é por haver quem - por haver um sujeito - a exercê-la, sem o qual é nada.

A fé é a prova de estarmos, desde sempre e enquanto durarmos, ligados com as coisas, ligados nas coisas. É desejo, vontade, indução; é o passo que darei a seguir sem qualquer garantia, mas com a certeza plena de que o darei. Em sua audácia a fé tem mesmo um objeto último, extremo, mas do qual possuímos, quando muito, um nome, Deus, e uns poucos atributos óbvios, embora paradoxais. E de pouco nos servem tais elementos: por certo de estímulos para o exercício mais vigoroso, mais entusiástico, da continuada e imperiosa fé; jamais como justificativas para o antagonismo que o arrebanhamento de homens em torno a cleros distintos costuma suscitar, menos ainda para promover a servidão. A fé nos constitui igualmente, pelo que somos livres e fraternos. É o que viemos descobrindo, ao passar das eras, a despeito da massa ainda orientando sua fé para os objetos impostos por conventículos cujo fito não é outro senão mantê-la submissa. A passos módicos, nada obstante, evolvemos, e prova-o o modo como findamos por designar tal objeto maior possível à fé, objeto indivisável por inteiro, mas perpetuamente descortinando-se aos nossos sentidos, mesmo os mais recônditos: Deus, atributo de gênero antes que nome de espécime.

O Cristo ideal, dizia, satisfar-se-ia com entendermos apenas isto: é impossível 'desligar-nos', não havendo necessidade, por conseguinte, de religamento; só se desligam os decedidos, pois em seus corpos não mais habita a fé, isto que nos mantém aderidos ao mundo; por conseguinte, somos feitos de fé, por cujo intermédio tudo é possível conceber, nada excedendo, embora, a idéia de Deus, cuja propriedade é a de constituir-se enquanto fé houver, enquanto vivo se for. E uma vez aprendida lição assim singela, que tome cada um o seu caminho no mundo, tratando de mantê-la, transmitindo-a às gerações vindouras, de modo que em pouco sejam esquecidos todos quanto fizeram e ainda fazem da fé instrumento de servidão.

Rio, 15 de maio de 2007

Waldemar Reis

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