Dada a convivência conosco, ao que tudo indica, voluntária, é de supor que cães e gatos devem seguir-nos e, talvez num período muito curto, atingir grau semelhante na corrida evolutiva. Decerto nos estudam e, cada qual ao seu modo, criam pacientemente as condições de suas escaladas: é suficiente observar-lhes as escolhas, dentre tudo quanto lhes oferecemos, para o concluirmos.
Nem os símios, apontados pela genética como nossos primos e, devido à semelhança orgânica, mais dotados para imitar-nos o comportamento, parecem interessados no que insistentemente tentamos ensinar-lhes, demonstrando preferência pela vida silvestre. Talvez as condições de seu aprendizado, o mais das vezes estabelecidas com a objetividade dos profissionais da ciência e na frieza dos laboratórios, estejam longe das ideais.
De outro lado, não sendo também menos vítimas do experimentalismo científico, os nossos estimados bichos domésticos desfrutam de pedagogias mais amenas, a começar pelas 'salas de aula', instaladas nas próprias habitações de seus instrutores. Em resposta, não obstante lhes dedicarmos cuidados quase idênticos, obstinam-se cânidas e felídeos em desenvolver hábitos radicalmente distintos.
Já tive convivência estreita com uns e outros, alternadamente, em diversos períodos de minha vida, quando morei em casas com espaço bastante para que exercessem suas idiossincrasias. Bem conheço, portanto, os paradoxos da afeição excessiva dos totós e da circunspeta indiferença dos bichanos, mas só ontem, cruzando num intervalo de meia hora o poodle e um sedentário gato bicolor de dois vizinhos, dei-me conta disso ao tempo em que era atravessado pela suspeita de cumprirem as duas espécies projeto milenar de aproximação e apropriação de tudo quanto humanos vimos construindo, cada qual, entretanto, consoante objetivo exclusivo.
A efusiva receptividade do cãozinho ao me ver, irrefreável - a despeito da coleira e dos ciúmes do dono - e não menos inconveniente, enlameando-me a roupa, contrastava com o obeso desinteresse do felino pela aproximação da minha mão previamente banhada, digo, livre de odores indesejáveis, mal se dignando a me dirigir o focinho e, sem alterar o passo lerdo e leve, seguir seu caminho. Tendo em conta a notável comunicação das duas espécies com a nossa, bem como a progressiva adaptação de ambas a costumes e habilidades tidos antes como exclusivamente humanos (banhos, tosas, perfumes, shampoos, alimentos processados, manejo de alguns instrumentos como portas, botões etc), concluí que esses bichinhos evoluem na nossa esteira e por opção própria - ou já teriam ganho mundo faz tempo! Mas haverá ao menos uma diferença fundamental entre as possíveis civilizações futuras de cães e gatos: os primeiros, pelo jeito, seguirão à risca o padrão que lhes ensinamos, enquanto os outros certamente não incorrerão nos mesmos erros.
Waldemar M. Reis
Rio, 10 de maio de 2005
Nem os símios, apontados pela genética como nossos primos e, devido à semelhança orgânica, mais dotados para imitar-nos o comportamento, parecem interessados no que insistentemente tentamos ensinar-lhes, demonstrando preferência pela vida silvestre. Talvez as condições de seu aprendizado, o mais das vezes estabelecidas com a objetividade dos profissionais da ciência e na frieza dos laboratórios, estejam longe das ideais.
De outro lado, não sendo também menos vítimas do experimentalismo científico, os nossos estimados bichos domésticos desfrutam de pedagogias mais amenas, a começar pelas 'salas de aula', instaladas nas próprias habitações de seus instrutores. Em resposta, não obstante lhes dedicarmos cuidados quase idênticos, obstinam-se cânidas e felídeos em desenvolver hábitos radicalmente distintos.
Já tive convivência estreita com uns e outros, alternadamente, em diversos períodos de minha vida, quando morei em casas com espaço bastante para que exercessem suas idiossincrasias. Bem conheço, portanto, os paradoxos da afeição excessiva dos totós e da circunspeta indiferença dos bichanos, mas só ontem, cruzando num intervalo de meia hora o poodle e um sedentário gato bicolor de dois vizinhos, dei-me conta disso ao tempo em que era atravessado pela suspeita de cumprirem as duas espécies projeto milenar de aproximação e apropriação de tudo quanto humanos vimos construindo, cada qual, entretanto, consoante objetivo exclusivo.
A efusiva receptividade do cãozinho ao me ver, irrefreável - a despeito da coleira e dos ciúmes do dono - e não menos inconveniente, enlameando-me a roupa, contrastava com o obeso desinteresse do felino pela aproximação da minha mão previamente banhada, digo, livre de odores indesejáveis, mal se dignando a me dirigir o focinho e, sem alterar o passo lerdo e leve, seguir seu caminho. Tendo em conta a notável comunicação das duas espécies com a nossa, bem como a progressiva adaptação de ambas a costumes e habilidades tidos antes como exclusivamente humanos (banhos, tosas, perfumes, shampoos, alimentos processados, manejo de alguns instrumentos como portas, botões etc), concluí que esses bichinhos evoluem na nossa esteira e por opção própria - ou já teriam ganho mundo faz tempo! Mas haverá ao menos uma diferença fundamental entre as possíveis civilizações futuras de cães e gatos: os primeiros, pelo jeito, seguirão à risca o padrão que lhes ensinamos, enquanto os outros certamente não incorrerão nos mesmos erros.
Waldemar M. Reis
Rio, 10 de maio de 2005