sábado, abril 30, 2016

Esboço de crítica estóica à moral neoliberal

É preciso continuar lembrando aos picados, entre outras, pela ideia de liberdade assim como a manipula a doutrina neoliberal, que o poder de escolha, indício maior - segundo esses ideólogos - de ser livre quem o tem, denota ignorância, talvez a mais profunda e elementar. E isto por uma simples razão: se o indivíduo de fato sabe o que é certo, inequivocamente certo, é evidente que não tem escolha e, em consequência, não há liberdade alguma nesse sentido, o pregado pelo neoliberalismo.

Insisto no meu exemplo batido, o do mate em três diante do qual estariam o diletante e o mestre enxadrista: o primeiro tem boas chances de desperdiçar a oportunidade por ver na disposição das peças apenas profusão de movimentos a serem escolhidos, enquanto o outro não poderá evitar de mover a peça que desencadeará o mate inevitável, salvo entenda haver proveito em empatar ou perder a partida. Um se encanta com as possibilidades de ação à sua escolha, o outro só enxerga um movimento porque tem em vista o melhor na circunstância e sabe não haver outra coisa a fazer nela; um sabe, o outro ignora e pode malversar a oportunidade - e principalmente contra si. Em suma, nestes termos ‘liberdade (de escolha’ - é claro) denota apenas ignorância daquilo cujo resultado o torna incontornável, sem rivais, sem alternativas, o que não acarreta proscrevê-la, pois é evidente que ela sempre existirá enquanto o indivíduo não conhecer o que não tem alternativas, o que também não implica, por sua vez, tê-la por algum tipo de vantagem, por algo de que se possa vangloriar-se por se estar à sua mercê: ao contrário.

Mas, excluídas situações especiais ou extremas, quase nunca a circunstância determina como sendo a melhor a solução resultando em ganhador e perdedor, como é próprio de jogos como o xadrez e muito frequentemente, segundo os neoliberais, do chamado 'mercado', havendo inclusive alguma teoria sugerindo ser mais adequada a saída pela colaboração, seja qual for.a disputa: no go, por exemplo, o grande mestre ê reconhecível por privilegiar essa linha de ação colaborativa, a qual se reflete na configuração final do tabuleiro, de inegável excelência em termos estéticos - uma partida desse jogo que resulte em disposição desarmônica de peças deixou patente ter sido violenta, terem os contendores visado a vitória crua antes que o jogo, antes que sua beleza e prazer.

Não sendo sempre contornáveis as situações de ganho e perda, parece ser, pois, evidentemente desnecessário que sem motivos claros se as enfatize, provoque, desencadeie e, menos ainda, que se as torne em motivo de regozijo, como parece ensinar o privilégio do estético no jogo do go. É preciso lembrar que em fim de contas somos todos favas contadas na batalha de que nenhum de nós tem sido capaz de desertar, a batalha por manter-se vivo, em que dia a mais, dia a menos, estaremos sem exceção derrotados - e da lógica que esse destino determina talvez só escape o suicida, evidentemente por ter mudado de lado nessa guerra. E em vista de desfecho assim universal e inevitável parece pouco perspicaz tirar dele outro proveito senão a compaixão, termo que em seu sentido estrito descreve tão-só a constatação de estarmos todos na mesma balsa montada com os destroços dum naufrágio que não vimos, não percebemos e em que quiçá sequer estivemos, a despeito de sem dúvida sermos seus náufragos e de não haver terra à vista no horizonte oceânico.

Ao postular indevidamente como 'liberdade' o poder de escolher do indivíduo inebriado com a profusão de possibilidades sobre as quais exercê-lo e sem estar previamente advertido do dever de manter sob constantes revisões os critérios orientando sua escolha caso esteja entre suas preocupações prevenir desastres, o neoliberalismo escancara porta já perigosamente aberta para o egoísmo, essa que antes dá no atoleiro em que são retidos os de cepa menos resistente: aí chafurda quem tende a fazer do drama da balsa de náufragos a tragédia duma ‘balsa da Medusa’. Porque em essência o egoísmo não passa da manifestação numa consciência da propriedade do ser que propicia a individuação, que permite à consciêcia conhecer e reconhecer as individualidades e o quanto as sustenta, não lhe aparecendo o mundo, por isso, como massa indiscernível - e em que é de supor incogitável ser capaz de sobreviver. O egoísmo é a teoria de si que produz cada consciência no afã de subsistir, de permanecer (no tempo, portanto), consistindo então em instrumento antes de em arma. E é exclusivamente o conhecimento sempre mais aprofundado do que proporciona à consciência a sobrevida o fator a garantir ao egoísmo a condição instrumental - é somente na medida do entendimento de que se existe numa rede de proporções inestimáveis cujos membros têm todos papel crucial na existência ou permanência de cada um dos demais e a despeito de certas consequências nem sempre aceitas sem contragosto, como a inevitabilidade do morrer, e que em aparência alteram em nada a justeza desse entretecimento de individualidades. O egoísmo instrumental confere ao indivíduo consciente a capacidade de reconhecer tudo mais como partes imprescindíveis de si mesmo: continua ‘amor-próprio’, sim, mas de abrangência universal.

Daí ser fácil de ver por que ao invés de objeto do domínio que se chamou ‘transcendente’ (se ideia de tal é sequer pensável), ou o reino do chamado ‘místico’, a compaixão é, ao invés, matéria do imanente, o reino do que se denomina ‘humanístico’, ‘ético’, ‘político’ etc: o ‘compartilhamento do mesmo páthos’ não pode ser ato ocasional, intermitente, sem que se denote dessa infrequência ignorância grosseira, sem que se negue sua condição de dever de conceder direitos a quem de direito for e sem que se o transforme em coisas como a ‘caridade' assim como o senso comum a compreende. Introduzir nesse contexto a ideia de escolha, então, não é senão submeter-se ao barbarismo de cogitar haver alternativa ao egoísmo instrumental de viés universalista, de cogitar de o contrário dele trazer algum proveito para quem ou o que seja.

Se definível de modo sério ou que a torne em conceito relevante, a liberdade o seria, ainda que de forma tíbia, como a desincumbência de dever cumprido, definição um tanto inquietante na medida em que confere ao dever conotação negativa de estorvo, entrave, o que de necessidade não é. Vê-se portanto que em sua acepção forte ‘liberdade’ só pode traduzir o desvencilhamento do quanto estorva, entrava, só pode referir a supressão do que escraviza. Assim o entendeu um dos mais admiráveis pensadores e um dos meus preferidos, o estóico Epicteto, que foi inclusive escravo na Roma Imperial do primeiro século desta era, sendo só por isso credível tratar-se de autoridade na matéria, não bastasse o cabedal do estoicismo de que foi herdeiro.

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