A nova ortografia reserva o hífen, no caso desse prefixo, apenas para quando o termo que o segue inicia por 'h', mas o propósito aqui é outro, que não desafiar a recente e malfadada norma culta da língua e, a bem da verdade, inteiramente singelo, autoevidente: enfatizar, deixando claro seu protagonismo, o prefixo, prevenindo a hipótese de a má digitação (maneira corrente e privilegiada de denotar esse dever de parecermos espontâneos nas redes sociais) ter privado o termo de - por exemplo - um 'n'. Sob o peso de semelhante incerteza, o trocadilho não resultaria no intencionado, embora não seja de desprezar, em meio às tantas possíveis no presente contexto, a ideia de ainda estarmos sendo 'convidados' - antes de 'compulsados' - a adotar esse modo de vida que, se caminho para certo morrer, como qualquer outro, decerto o é para um comum, um morrer coletivo e, é provável, de fome, caso o tédio não dê antes o seu serviço.
Mas não há negar que, designada como está, 'co-vida' é puro eufemismo, porque a vida com a qual vai, com a qual faz par, é agora de natureza puramente ficta, a ser vista passar, fantasmal, hipotética, da janela que mantemos aberta para o imaginário, embora não menos conducente, também, a um morrer único - ou unificado - do que o é a vida corrente, a co-vida, que da outra nos salva : há uma analogia com aquela charge do velho semanário 'O Cruzeiro', em que a solução para impedir a cama elástica de devolver a vítima do incêndio ao local donde saltara foi, moral da história, "abatê-la a tiros". Algo deveras humanístico, há-de reconhecer-se, tem a sinistra ingenuidade desse humor, sintetizado no inevitável clichê "dos males, o menor" - ou, no caso, o mais rápido, detalhe dissonando do que seria de esperar de esperar-se sentado por uma de duas mortes certas.
De que, então, de tão terrível escapamos com aquiescer em co-viver? Qual sofrimento faria preferir morrer-se, antes, de melancolia ou inanição? A julgar do que se diz da pandemia desde sua infância, é muito provável a humanidade haver enfim deparado o coquetel do que a tem matado desde sempre, à exceção dos desastres, naturalmente, e do gênero sombrio e comum de fim preconizado, agora também, na co-vida. O currículo de acometimentos atribuído a essa moléstia parece esgotar os polpudos tratados da patologia disponível e, respondesse o organismo humano com infinitas expressões a seus agressores, estaríamos já cunhando neologismos para nomear a inusitada sintomatologia, o que mais cedo ou mais tarde terminaremos mesmo por fazer, haja ver a emegência de incontáveis combinações do modesto conjunto de sinais somáticos e sua potencialização pelo que possa lhes estar ao redor: sem esgotar, evidentemente, a lista, considere-se o que a genética teria emprestado do HIV ao vírus, seu disfarce de inocente resfriado conducente a colapsos respiratórios variados, as dores que o assemelham à dengue ou chikungunya, os súbitos infartos e apoplexias, os males dos rins, tonteiras e perdas do tino, os desarranjos digestivos, coceiras, eczemas, a cumplicidade com as torres de transmissão eletromagnética de dados, a subversão dos respiradores artificiais, as influências da mínima atividade por que passa o Sol, da ressonância de Schumann e da mudança do clima, para não falar do ecossistema - de espaços fechados com gente apinhada e ar permanentemente refrigerado - construído pelo capitalismo com o fim exclusivo de amealhar com eficiência o lucro e que maximiza o virtuosismo de seu contágio.
O cosmologista Neil DeGrasse Tyson afirmou há coisa de dois meses, em programa de auditório, que compulsória e involuntariamente nos tornáramos parte de experimento de âmbito mundial cuja meta seria investigar o quanto confia na chamada ciência a humanidade e cujo resultado, em vista do tema impenetrável, se restringirá a um de dois graus possíveis e extremos: total - e cega - ou nenhuma. A co-vida tem sido até agora o que de mais consistente nos tem ela, ciência, oferecido quando é caso de mal contagioso e que, reconheçamos, não excede o que há milênios se tem aprendido das avós, enquanto soluções milagreiras, incluindo as vacinas, ganham e perdem apoio, inclusive no seleto meio científico, com a presteza com que deveríamos trocar de máscaras - como sugerido por alguns. Nada obstante, em termos de eficácia , a co-vida parece ter a mesma dos estados de sítio mantidos até esgotar-se a paciência dos sitiantes, nada pequena, por sinal, para organismo assim diminuto, infinita, se comparável à de nós, sitiados, tornada ainda menor pelo exercício compulsório da tolerância recíproca dos que imediatamente convivem num mesmo espaço de confinamento ou, quando se está só, de si próprio: não admira, pois, que tantos venham escolhendo retornar à normalidade antiga e, agora, tão nova da vida, a despeito da certeza nebulosa de seus riscos.