Vi a matéria, primeiro, no 'Monde', mas percebi que a notícia saíra também em outros jornais estrangeiros como o N. Y. Times e em ao menos um brasileiro. Para entender semelhante repercussão é preciso considerar dois fatores: a ausência de novidade mais significativa no último número do The Aamerican Heart Journal - referência americana no assunto (e fonte privilegiada de reportagens que consolam e aturdem a massa de hipocondríacos em que nos transformamos a cada dia) - e a oportunidade de protesto contra os cerca de dois milhões e meio de dólares gastos numa pesquisa de premissas de duvidosa relevância no cenário contemporâneo da medicina.
Só desse modo entendo a razão de os noticiosos tratarem com certo destaque uma investigação científica cuja conclusão sugere ser nociva a prece: assim seduz o título da matéria. Indo mais adiante, percebe-se que a reza má seria não toda nem qualquer uma, mas aquela enfocada no experimento, a endereçada aos doentes, especialmente àqueles em processo ou em esperança de cura e que sabem da antemão estar alguém pedindo aos santos por si. Até aqui, nada mais espantoso e nada mais natural: espanta, em primeiro lugar, que se tenham submetido seres humanos reais a tal investigação; depois, parece verossímil a ocorrência de piora e até de morte quando um enfermo se dá conta de o seu estado ser grave o bastante para reclamar o uso de instrumento vulgarmente conhecido pelo seu emprego em momentos de desespero. Não esqueço um agravante dando toque negro ao inequívoco espírito mordaz da investigação: todos os voluntários eram cardíacos na iminência de intervenção cirúrgica.
Trata-se, como é visível, de uma experiência pertencente mais ao domínio da psicologia do que ao da medicina propriamente dita, muito embora seja notória a intrînseca dependência das duas ciências. Dos três grupos de voluntários envolvidos obteve os piores resultados somente aquele cujos pacientes souberam que seriam de fato objetos de prece, equivalendo-se os resultados dos outros dois. Destes, apenas um não recebeu efetivamente os duvidosos préstimos da oração, embora todos os pacientes de ambos soubessem da possibilidade de serem rezados. À guisa de conclusão parcial pode-se dizer que a incerteza de ser alvo de prece é melhor do que a certeza, ou ao menos é tão boa quanto não o ser (pois não se orou pelos doentes de um dos grupos).
Custo, escopo, cobaias: fosse isto insuficiente, o jornal francês conclui informando que o patrocínio veio de uma fundação religiosa, a John-Templeton! Verdadeiro tiro no próprio pé? Ou a John-Templeton, suspeitando da eficácia desse serviço tão antigo quanto a civilização, o da oração pelos enfermos, estaria financiando sua extinção? Antes tarde do que nunca: as preces foram ditas por comunidades cristâs. E, para finalizar, um atenuante: as mortes foram percentualmente iguais em todos os grupos.
Assim, em vista do modo como se procedeu à pesquisa, se não é possível afirmar a absoluta nocividade da prece, pois ela não se provou mortal, reafirma-se a observação, desde sempre parte do senso comum, de que a sua necessidade indica o esgotamanto dos meios ditos meramente humanos na solução de um problema e, conseqüentemente, situação desesperadora, informação esta danosa para quem é questão a saúde, em especial a cardíaca.
Mas não foi este o único golpe sofrido hoje pela religião: um outro diz mais diretamente respeito à fé cristã. Refiro o anúncio, em virtualmente todos os jornais do planeta, do completo restauro e tradução do Evangelho de Judas, texto do primeiro cristianismo, de que já se tinha notícia pela menção no Contra os Hereges de Irineu de Lyon. Um Jesus sarcástico emerge dos diálogos no Evangelho, pronto a gargalhar em face das dúvidas e questões dos apóstolos, capaz de estimular-lhes a raiva e eleger Judas como o obreiro maior de sua própria paixão, desse modo oferecendo-lhe o conhecimento do "mistério da traição" (segundo expressão do próprio Irineu).
Se histórica ou não, a circunstância é certamente decorrência natural da consabida presciência do Cristo no que respeita a própria sina: seria 'traído', imolado e ressucitaria, para tanto havendo necessidade de 'traidor' e imolador, sem os quais os mistérios da crucifixão, da morte e da ressurreição nos seriam ignorados. O sacrifício no Calvário e a subseqüente redenção da humanidade seriam impossíveis sem um 'lado podre' a cumprir o seu papel, tornando-se este, por isso mesmo, agente do bem, ou melhor, do bem maior. E alguma voz, ao menos por uma questão de coerência, haveria de levantar-se sobre o problema ainda cedo na formação da cristandade, o caso do Evangelho de Judas. Ecos seus se escutam no século XX, na obra de Borges, que usou do tema e de variações em alguns contos e ensaios.
O leitor atilado decerto já percebeu que a predestinação de Judas para a maldade, assim coadjuvando um bem tido e havido como supremo, é variante de outro problema, clássco desde o judaísmo, o da onisciência divina em face do mal. A sua solução mais difundida alega o livre arbítrio, supostamente dado a nós por Deus, pelo qual estaríamos habilitados a seguir tanto a virtude quanto o vício. Mas, como é sabido, a própria noção de onisciência acarreta a anulação dessa outra, a do livre arbítrio, agravando-se desse modo a questão: se nos indigna saber que Ele conhece com antecedência o advento do que nos aflige, o mal, e não o evita, sendo Todo-poderoso, o que dizer de Sua passividade em face do conhecimento prévio de nossas más escolhas?
Enquanto a idéia de Deus não se reconciliar com a de mal, suponho, a pergunta acima permanecerá sem resposta. No entanto, o próprio Demiurgo apõe às Escrituras de Seus profetas breves pistas de Sua natureza inconcebível, uma das quais encontrei coligida pela Loucura no elogio que lhe dedicou Erasmo de Roterdam: decreta Ele, em Isaías, que confundirá a sabedoria dos sábios e reprovará a prudência dos prudentes, donde se conclui que jamais Se fará conhecer e que o Seu eleito é o imprudente, o parvo. Da cita a erasmiana Moria retira, segundo sua natureza, naturalmente, as mais encantadoras lições. Os episódios da tentação de Adão e da torre de Babel sugerem o mesmo: em ambos fica a lição de o conhecimento da Verdade ser-nos impossível, todo esforço nessa direção passível de castigos como a expulsão do Paraíso ou a incompreensão recíproca dos homens e a diáspora. Não foi casualmente que um cristianismo mais rasteiro fez do néscio o fiel típico, exemplo de uma almejada fé espontânea, aparecida sem o concurso do intelecto. Hordas de santos e doutores da igreja concordaram em que somos e seremos sempre ineptos diante da possibilidade de conceber o Criador, caso de Douta Ignorância de Nicolau de Cusa. O Evangelho de Judas não deixa de iterar a fórmula, num diálogo em que Jesus diz aos discípulos: "Como me conheceis? Em verdade, eu digo, geração alguma do povo em meio a vós conhecer-me-á."
É possível traçar um perfil teológico da humanidade usando o problema como eixo: em torno a ele dividimo-nos entre aqueles que crêem a despeito das adversidades da fé - grupo compreendendo os que tomam a si próprios por ignorantes de Deus - e aqueles revoltosos, na verdade mais pios do que os primeiros, pois preservam tão ciosamente a idéia de Deus associado irreversivelmente ao bem que mais justo lhes parece renunciar a essa idéia mesma a ter de admitir Deus como fonte ou veículo do mal. Sob esse prisma o ateísmo seria a mais radical manifestação do teísmo.
A dimensão paradoxal da fé cristã mereceu tantas análises quanto é possível à questão. O teólogo e filósofo Kierkegaard ensaia a sua na forma de extensa meditação sobre a passagem em que Abraão é intimado a sacrificar Isaac: ali defende a condição privilegiada do Pai da Fé relativamente à dimensão ética (ou moral), à qual fere com o seu silêncio ao longo do preparo para a imolação e do percurso até o local onde ela se daria, ou seja, o fato de Abraão ter como lastro uma solicitação divina o isentaria das obrigações éticas e morais, como o prestar contas de seus atos ao menos aos membros mais próximos da comunidade, familiares e amigos, e mesmo das obrigações estéticas, como o desafogo de sua angústia; pois a instrução divina o poria em 'relação absoluta com o absoluto', acima, portanto, do quanto diz respeito ao mundo inteligível, ou o 'geral', segundo a terminologia do filósofo. Já Nicolau de Cusa leva o debate para o âmbito da epistemologia, justificando nossa ignorância da natureza divina na evidente incomensurabilidade do nosso pensamento, finito, e da infinitude de Deus. No século XVII Jacob Boehme pintará uma cosmologia panteísta na qual um vórtice centrífugo - ali chamado, entre outros nomes, de Vontade - aparta-se de outro, centrípeto, ou Desejo, também alcunhando o primeiro de Manifestação ou Deus e o segundo de 'sem-fundo' e Inferno, mas eventualmente denominando o conjunto inteiro como Deus, donde se infere que, para o filósofo, Este não só proviria do mal como também o incluiria em sua natureza: na cosmogonia bohemiana Deus escaparia de si próprio, enquanto Desejo, fazendo-se Vontade e originando assim o mundo, modelo este de universo, segundo pondero, um dos melhor concebidos.
Em dias atuais o aparecimento de notícias como essas é sugestivo: de um lado, um experimento estatístico, como de hábito o são os da ciência, demonstra de forma algo complicada o óbvio (é desagradável saber-se desenganado a ponto de necessitar da oração, que se mostra, entretanto, inteiramente inútil de acordo os dados da pesquisa); doutro, um Evangelho gnóstico lembra-nos de noção não menos conhecida de nossa intuição, exortando-nos a reconsiderar o mal num enredo que acreditamos protagonizado pelo bem e a nossa inamovível ignorância quanto à Verdade de Deus, pouco importa o quão sábios sejamos!
Desnecessário é listar o quanto em nosso tempo se põe como campo onde fertilizar a certeza gnóstica de não vivermos num mundo bom: para conhecê-lo é suficiente continuar folheando as seções de política e economia dos jornais ou freqüentar cultos religiosos. A visão da atualidade é porventura o melhor retrato já produzido do mundo abastardado dos gnósticos, onde efetivamente vivemos, mundo originado em erro cuja causa é o desejo de saber, Sophia, resultando em seu húbris desenfreado e, não obstante, permanentemente contrário às aspirações do homem. Mas como o saber não produz senão a si próprio, sendo apenas potencial para a produção dos demais artefatos, é um artesão, o Demiurgo, quem cria a materialidade, essa espécie de imitação de Pleroma, nome do universo do Deus primordial. Isto feito, proclama-se o Demiurgo, nesse seu novo e falso reino, o único Deus existente. Cristo, ou a salvação, segundo o evangelhista, adviria não deste, mas daquele universo primordial para auxiliar-nos, por compaixão, em nossa emigração para o lugar de origem, o lugar do sumo bem.
Intentando instaurar o cristianismo como religião autônoma, muitos dos primeiros teólogos da nova seita buscaram distanciá-lo do judaísmo e mesmo opô-lo a este. Para tanto descartaram de saída o Antigo Testamento, partindo dos Evangelhos canônicos, desvenvolvendo, inclusive, traços do que a partir do século XIX se chamaria anti-semitismo: o Deus desse Éon - ou nosso universo - é o Deus de Israel (assim pregava Basilides, filósofo e teólogo do segundo século da era cristã), divindade esta favorável, portanto, a tudo quanto diz respeito a esse povo e à sua terra e causadora de toda sorte de entraves a todos os envolvidos com as questões judaicas, muito embora não poupando eventualmente nem os próprios judeus. As exegeses de vários desses primeiros cristãos, muitas vezes conduzindo a hipéboles intoleráveis ao espírito religioso da época, foram acusadas de heresia e convenientemente banidas dos ensinamentos usuais, embora hajam contribuído significativamente com estes, ao menos no apontar-lhes certas inconsistências.
Enfim, o gnosticismo parece ter sido espécie de guardião da coerência para o cristianismo nascente, prevenindo sua imobilização, comum a toda nova crença, num pietismo leigo, promovendo o seu elo com as principais correntes de pensamento vigentes à época, como platonismo e estoicismo. Procurou mostrar aos novos crentes a inexistência de garantias da intrínseca bondade do mundo nos escritos judaicos e, extirpando o Messias dessa tradição, dava-lhes a noção e a esperança do bem verdadeiro, assim como o entendia o mundo helênico.
O cristão futuro, entretanto, escolheria a via da omissão ou da hipocrisia. E se hoje dizemos habitar um mundo erigido segundo preceitos de linhagem judaico-cristã, tal afirmação desvela-nos uma realidade onde o mal, tão ciosamente escondido ou providencialmente desdenhado ao longo de milênios, mostra-se agora explícito e apadrinhado por justificativas morais, éticas e mesmo lógicas que a filosofia ainda não soube conciliar. Pessoalmente, não creio que, desse ponto de vista, algum dia haja sido muito diferente a realidade: o mal sempre se exerceu sobre o quinhão que lhe cabe.
Há, entretanto, uma particularidade deste nosso momento, em pleno 2006: já não concebemos salvação! Não, ao menos, aquela arquitetada no gnosticismo. Não somos mais engenhosos e ingênuos o bastante para tecer a solução do insolúvel: o habitarmos um mundo diverso do que desejamos, consolando-nos com a idéia de outro melhor anunciado pelo seu messias. Pois a salvação do gnóstico está dentro de si, na certeza de existir o lugar ideal, compatível com os seus anseios, a qual é, como a Idéia platônica, espécie de marca de proveniência ou de origem atestando o seu pertencimento primeiro a esse lugar, Pleroma, onde está o verdadeiro Deus, em verdade espaço emanado de Si. Do nosso lado, não conseguimos reconhecer em nós qualquer idealidade por que nutrir esperanças, pois talvez já nutramos incomensurável paixão por este mundo que criamos, mundo de certos confortos, mas também de finanças, de política, religiões (ainda!) e o que tudo isto implica, assim não vislumbrando alternativa melhor ao que já nos é oferecido e prometido: nosso paraíso é o aqui e o agora, o qual, por discrepar do que verdadeiramente desejamos, é também nosso inferno.
Conjugados na imprensa às catástrofes e aos crimes, os dois achados da ciência assumem nota sombria. Rezar é tanto inútil quanto daninho, enquanto o mundo permanece o mesmo, aqui, diante de nós, adverso, intolerante, inclemente, sem esperanças em si. Quanto à marca distintiva fazendo de nós - e de boa parte dos seres vivos! - entes direcionados para o autèntico bem (bem ausente, não obstante, de onde habitamos), dela é possível afirmar-se, com incerta ironia, que, se de fato a possuímos todos, seria isto a melhor prova de que não faltam ao Inferno, de fato, as boas intenções.
Rio, 06/04/06
Waldemar M. Reis
Só desse modo entendo a razão de os noticiosos tratarem com certo destaque uma investigação científica cuja conclusão sugere ser nociva a prece: assim seduz o título da matéria. Indo mais adiante, percebe-se que a reza má seria não toda nem qualquer uma, mas aquela enfocada no experimento, a endereçada aos doentes, especialmente àqueles em processo ou em esperança de cura e que sabem da antemão estar alguém pedindo aos santos por si. Até aqui, nada mais espantoso e nada mais natural: espanta, em primeiro lugar, que se tenham submetido seres humanos reais a tal investigação; depois, parece verossímil a ocorrência de piora e até de morte quando um enfermo se dá conta de o seu estado ser grave o bastante para reclamar o uso de instrumento vulgarmente conhecido pelo seu emprego em momentos de desespero. Não esqueço um agravante dando toque negro ao inequívoco espírito mordaz da investigação: todos os voluntários eram cardíacos na iminência de intervenção cirúrgica.
Trata-se, como é visível, de uma experiência pertencente mais ao domínio da psicologia do que ao da medicina propriamente dita, muito embora seja notória a intrînseca dependência das duas ciências. Dos três grupos de voluntários envolvidos obteve os piores resultados somente aquele cujos pacientes souberam que seriam de fato objetos de prece, equivalendo-se os resultados dos outros dois. Destes, apenas um não recebeu efetivamente os duvidosos préstimos da oração, embora todos os pacientes de ambos soubessem da possibilidade de serem rezados. À guisa de conclusão parcial pode-se dizer que a incerteza de ser alvo de prece é melhor do que a certeza, ou ao menos é tão boa quanto não o ser (pois não se orou pelos doentes de um dos grupos).
Custo, escopo, cobaias: fosse isto insuficiente, o jornal francês conclui informando que o patrocínio veio de uma fundação religiosa, a John-Templeton! Verdadeiro tiro no próprio pé? Ou a John-Templeton, suspeitando da eficácia desse serviço tão antigo quanto a civilização, o da oração pelos enfermos, estaria financiando sua extinção? Antes tarde do que nunca: as preces foram ditas por comunidades cristâs. E, para finalizar, um atenuante: as mortes foram percentualmente iguais em todos os grupos.
Assim, em vista do modo como se procedeu à pesquisa, se não é possível afirmar a absoluta nocividade da prece, pois ela não se provou mortal, reafirma-se a observação, desde sempre parte do senso comum, de que a sua necessidade indica o esgotamanto dos meios ditos meramente humanos na solução de um problema e, conseqüentemente, situação desesperadora, informação esta danosa para quem é questão a saúde, em especial a cardíaca.
Mas não foi este o único golpe sofrido hoje pela religião: um outro diz mais diretamente respeito à fé cristã. Refiro o anúncio, em virtualmente todos os jornais do planeta, do completo restauro e tradução do Evangelho de Judas, texto do primeiro cristianismo, de que já se tinha notícia pela menção no Contra os Hereges de Irineu de Lyon. Um Jesus sarcástico emerge dos diálogos no Evangelho, pronto a gargalhar em face das dúvidas e questões dos apóstolos, capaz de estimular-lhes a raiva e eleger Judas como o obreiro maior de sua própria paixão, desse modo oferecendo-lhe o conhecimento do "mistério da traição" (segundo expressão do próprio Irineu).
Se histórica ou não, a circunstância é certamente decorrência natural da consabida presciência do Cristo no que respeita a própria sina: seria 'traído', imolado e ressucitaria, para tanto havendo necessidade de 'traidor' e imolador, sem os quais os mistérios da crucifixão, da morte e da ressurreição nos seriam ignorados. O sacrifício no Calvário e a subseqüente redenção da humanidade seriam impossíveis sem um 'lado podre' a cumprir o seu papel, tornando-se este, por isso mesmo, agente do bem, ou melhor, do bem maior. E alguma voz, ao menos por uma questão de coerência, haveria de levantar-se sobre o problema ainda cedo na formação da cristandade, o caso do Evangelho de Judas. Ecos seus se escutam no século XX, na obra de Borges, que usou do tema e de variações em alguns contos e ensaios.
O leitor atilado decerto já percebeu que a predestinação de Judas para a maldade, assim coadjuvando um bem tido e havido como supremo, é variante de outro problema, clássco desde o judaísmo, o da onisciência divina em face do mal. A sua solução mais difundida alega o livre arbítrio, supostamente dado a nós por Deus, pelo qual estaríamos habilitados a seguir tanto a virtude quanto o vício. Mas, como é sabido, a própria noção de onisciência acarreta a anulação dessa outra, a do livre arbítrio, agravando-se desse modo a questão: se nos indigna saber que Ele conhece com antecedência o advento do que nos aflige, o mal, e não o evita, sendo Todo-poderoso, o que dizer de Sua passividade em face do conhecimento prévio de nossas más escolhas?
Enquanto a idéia de Deus não se reconciliar com a de mal, suponho, a pergunta acima permanecerá sem resposta. No entanto, o próprio Demiurgo apõe às Escrituras de Seus profetas breves pistas de Sua natureza inconcebível, uma das quais encontrei coligida pela Loucura no elogio que lhe dedicou Erasmo de Roterdam: decreta Ele, em Isaías, que confundirá a sabedoria dos sábios e reprovará a prudência dos prudentes, donde se conclui que jamais Se fará conhecer e que o Seu eleito é o imprudente, o parvo. Da cita a erasmiana Moria retira, segundo sua natureza, naturalmente, as mais encantadoras lições. Os episódios da tentação de Adão e da torre de Babel sugerem o mesmo: em ambos fica a lição de o conhecimento da Verdade ser-nos impossível, todo esforço nessa direção passível de castigos como a expulsão do Paraíso ou a incompreensão recíproca dos homens e a diáspora. Não foi casualmente que um cristianismo mais rasteiro fez do néscio o fiel típico, exemplo de uma almejada fé espontânea, aparecida sem o concurso do intelecto. Hordas de santos e doutores da igreja concordaram em que somos e seremos sempre ineptos diante da possibilidade de conceber o Criador, caso de Douta Ignorância de Nicolau de Cusa. O Evangelho de Judas não deixa de iterar a fórmula, num diálogo em que Jesus diz aos discípulos: "Como me conheceis? Em verdade, eu digo, geração alguma do povo em meio a vós conhecer-me-á."
É possível traçar um perfil teológico da humanidade usando o problema como eixo: em torno a ele dividimo-nos entre aqueles que crêem a despeito das adversidades da fé - grupo compreendendo os que tomam a si próprios por ignorantes de Deus - e aqueles revoltosos, na verdade mais pios do que os primeiros, pois preservam tão ciosamente a idéia de Deus associado irreversivelmente ao bem que mais justo lhes parece renunciar a essa idéia mesma a ter de admitir Deus como fonte ou veículo do mal. Sob esse prisma o ateísmo seria a mais radical manifestação do teísmo.
A dimensão paradoxal da fé cristã mereceu tantas análises quanto é possível à questão. O teólogo e filósofo Kierkegaard ensaia a sua na forma de extensa meditação sobre a passagem em que Abraão é intimado a sacrificar Isaac: ali defende a condição privilegiada do Pai da Fé relativamente à dimensão ética (ou moral), à qual fere com o seu silêncio ao longo do preparo para a imolação e do percurso até o local onde ela se daria, ou seja, o fato de Abraão ter como lastro uma solicitação divina o isentaria das obrigações éticas e morais, como o prestar contas de seus atos ao menos aos membros mais próximos da comunidade, familiares e amigos, e mesmo das obrigações estéticas, como o desafogo de sua angústia; pois a instrução divina o poria em 'relação absoluta com o absoluto', acima, portanto, do quanto diz respeito ao mundo inteligível, ou o 'geral', segundo a terminologia do filósofo. Já Nicolau de Cusa leva o debate para o âmbito da epistemologia, justificando nossa ignorância da natureza divina na evidente incomensurabilidade do nosso pensamento, finito, e da infinitude de Deus. No século XVII Jacob Boehme pintará uma cosmologia panteísta na qual um vórtice centrífugo - ali chamado, entre outros nomes, de Vontade - aparta-se de outro, centrípeto, ou Desejo, também alcunhando o primeiro de Manifestação ou Deus e o segundo de 'sem-fundo' e Inferno, mas eventualmente denominando o conjunto inteiro como Deus, donde se infere que, para o filósofo, Este não só proviria do mal como também o incluiria em sua natureza: na cosmogonia bohemiana Deus escaparia de si próprio, enquanto Desejo, fazendo-se Vontade e originando assim o mundo, modelo este de universo, segundo pondero, um dos melhor concebidos.
Em dias atuais o aparecimento de notícias como essas é sugestivo: de um lado, um experimento estatístico, como de hábito o são os da ciência, demonstra de forma algo complicada o óbvio (é desagradável saber-se desenganado a ponto de necessitar da oração, que se mostra, entretanto, inteiramente inútil de acordo os dados da pesquisa); doutro, um Evangelho gnóstico lembra-nos de noção não menos conhecida de nossa intuição, exortando-nos a reconsiderar o mal num enredo que acreditamos protagonizado pelo bem e a nossa inamovível ignorância quanto à Verdade de Deus, pouco importa o quão sábios sejamos!
Desnecessário é listar o quanto em nosso tempo se põe como campo onde fertilizar a certeza gnóstica de não vivermos num mundo bom: para conhecê-lo é suficiente continuar folheando as seções de política e economia dos jornais ou freqüentar cultos religiosos. A visão da atualidade é porventura o melhor retrato já produzido do mundo abastardado dos gnósticos, onde efetivamente vivemos, mundo originado em erro cuja causa é o desejo de saber, Sophia, resultando em seu húbris desenfreado e, não obstante, permanentemente contrário às aspirações do homem. Mas como o saber não produz senão a si próprio, sendo apenas potencial para a produção dos demais artefatos, é um artesão, o Demiurgo, quem cria a materialidade, essa espécie de imitação de Pleroma, nome do universo do Deus primordial. Isto feito, proclama-se o Demiurgo, nesse seu novo e falso reino, o único Deus existente. Cristo, ou a salvação, segundo o evangelhista, adviria não deste, mas daquele universo primordial para auxiliar-nos, por compaixão, em nossa emigração para o lugar de origem, o lugar do sumo bem.
Intentando instaurar o cristianismo como religião autônoma, muitos dos primeiros teólogos da nova seita buscaram distanciá-lo do judaísmo e mesmo opô-lo a este. Para tanto descartaram de saída o Antigo Testamento, partindo dos Evangelhos canônicos, desvenvolvendo, inclusive, traços do que a partir do século XIX se chamaria anti-semitismo: o Deus desse Éon - ou nosso universo - é o Deus de Israel (assim pregava Basilides, filósofo e teólogo do segundo século da era cristã), divindade esta favorável, portanto, a tudo quanto diz respeito a esse povo e à sua terra e causadora de toda sorte de entraves a todos os envolvidos com as questões judaicas, muito embora não poupando eventualmente nem os próprios judeus. As exegeses de vários desses primeiros cristãos, muitas vezes conduzindo a hipéboles intoleráveis ao espírito religioso da época, foram acusadas de heresia e convenientemente banidas dos ensinamentos usuais, embora hajam contribuído significativamente com estes, ao menos no apontar-lhes certas inconsistências.
Enfim, o gnosticismo parece ter sido espécie de guardião da coerência para o cristianismo nascente, prevenindo sua imobilização, comum a toda nova crença, num pietismo leigo, promovendo o seu elo com as principais correntes de pensamento vigentes à época, como platonismo e estoicismo. Procurou mostrar aos novos crentes a inexistência de garantias da intrínseca bondade do mundo nos escritos judaicos e, extirpando o Messias dessa tradição, dava-lhes a noção e a esperança do bem verdadeiro, assim como o entendia o mundo helênico.
O cristão futuro, entretanto, escolheria a via da omissão ou da hipocrisia. E se hoje dizemos habitar um mundo erigido segundo preceitos de linhagem judaico-cristã, tal afirmação desvela-nos uma realidade onde o mal, tão ciosamente escondido ou providencialmente desdenhado ao longo de milênios, mostra-se agora explícito e apadrinhado por justificativas morais, éticas e mesmo lógicas que a filosofia ainda não soube conciliar. Pessoalmente, não creio que, desse ponto de vista, algum dia haja sido muito diferente a realidade: o mal sempre se exerceu sobre o quinhão que lhe cabe.
Há, entretanto, uma particularidade deste nosso momento, em pleno 2006: já não concebemos salvação! Não, ao menos, aquela arquitetada no gnosticismo. Não somos mais engenhosos e ingênuos o bastante para tecer a solução do insolúvel: o habitarmos um mundo diverso do que desejamos, consolando-nos com a idéia de outro melhor anunciado pelo seu messias. Pois a salvação do gnóstico está dentro de si, na certeza de existir o lugar ideal, compatível com os seus anseios, a qual é, como a Idéia platônica, espécie de marca de proveniência ou de origem atestando o seu pertencimento primeiro a esse lugar, Pleroma, onde está o verdadeiro Deus, em verdade espaço emanado de Si. Do nosso lado, não conseguimos reconhecer em nós qualquer idealidade por que nutrir esperanças, pois talvez já nutramos incomensurável paixão por este mundo que criamos, mundo de certos confortos, mas também de finanças, de política, religiões (ainda!) e o que tudo isto implica, assim não vislumbrando alternativa melhor ao que já nos é oferecido e prometido: nosso paraíso é o aqui e o agora, o qual, por discrepar do que verdadeiramente desejamos, é também nosso inferno.
Conjugados na imprensa às catástrofes e aos crimes, os dois achados da ciência assumem nota sombria. Rezar é tanto inútil quanto daninho, enquanto o mundo permanece o mesmo, aqui, diante de nós, adverso, intolerante, inclemente, sem esperanças em si. Quanto à marca distintiva fazendo de nós - e de boa parte dos seres vivos! - entes direcionados para o autèntico bem (bem ausente, não obstante, de onde habitamos), dela é possível afirmar-se, com incerta ironia, que, se de fato a possuímos todos, seria isto a melhor prova de que não faltam ao Inferno, de fato, as boas intenções.
Rio, 06/04/06
Waldemar M. Reis
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