Ensaios e afins
Os escritos a seguir são partes do jogo simplório de periodicamente lançá-los à maneira de garrafas com mensagens ao mar, embora subvertendo o sentido ordinário do gesto. Pois tendo o propósito inicial de auxiliar o autor na organização do pensamento, seu teor deixa clara a presunção de não ser exata ou tão-somente ele o náufrago a que se destinam.
terça-feira, agosto 01, 2017
Filosofia de botequim: "a vida é uma tragédia". Você pode rir da vulgaridade do pensamento, e desse modo estará alinhando-se aos que o levam a sério, embora fazendo o possível para que a vida pareça mera farsa. Darão com os burros n'água: com ser fiel ao texto que segue a vida é implacável. Parece mesmo mais afeita aos que duvidam de sua tragicidade ou a acham insuficiente e por isso prodigalizam horrores com o cinismo de quem improvisa 'cacos' - e às gargalhadas - para animar o que acreditam não passar de reles comédia.
quarta-feira, julho 26, 2017
O lugar de justiça e liberdade na saga dos inclementes
Uma das belezas de Game of Thrones, perdida junto às demais por quem se recusa a acompanhar a série acreditando tratar-se de exercício primário do teatro da violência, é a percepção de sua espessura para além da violência mesma, sobre a qual e exclusivamente, aliás, tal espessura é possível - ou se justifica - construir-se. Trata-se da saga em que parece procurar seu lugar na humanidade a Justiça, de início aparecendo acomodada num feudo no Norte gélido, regido pelo clã dos Stark, sendo em pouco desalojada dali à medida em que são sistematicamete dizimados quase todos os membros dessa família. Daí em diante é como se tentasse ela, Justiça, retornar ao espírito humano por quaisquer passagens que julgue disponíveis e consequentes, transmutando-se ora em estratagemas de usurpação, ora em efêmera moral religiosa e, com maior frequência, em vingança sumária, sem que, naturalmente, tenha sucesso. Aqui e ali, entretanto, é possível ver-se lampejos de sua natureza autêntica nos Stark sobreviventes em sua faina de acresecentar um dia a mais a suas existências, num nobre enjeitado por ser anão e que, obrigado por isso a trilhar vias mais exíguas do que as dos demais, é instado a abrigá-la intermitentemente, e finalmete no aprendizado de uma princesa banida, usada pelo irmão em troca de alianças que o conduzissem ao trono máximo de onde caiu - assassinado - seu pai, mas que soube como que esculpir num destino de aparência inflexível sua ascensão a rainha de povos díspares e a postulante de peso do trono usurpado.
Daenerys faz de si o perfil da monarca que se pode dizer justa ou, ainda, o perfil assumido por qualquer forma de poder de um indivíduo sobre outro que decida manter-se à maior distância possível do despotismo. É a linha de conduta que escolheu desde quando apareceu nessa história, construindo relação de amor, de confiança, com o marido, a quem foi dada em troca dos exércitos que comandava, chefe tribal mais propenso ao afeto por sua montaria do que pela figura feminina. Destruída a tirania do irmão e tornada viúva, inclusive tendo perdido o filho, herdeiro, e a posição na tribo, vê realizar-se sorte de profecia em que sobrevive ao fogo onde também são chocados os ovos de três criaturas intratáveis, selvagens, três dragões, dos quais se torna como que mãe. A nova relação lhe proporciona o comando de um dos maiores exércitos nessas terras, falanges de escravos condicionados a suportar com bravura e indiferença o horror além de todos os limites no campo de batalha: numa transação a princípio de compra, em que daria pelos guerreiros um dos dragões, Daenerys trai os escravagistas e decreta a liberdade dos soldados, convidando-os em seguida a seguirem-na em seu projeto por um mundo livre. Usa o novo poderio militar para libertar de oligarcas locais populações inteiras e para reformar as tradições espúrias dessas terras, como as chacinas rituais, ao passo que constitui o suficiente em alianças para a travessia do mar separando-a do trono que tem por meta tomar.
Com sutis variações, essa é a tônica da campanha de Daenerys, seu propósito complexo e inflexível: tornar-se poder absoluto, mas não por mérito da força, que reserva exclusivamente para destruir seus inimigos, os inimigos da liberdade, e sim por força de ela própria se fazer encarnar pela liberdade e desse modo ganhar a confiança e a adesão de todos quanto querem e precisam extinguir a tirania. Daenerys encarna uma ideia capaz de mover hordas, a de se porem ao seu lado de livre vontade. Seu poder se estabelece não exatamente enquanto ligação externa, dela para com o outro, mas no interior mesmo deste, em sua consciência, o que ela demonstra seguidamente ao reafirmar perante todos a possibilidade permanente de cada qual decidir deixá-la com a garantia de jamais ser molestado pela decisão. No entanto, como todos em Game of Thrones e por certo não somente lá, execra a traição, que parece ter por análogo da escravização (no que tem razão), punida nos mesmos moldes. É nesse contexto que dialoga com personagem inusitado, Varys, eunuco e mestre-espião a seu serviço cuja lealdade põe então em dúvida e à prova por ter servido os usurpadores do seu reino e assassinos do seu pai depois de tê-lo servido. Varys defende-se narrando sua condição original de criança do povo submetida a todo tipo de sevícia até chegar aonde está na escala social, em que lhe cabe obedecer ordens enquanto urde o quanto pode em defesa do mesmo povo donde saiu, meta que tem por sagrada. Varys é sinuoso, escorregadio como poucos em Game of Thrones: sua história parece convencer Daenerys, que por ser quem é ou quem se propôs ser tem de acatar a defesa do espião enquanto não provada em contrário, o tipo de confiança que na saga é sentença de morte para inúmeros. Sua saída dessa zona de risco, no entanto, não foi senão magistral: pede ao eunuco que jure lhe dizer a verdade com a mesma franqueza de então quando julgar que ela, Daenerys, está em erro, jurando em seguida queimá-lo vivo se algum dia a trai.
No permanente pesadelo da política em Westeros Daenerys é constraste marcante, inclusive com os Stark, os bons senhores, mas senhores, nada obstante. A Justiça parece encontrar nela espécie de assento permanente de onde pode reinar sobre o mundo com eficiência absoluta. A jovem rainha não parece ter por inimigo ninguém ou nada, senão a tirania, a subjugação, decerto a maior - se não a única - forma de injustiça. Talvez por isso não faça inimigos: mata-os todos ao encontrá-los, caso não veja motivos para submeter algum a suplício temporário à guisa de exemplo. E por isso se deixa acompanhar só por quem a segue de vontade própria: fazer servos ou escravos seria fazer inimigos. Em várias ocasiões e, de modo mais explícito, no diálogo com Varys mostra a desimportância de sua pessoa em comparação com o que esta representa ao sugerir que entretém relação de iguais com quem a segue em virtude dessa ideia - a de liberdade. Seu poder primeiro se resume à imunidade ao fogo, de que deriva outro poder básico, sua relação com as três bestas ígneas cuja fidelidade se estabelece nos mesmos moldes da que obtém dos humanos. Trata-se de poderes de que dispóe a todo momento e que a um só tempo são a proteção possível para si, ou para a ideia que emula, e para quem, seguindo-a ou não, não fira a liberdade. Daenerys parece saber que são as ideias o que os humanos necessitam seguir, embora acreditando seguirem pessoas. Num mundo cego para a possibilidade de auto-determinação dos indivíduos comuns como o de Westeros, sabe também que para eles não fará sentido ordenar ou sugerir que sejam - que sigam - todos livres, como se fosse ainda inepta a capacidade de abstraírem, necessitando de alguém - mais do que algo - que saiba dar vida aos conceitos que apenas vislumbram. Os perigos dessa associação de ideias a personagens são enormes, mesmo em se tratando de ideia como a de liberdade, e é provável que, prevenindo isto, mais do que um guia ou mão condutora para uma liberação a ser lograda adiante no tempo, a Mãe dos Dragões tenha decidido ser ela própria a liberdade presente, com que todos à volta têm a oportunidade de interagir.
segunda-feira, fevereiro 20, 2017
Gênese de um desejo concedido
Pensava demais, a velocidade exagerada - ou por que mais estaria o relógio parado, há tantas ideias, a cinco para o almoço? Na certa o cansaço acelerava o corpo para não dormir com a memória no automárico sob a voz do treinamento que só agora, na hora errada, é capaz de lhe tirar o sono: pois tem de haver com efeito alguma honra no privilégio de ter confiada parte no projeto singular, histórico, monumental, legada por linhagem de escolhidos ocupando aquele birô entre birôs e birôs no átrio da ala sudeste, inquietos mas resignados à ignorância de para que raios servia ou importava o que faziam - justo como também não conseguia ser.
Cifras e siglas que copiava de cartões em cartolina descoloridos para livrórios de capa marmorizada nada lhe diziam, nem a mais ninguém, salvo ao último ocupante da mesa cinco a noroeste da sua, a julgar pelo conteúdo dos aviõezinhos e bolas de papel amassado com ilações perigosas e até declaração de amor - imagine-se! - que por descuido iam pousar nas suas imediações. Além de evitar perguntas, o bom-tom sugeria dizer que fora transferido, aliás, como todos, incluídos os de comportamento comedido - transferências para 'nunca mais'.
Faz pouco reuniam-se excitados e esperançosos à volta do superintendente para brindar com água, no silêncio dos copos descartáveis, a conclusão de algo como 63% da etapa 703BN-4 da meta anual de sua seção. No tempo restante resignou-se à luta sem pausa contra dormir e o embaçamento do pince-nez ao ritmo de entrada e saída dos cartões transferidos letra por letra para o registro até soar o recesso.
Olha sem expectativas a chávena com a dormideira que não lhe silenciará a voz do treinamento até o primeiro galo, quando então, é possível, cochilará, tenso por lembrar do despertador armado para daí a hora e pouco. Uma barata lhe rói o sapato sob a cama. Decide ignorá-la, mantendo os olhos semicerrados, pois avalia o quão afortunada é por não precisar saber por que o faz, a relevância disto para algum objetivo maior. E é como se sonhasse, sem se dar conta, que deseja intensamente aquela felicidade.
De igualdade e justiça que o dinheiro pode prover
A continuada birra minha com o uso - em qualquer contexto e em particular no das 'inexatas' ciências sociais - de expressões como 'mais justo' e 'mais igual', além de suas variantes deprimentes 'menos injusto' e 'menos desigual'. Conspurcam os conceitos 'justeza' - ou 'justiça' - e 'igualdade', que por definição não comportam modulação e só podem ser afirmados ou negados, e o fazem, nas questões sociais, a serviço da conservação do statu quo capitalista, dando a impressão de o capitalismo ser amenizável por mais do que períodos breves: desnecessário ser especializado em História para chegar a tal conclusão, bastando haver alguma memória das alternâncias vividas em períodos de quinze ou vinte anos.
Na raiz desse uso indevido - que vem caracterizando a opção do indivíduo pela esquerda do espectro político - está a expectativa sempre renovada de salvaguardar a funcionalidade do dinheiro, embora 'disciplinando-o', enquanto depositário da ideia não menos distorcida de liberdade que a antiquíssima doutrina liberal vem impingindo-nos com sua propaganda faz séculos. Persistirá a impressão de que o dinheiro é somente outra vítima do mau uso enquanto o seu emprego passar por modo particular de exercer o livre arbítrio, ou seja, enquanto sobreviver a ilusão de ser possível a escolha incondicionada, por assim dizer, livre de quaisquer constrangimentos, quando na verdade se escolhe premido pelo imperativo do bem, pela determinação de obter o bom, embora em grande medida se ignore como o fazer.
Essa concepção de liberdade de escolher é a mesma a orientar quaisquer jogos de azar, em que se faz lance ao acaso e se tolera - quando possível - o mau resultado, sendo útil exclusivamente para donos de cassino e quem faz fortuna com vender. Trata-se, pois, do que há de pior ou é veementemente contraindicado para a natureza humana, que é em essência conhecer e, por conseguinte, ver-se lvre - sim, mas - da sua condição inicial de indizível ignorância. De modo que não haveria liberdade a priori, mas a posteriori, a ser conquistada sobre a ignorância e ad aeternum, pois é suposto que sempre se estará ignorando algo.
Em vista disso é de imaginar que o dinheiro, quando empregado por indivíduos empenhados em lutar sem pausa contra a tirania da própria ignorância, possa ser parte de um mundo autenticamente virtuoso (e não de um apenas 'mais virtuoso'). Se tal virtude, então, está no que se entende por 'justo' ou por 'igualdade de oportunidades', é de supor que a exata distribuição de dinheiro - num hipotético e cristalino universo da carochinha, concedamos - será contribuição apreciável na consecução da justiça. Neste caso, entretanto, que propósito ou sentido há em continuar usando-o? Vê-se por aí o que vai no espírito de quem se tem por 'à esquerda' no espectro político e concebe distibuição apenas 'mais justa' ou 'mais igual' disto que por natureza própria deixa de ter propósito ou sentido quando os significados de 'justiça' e 'igualdade' são preservados.
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