terça-feira, janeiro 23, 2018

... para lembrarmos de agora, de quando ainda não somos inteiramente coisas

'Bernays inventou a propaganda, Lippmann, o consenso'. É o que se lê num ensaio muito interessante, 'O seducionismo de Edward Bernays e a entrega da humanidade', de autoria de Gustavo Gollo, publicado no GGN. Muito interessante, mas não a inteira verdade. Entretanto longe de se tratar de ou de tentar ser mais uma na enxurrada de 'notícias falsas' ('fake news'), de cuja existência passamos a nos inteirar recentemente, em si o texto de Gollo evidencia ao menos um dos elementos da cultura da massa (e do senso comum, por conseguinte) que propiciam e facilitam a absorção das 'fake news' pelos indivíduos, e que identifico como o esquecimento da História e - ou - o desprezo por ela.

Como e quando impérios gigantescos se mantiveram por séculos ou milênios desde a Antiguidade sem o favor de propaganda e seu resultado almejado, o consenso? Ah, lembra alguém ao lado, e quanto à violência, às guerras, em suma, à coerção pela força? É evidente que estas tiveram e têm seus lugares cativos na permanência das dominações, mas vamos concordar que do ponto de vista do dominador faz pouco sentido sair dizimando opositores sem antes tentar 'seduzi-los' (termo bem utilizado por Gollo) para as vantagens de se submeterem de vontade própria. Coerções por força geram submissão forçada, evidentemente, cuja manutenção tem custo nada baixo, sem falar nas perdas que em geral ocasionam, desperdício evidente de força de trabalho do viés de quem dela quer tirar partido privado, se antes não se tentou a via da sedução, o consenso via propaganda.

Igual a tudo quanto se apóia nas capacidades linguísticas, a propaganda não escapa de valer-se de argumentos, mas sua inerente urgência por resultados e o público diversificado a que tem de remeter-se tornam proibitivo o megulho mais aprofundado da argumentação, tornando-a capenga ou inteiramente ininteligível, mas sobrevivendo em virtude de ser reiterada ad nauseam, recurso que fez da propaganda a fama. Esta maneira de descrevê-la - incontornavelmente vinculada à argumentação - deixa a sugestão de a propaganda não veicular de necessidade ideias tolas, suspeitas ou nocivas: o problema, entretanto, está em que mesmo veiculando algo bom ou perfeitamente razoável, a propaganda o faz superficialmente, tem de o fazer assim, de modo que o consenso criado é frágil, sujeito a dissolver-se diante de outra onda repetitiva de ideias. Exemplos disso que de imediato me vêm à cabeça seriam duas revoluções, uma considerada universalmente (assim acredito) 'boa', a outra bem vista pela parte - digamos - 'progressista' da população: as revoluções Francesa e Russa, respectivamente, ambas germinadas á base de propaganda, a da primeira urdida ao longo de décadas do chamado Iluminismo em sua inerente crítica ao poder sempre crescente da aristocracia, a da segunda preparada durante ao menos década e meia e ao custo de um punhado de 'revoluções' menores e de resultados mais precários. Desnecessário seria dizer, mas dizendo-o, nada obstante: pouco ou nada delas sobrou nas ondas subsequentes de repetições de ideias que ainda hoje as conspurcam, distorcem, vilipendiam.

Bernays, Lippmann e, não esqueçamos, Goebbels, se algum serviço prestaram nesse contexto, foi o de darem nomes a esse fenômeno e de o adequarem aos então novos modos de torná-lo viáveis, como a imprensa, o rádio, a televisão etc. Quanto ao conteúdo, a 'propaganda' do século XX não poderia distinguir-se essencialmente da 'influência' que, por bem ou por mal, durante os dois últimos milênios o cristianismo - por exemplo - vem exercendo sobre seus seguidores, tornando-os em sorte de casta de consumidores da variedade enorme de produtos que oferece, desse modo enriquecendo como qualquer outro super-empreendimento capitalista. (Que não se leia nesta derradeira sentença qualquer julgamento quanto à consistência - por assim dizer - da doutrina cristã, e sim a inteiração de que a propaganda por cujo intermédio se disseminou por certo formou seguidores pouco advertidos do que ela de fato é.)

Mas, como se mostrou, tudo isto se consuma no terreno das ideias, campo em extremo mutável e frágil e no qual é possível imprimr-se qualquer coisa que simule fazer sentido - além do que efetivamente teria sentido - e que, por conseguinte, é passível de substituição por outra coisa cujo esforço para imprimi-la aí seja repetido o bastante. Ideias são capazes de acurralar manadas inumeráveis, mas não pelo tempo suficiente para extrair destas o que de interesse é para quem torna as anteriores em propaganda. E é no empenho de contornar essa limitação que o nosso tempo dá sinais de gestar algo próximo de genuína novidade nos termos da História. Os elementos, no caso, parece, são os mesmos, isto é, coação via ideias - propaganda - e coerção pela força, uma entrando em cena quando a outra falha, tradicionalmente utilizadas nesta ordem se o dominador faz uso da própria inteligência. A provável novidade (e escrevo 'provável' por possivelmente carecer da informação histórica concernente) seria a combinação desses elementos num mesmo gênero de veículo a ser (na verdade, já sendo) implantado em tudo quanto nos cerca e é útil, nisto inclundo-se os nossos pŕoprios organismos - e em muito breve via solução genética: o chip.

Formar consenso, uma vez esteja tudo conectado na preconizada rede mundial de coisas, será problema concernindo exclusivamente à química, bem como à física das adequadas emissões de estímulos para gerar diretamente na argamassa neuronal o que por eras acreditamos estar sob algum - quase sempre precário - controle pessoal, como certas emoções e, principalmente, a capacidade de raciocinar. Desse viés, acredita-se, não haverá mais possibilidade de dissenso, o que parece pôr por terra a necessidade de uso futuro da coerção pela força. Ledo engano, entretanto, o de quem supuser esse assunto encerrado por aí: primeiro, porque é verossímil admitir que o poder de controlar química e fisicamente vários ou todos os aspectos do pensamento dum indivíduo inclui a capacidade de 'desligá-lo' e, segundo, porque a possibilidade de incômodo causado por algum de nós a quem se propõe dominar-nos não se restringe ao discordarmos do que pensa, podendo advir também de nossa singela presença, sempre que considerada intolerável ou somente dispensável. E isto sem mencionar a violẽncia em si que é o controle de um indivíduo por outro, seja de que forma for, em especial dessa, a de manejá-lo desde as entranhas. Consenso e coerção pela força, enfim, tornam-se uma coisa só, é provável que, entre outras formas, sob a da pílula.

Por fim e por sorte o sucesso desse projeto monumental de 'coisificar-nos' junto às geladeiras, automóveis, computadores, brinquedos e o que mais for só terá lugar depois do que terá de ser - ou já vem sendo - o derradeiro esforço propagandístico via meios tradicionais, isto é, valendo-se da repetição exaustiva de ideias pouco claras para produzir influência sobre os indivíduos, que além de última deverá ser a maior campanha publicitária de todos os tempos, dirigida a convencer-nos à ingestão da tal pílula. Por azar, entretanto, os criadores de tal camṕanha têm uma determinada vantagem que por certo lhes poupará milhões em dinheiro, vantagem que vimos lhes oferecendo pouco a pouco ao longo desses cerca de seis milênios de História escrita e que se evidencia particularmente durante o século XX, mais especificamente com a criação e a universal aceitação da geringonça a que demos o nome de 'controle remoto'. Por meio dele pudemos sonhar a concretização de espécie de delírio coletivo, é quase certo derivado de alguma forma degenerada de compreender o sentido de 'idealismo' (o utilizado na filosofia), delírio de o controle do mundo com toques de nossos dedos ser o prenúncio de que em breve o controlaríamos de modos mais sutis, como o mero pensar: no fundo é como se almejássemos abdicar do todo que entendemos por trabalho físico, passando a desfrutar de vida exclusivamente 'espiritual', coisa que ao longo das eras vimos atribuindo a deuses e mortos.

Expressão hiperbólica da 'lei do menor esforço', essa descrição da compulsão de nossa cultura - hoje, na prática, mundial - por delegar a seja quem ou o que for os restantes encargos da condição de viventes pode não estar nada distante da realidade. É nela que se sustenta, além dos aspectos insanos da corrida tecnológica, o modelo quase universal de sociedade dividida em governados e governantes, por exemplo, em que aspectos cruciais das vidas dos cidadãos são transferidos, quase sempre de iniciativa própria, a punhado de indivíduos. E é por ela que se faz irrecorrível o sucesso da mencionada derradeira campanha publicitária para cedermos a 'outrem' os últimos e mais recônditos direitos dentre os poucos de que viemos dotados desde o útero, já que o chip do marcapasso dependerá em breve de algo - é provável que d'o algoritmo' - nalgum ponto da rede para o adequado funcionamento, assim como a dose certa de insulina e o monitoramento celular sem pausa para prevenção de doenças, sem falar nas trajetórias dos automóveis (agora mais 'auto' do que jamais), da vigilãncia amorosa dos entes queridos, da comida no refrigerador e por aí vai. Considerado o que por eras elegemos como 'indispensável', tudo indica haver desta vez os argumentos mais convincentes para sermos por fim eximidos também da quase obsoleta necessidade de argumentar.

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