sexta-feira, julho 30, 2004

Exposição da neutralidade

Há coisa de dois dias encontrei na Internet - num livro cujos título e assunto não é conveniente ou merecido mencionar - uma epígrafe de Dante, "The hottest places in hell are reserved for those who, in a period of moral crisis, maintain their neutrality", frase comum nas bocas de toda e qualquer facção política, aqui investida de inflamação muito ao gosto italiano, mas que pode também servir - paradoxalmente - a alguns neutros. Sim, e é suficiente mostrar que neutralidade foi confundida ali com indecisão, prática a que recorrem com notável freqüência as mais ardentes inteligências.

Posição digna de nota e respeito, especialmente em tempos de crise, a neutralidade constitui, inclusive, porto seguro para os indecisos antes de se dirigirem em definitivo para um dos lados ou de se decidirem pela permanência em terreno neutro. Dante, então, tivesse lá as suas razões para condenar ao pior dos infernos a neutralidade, principalmente em se tratando de neutralidade bem fundada. O neutro, na verdade, incomoda tanto quanto qualquer opositor tão-somente por não se enfileirar com o incomodado na batalha. Mas quantos dos guerreiros em oposição estarão de pleno acordo com o ideário que os leva ao front? Quantos não estarão ali coibidos, enganados, ou apenas por não terem encontrado algo melhor? (ah! esses ignorantes da neutralidade!) Pessoalmente, encontro-me entre os neutros radicais, os que dispensamos inclusive o recurso à retórica dantesca aplicada, de modo reverso, à nossa causa. Significa isso que possuo o meu próprio projeto de mundo, que pode ter pouco ou nada em comum mesmo com os projetos de outros afiliados da neutralidade, os quais não se consideram, por isso, como reciprocamente excludentes.

Poderia eu estar no mundo em melhor situação? Por certo que sim. Mas não creio que por obra dos programas integrais de quaisquer ideologias, exceto a que venho construindo. Ser neutro nada tem a ver com usar da passividade, outra crença arraigada, mas com até fazer oposições declaradas, em especial a posturas inutilmente destrutivas. Trata-se, pois, de uma como qualquer outra luta a neutralidade (possuindo também sua lista de desaparecidos e mortos, assim como sua galeria de heróis), sendo embora travada por ideais muito mais individualistas, adjetivo infelizmente muito utilizado para significar 'egoístas'. O individualismo puro é na verdade o olhar crítico para certos hábitos, certas práticas coletivistas: é, por exemplo, evitar os refrigerantes sem tornar-se um vegan ou macrobiótico; alimentar-se de cereais integrais, de frutas e vegetais crus, mas utilizar a Internet; é gostar da vida no campo e freqüentá-la com respeito sem necessário ser o abandono da vida urbana; é realizar atividades em conjunto sem ter de embebedar-se todo happy hour com o grupo; é, enfim, praticar o 'recorte' pessoal no tecido que se nos oferece da vida sem por necessidade ter de se amolgar ao perfil de um ou outro grupo nem de 'picotar' o 'recorte' alheio, algo para que o bom senso vem nos apontando desde a infância: que nos induzam à retirada ou ao acordo o respeito ao outro e a não nos deixar submeter aos excessos o respeito próprio. Em suma, o individualista puro é algo que todos nós gostaríamos de continuar sendo: em uma palavra, neutros.

Mas como a neutralidade, segundo se disse, é porto também para quem esteve, ou mesmo quem por natureza é, indeciso, após certo tempo como neutro um camarada pode enveredar por outras facções. Uma vez lá, abandoná-la, seja de volta à neutralidade, seja em favor de outra posição, é atitude em sinonímia com 'traição', termo impensável para os neutros. Todo 'traidor' é por nós recebido, portanto, como qualquer outro que - por acaso - assim não tenha sido rotulado: com a mais absoluta e salutar indiferença. Não há lugar para efusividades aqui, não se pode esquecer de que somos neutros!

Entretanto, atenção! Nem todos os neutros realmente o são, muitos não passando de - inutilmente - espiões ou aliciadores de outras facções, representando porventura algum perigo, mas só para a massa dos indecisos, naturalmente. De fácil reconhecimento, é comum integrarem os falsos neutros associações beneficentes apartidárias, crendo ser este último adjetivo o seu melhor disfarce, e quase sempre estão a ditar aos outros o que fazer, eles mesmos pouco ou nada fazendo além disso. Este traço, a bem dizer, é inconfundível. Pois onde já se viu um autêntico neutro senão cumprindo o seu dever para consigo mesmo? - o que, é claro, compreende em suficiente medida o outro, sendo também exemplo bastante a ser seguido por quem possui em si o senso da neutralidade minimamente desenvolvido.

Por fim, não faltarão detratores a imputar-me aqui a doutrinação, no que cometem erro grosseiro. Em primeiro lugar, faço apenas exposição neutra, como teria de ser, cuja ameaça maior a quem porventura se encontre afiliado a um ou outro partido é a descoberta da sua própria neutralidade, algo que não lhe determina a transferência explícita e imediata para o nosso convívio, do contrário: embora de todo inúteis para a(s) nossa(s) causa(s), também terminamos por possuir, ainda que involuntariamente, os nossos espiões!

Waldemar Reis

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