"... exclamaram e se revoltaram, escandalizados, os crentes e principalmente os teólogos: como é possível que seja uma mera imaginação algo que proporcionou consolo a milhões, pelo que milhões sacrificaram até mesmo a própria vida? Mas isso não é nenhuma prova de realidade e verdade desses objetos." Com tais 'objetos' Feuerbach refere, em suas "Preleções sobre 'A essência da religião'", os objetos religiosos, a saber, os objetos da fé, esta por ele identificada com a prórpria imaginação.
Até atingir este ponto, o filósofo lenta e pacientemente desenvolve sua demonstração observando primeiramente que o sentimento religioso se instaura no homem estimulado pelo seu próprio egoísmo, ou seja, o instinto de preservação de si, em primeiro lugar, e dos seus semelhantes em segundo. O egoísmo, para Feuerbach, é definível também como o sentimento de dependência da vida humana relativo a tudo quanto a rodeia, o sentimento de estar inserido num todo e de nele ter de trilhar determinado caminho, fora do qual ela se extingue. Eis a razão de o sol, a vegetação, os animais, a lua, as estrelas, a água, os ventos, as estações, mas também as tempestades e outros flagelos terem sido e ainda serem adorados como deuses, cultuados com o respeito devido somente àquilo acerca de que não se tem controle senão a submissão sedutora. Por trás de semelhante atitude há, naturalmente, a pressuposição de animar cada um desses objetos de veneração o mesmo impulso volitivo sentido pelo homem em si próprio, isto é, pressupõe o homem a existência de consciência semelhante à sua em cada um desses existentes e manifestações que cultua, sem falar na forma material, nem sempre mas não menos humana: o antropomorfismo. A teleologia, conceito seminal na filosofia de Kant, é uma intuição oriunda do pensar religioso, da atribuição à natureza de intenção em seus processos: o conhecimento religioso se constitui quando a natureza é feita espelho do humano.
Mesmo o Deus judaico-cristão, bem como o maometano, é submetido a tal escrutínio. A diferença está no fato de no monoteísmo o indivíduo passar a conceber-se mentalmente como distinto do mundo, apartado do todo, constituindo, por isso, um deus 'à imagem e semelhança' de seu próprio 'eu', de sua consciência. Esta a razão, segundo Feuerbach, de o Deus cristão não possuir uma imagem fisicamente observável como os demais deuses tirados das coisas e manifestações à sua volta.
O ponto culminante de sua argumentação, após outros momentos não muito menos notáveis, ocorre quando a fé é dada, em meio a citações de Lutero, como sinônima da imaginação, uma vez ela conceber o inverossímil - o impossível, até - desde que isto represente redenção ou satisfação de necessidade do crente. Fé, em Feuerbach e desde Lutero (como o demonstra o primeiro), possui exatamente a acepção que, particularmente, lhe tenho dado, a de espécie de sentido no porvir. Pessoalmente eu diria a imaginação como o processo associativo dos dados na mente, na memória, visto que cada informação ali chega mediante o trabalho de sentidos que tangem diversos aspectos, por que não dizer, diversas freqüências do real, entrando assim em contato recíproco de modo a oferecer ao sujeito meios de lidar com o que se lhe depara. A memória opera por suposições, imaginações sistematicamente corrigidas, tanto mais duradouro e mais vário é o contato com o objeto (já desde pelo menos Heráclito é corrente a crítica aos sentidos enquanto instrumentos de certeza), continuando a ponderá-lo, a estimá-lo, mesmo quando ausente. Como disse Feuerbach da imaginação e, por extensão, da fé, "só se ocupa com coisas e seres que não estão mais ou ainda não estão ou simplesmente não estão presentes". Em outras palavras, se imaginação é o 'modus operandi' da mente ou memória, esteja ela ou não 'em presença' do objeto, a fé tem de ser uma imaginação apenas 'na ausência' do mesmo: Tomé não carecia de imaginação, digo, da imaginação como é de hábito concebida, pois imaginava mesmo que Jesus não ressuscitara; carecia, sim, de fé no contrário, a qual é restaurada com o toque na chaga, passando assim a crer no fato, mesmo quando não mais estivesse diante d'O Mestre.
Feuerbach, é sabido, não tencionava suprimir a religião, mas tão-somente suprimir-lhe tudo quanto nela se lhe mostrava inútil ou paradoxal. Queria 'secularizá-la', no dizer de Engels, trazê-la de volta à terra, à natureza, dissipar-lhe a faceta etérea, idealizada, restaurando-lhe a vocação eminentemente prática. Desde "A essência do cristianismo" já havia fundado a sua nova e purificada religião do amor; já identificara no impulso religioso a raiz no 'afeto', conceito que é, para mim, o modo de resposta da consciência a tudo quanto lhe instiga a natureza e no qual estão implícitos o egoísmo e a dependência (com que inicia o filósofo o seu sistema crítico nas "Preleções"), faros que são do vivente para o que lhe proporciona a permanência, a sobrevida. Mas seria possível ao 'senso' religioso submeter-se a tal supressão de sua faceta etérea, deixar de lado o invisível para celebrar apenas o estritamente sentido? Não seria isso igualar a religiosidade ao processo (afetivo) de apreciação estudado na Estética?
Se algum dia, como preconiza Feuerbach, o cristão e todo e qualquer mito estarão desvendados, isto se fará com o concurso de uma ciência provendo o homem da suficiente segurança relativa ao não percebido imediatamente e ao inesperado (o futuro). Só há duas maneiras de não se recorrer ao divino, uma delas tendo o conhecimento absoluto do ignorado (oxímoro inevitável), seja este 'presente' (e passado, por que não?) ou futuro, e a outra dissipando o medo causado pelo desconhecimento ou, o que seria dizer o mesmo, cultivando um misto de tolerância para com o adverso com a tenacidade para continuar superando-o, algo como o Estoicismo de Marco Aurélio (construído já sobre o de Epicteto). Sem isto tende-se à substituição de toda religião por uma ciência, como vem paulatinamente mostrando ser o caso este princípio de século, ou seja, um conhecimento pontilhado de incertezas e, pior, não menos distante do imaginário do homem comum do que estavam o mundo e seus objetos em tempos de prevalência religiosa. Em suma, sem o saber total (o qual não poderia ser chamado com justeza de ciência) ou, na ausência deste, sem a adequada impassibilidade diante do adverso (o mesmo que ataraxia, algo como um distanciamento das dores e dos gozos da vida) está-se fadado à substituição de uma religiosidade por outra.
Waldemar Reis
Até atingir este ponto, o filósofo lenta e pacientemente desenvolve sua demonstração observando primeiramente que o sentimento religioso se instaura no homem estimulado pelo seu próprio egoísmo, ou seja, o instinto de preservação de si, em primeiro lugar, e dos seus semelhantes em segundo. O egoísmo, para Feuerbach, é definível também como o sentimento de dependência da vida humana relativo a tudo quanto a rodeia, o sentimento de estar inserido num todo e de nele ter de trilhar determinado caminho, fora do qual ela se extingue. Eis a razão de o sol, a vegetação, os animais, a lua, as estrelas, a água, os ventos, as estações, mas também as tempestades e outros flagelos terem sido e ainda serem adorados como deuses, cultuados com o respeito devido somente àquilo acerca de que não se tem controle senão a submissão sedutora. Por trás de semelhante atitude há, naturalmente, a pressuposição de animar cada um desses objetos de veneração o mesmo impulso volitivo sentido pelo homem em si próprio, isto é, pressupõe o homem a existência de consciência semelhante à sua em cada um desses existentes e manifestações que cultua, sem falar na forma material, nem sempre mas não menos humana: o antropomorfismo. A teleologia, conceito seminal na filosofia de Kant, é uma intuição oriunda do pensar religioso, da atribuição à natureza de intenção em seus processos: o conhecimento religioso se constitui quando a natureza é feita espelho do humano.
Mesmo o Deus judaico-cristão, bem como o maometano, é submetido a tal escrutínio. A diferença está no fato de no monoteísmo o indivíduo passar a conceber-se mentalmente como distinto do mundo, apartado do todo, constituindo, por isso, um deus 'à imagem e semelhança' de seu próprio 'eu', de sua consciência. Esta a razão, segundo Feuerbach, de o Deus cristão não possuir uma imagem fisicamente observável como os demais deuses tirados das coisas e manifestações à sua volta.
O ponto culminante de sua argumentação, após outros momentos não muito menos notáveis, ocorre quando a fé é dada, em meio a citações de Lutero, como sinônima da imaginação, uma vez ela conceber o inverossímil - o impossível, até - desde que isto represente redenção ou satisfação de necessidade do crente. Fé, em Feuerbach e desde Lutero (como o demonstra o primeiro), possui exatamente a acepção que, particularmente, lhe tenho dado, a de espécie de sentido no porvir. Pessoalmente eu diria a imaginação como o processo associativo dos dados na mente, na memória, visto que cada informação ali chega mediante o trabalho de sentidos que tangem diversos aspectos, por que não dizer, diversas freqüências do real, entrando assim em contato recíproco de modo a oferecer ao sujeito meios de lidar com o que se lhe depara. A memória opera por suposições, imaginações sistematicamente corrigidas, tanto mais duradouro e mais vário é o contato com o objeto (já desde pelo menos Heráclito é corrente a crítica aos sentidos enquanto instrumentos de certeza), continuando a ponderá-lo, a estimá-lo, mesmo quando ausente. Como disse Feuerbach da imaginação e, por extensão, da fé, "só se ocupa com coisas e seres que não estão mais ou ainda não estão ou simplesmente não estão presentes". Em outras palavras, se imaginação é o 'modus operandi' da mente ou memória, esteja ela ou não 'em presença' do objeto, a fé tem de ser uma imaginação apenas 'na ausência' do mesmo: Tomé não carecia de imaginação, digo, da imaginação como é de hábito concebida, pois imaginava mesmo que Jesus não ressuscitara; carecia, sim, de fé no contrário, a qual é restaurada com o toque na chaga, passando assim a crer no fato, mesmo quando não mais estivesse diante d'O Mestre.
Feuerbach, é sabido, não tencionava suprimir a religião, mas tão-somente suprimir-lhe tudo quanto nela se lhe mostrava inútil ou paradoxal. Queria 'secularizá-la', no dizer de Engels, trazê-la de volta à terra, à natureza, dissipar-lhe a faceta etérea, idealizada, restaurando-lhe a vocação eminentemente prática. Desde "A essência do cristianismo" já havia fundado a sua nova e purificada religião do amor; já identificara no impulso religioso a raiz no 'afeto', conceito que é, para mim, o modo de resposta da consciência a tudo quanto lhe instiga a natureza e no qual estão implícitos o egoísmo e a dependência (com que inicia o filósofo o seu sistema crítico nas "Preleções"), faros que são do vivente para o que lhe proporciona a permanência, a sobrevida. Mas seria possível ao 'senso' religioso submeter-se a tal supressão de sua faceta etérea, deixar de lado o invisível para celebrar apenas o estritamente sentido? Não seria isso igualar a religiosidade ao processo (afetivo) de apreciação estudado na Estética?
Se algum dia, como preconiza Feuerbach, o cristão e todo e qualquer mito estarão desvendados, isto se fará com o concurso de uma ciência provendo o homem da suficiente segurança relativa ao não percebido imediatamente e ao inesperado (o futuro). Só há duas maneiras de não se recorrer ao divino, uma delas tendo o conhecimento absoluto do ignorado (oxímoro inevitável), seja este 'presente' (e passado, por que não?) ou futuro, e a outra dissipando o medo causado pelo desconhecimento ou, o que seria dizer o mesmo, cultivando um misto de tolerância para com o adverso com a tenacidade para continuar superando-o, algo como o Estoicismo de Marco Aurélio (construído já sobre o de Epicteto). Sem isto tende-se à substituição de toda religião por uma ciência, como vem paulatinamente mostrando ser o caso este princípio de século, ou seja, um conhecimento pontilhado de incertezas e, pior, não menos distante do imaginário do homem comum do que estavam o mundo e seus objetos em tempos de prevalência religiosa. Em suma, sem o saber total (o qual não poderia ser chamado com justeza de ciência) ou, na ausência deste, sem a adequada impassibilidade diante do adverso (o mesmo que ataraxia, algo como um distanciamento das dores e dos gozos da vida) está-se fadado à substituição de uma religiosidade por outra.
Waldemar Reis
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