quarta-feira, novembro 10, 2004

Do cobro de proteger

A lição vem dos tempos de colégio, das noções de história e zoologia. Das primeiras entendi que, esfacelado o império Romano, o burgo medieval nasce do medo dos camponeses reunidos à volta de um protetor influente o bastante para constituir exércitos ao custo, em última análise, da maior parte das lavouras dos protegidos. Os animais também, quando gregários, em geral elegem o mais forte para os protegerem, ao qual permitem, entre outras coisas, desfrutar da maioria das fêmeas. Com o perdão pelo o espírito redutivo, arrisco supor ser isso a regra desde muito, muito antes do advento dos castelos e seus senhores, perdurando até nossos dias: a proteção finda por se mostrar dominação, com o mais fraco escolhendo a dor da extração regular de umas tantas gotas do seu sangue a rebelar-se e perder as restantes.

Um bom teórico da conspiração não perderia a ocasião de observar a conveniência, para um forte, de força equivalente e contrária na subjugação do seu rebanho particular de fracos. Não fosse o resultado usual das guerras, com a submissão de um dos lados, crer-se-ia que tais conflitos têm a função exclusiva de manter alarmados os ânimos dos 'protegidos' de ambas as partes. Esqueça-se agora a pluralidade inestimável de povos, nações e países acotovelando-se sobre cada palmo de terra ao redor do mundo, organizando-se cada um em torno a sua respectiva e particular forma de poder, uma arreganhando os dentes - ainda que velados em sorrisos - para as demais, sendo de admirar que todos não tenhamos sucumbido ainda à conflagração universal a despeito do delicado equilíbrio no qual as verdadeiras potências tomam para si - à imitação de senhor e servos no sistema feudal - a proteção dos estados menos robustos. Esqueça-se então o mundo e considere-se a escala mais reduzida de uma população e seu governante.

Nesse âmbito parece óbvia a utilidade da contravenção enquanto endosso do poder. Este se alimenta, em verdade, do que o corrói, à semelhança de quem, em sua hipotética e extremada miséria, se visse coagido a apascentar piolhos e congêneres sobre a própria pele para se alimentar. Pois qual o uso do governo para o indivíduo se na vida deste tudo corre perfeitamente bem? Para quê o senhor se nada ameaça o servo em sua gleba? Veja, leitor, não é natural para um produtor a demonstração da necessidade do seu produto caso esta seja algo duvidosa?

Assim, bênção maior não há para um governante do que o ladrão, o sonegador, o arruaceiro e o assassino comuns, à excessão dos que agem em seu nome. Nada mais útil para um juiz, um delegado, um parlamentar ou qualquer outro membro do poder, portanto, do que pilhar outro juiz, delegado ou mesmo senador, prefeito, presidente em conluio com criminosos ou assumindo suas funções. A metáfora, agora, tem de ceder a maior dramaticidade forjando a imagem do indivíduo um ou mais de cujos membros transmudam-se em malófagos ou sifonápteros descomunais devorados tão logo percebidos. Dada a assiduidade do fenômeno, mesmo nós, gente comum, somos acometidos do mesmo delírio dos paranóicos de conspirações e, em vista do caráter perfeitamente lógico, racional, do observado, nos vemos obrigados a suprimir destes a pecha de enfermos, intitulando-os doutores.

Cumpre lembrar que, nos meados do século XIX, Feuerbach demonstrou a presença desse mecanismo no universo da religião, cujos representantes ou oficiantes não poupam esforços para convencer os fiéis de suas habilidades com a evitação do mal pairando sobre as cabeças destes e, por fim, que a aplicação em maior ou menor grau dessa metodologia é observada na atividade publicitária. Reitero: escusado é ser um especialista nos meandros conspiratórios ou meramente um louco para dar-se conta disso.

Waldemar Reis

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