terça-feira, novembro 09, 2004

Pouco importa!

Já não é a primeira vez, pergunto-me se um dia lerei tudo a que me tenho proposto - refiro a biblioteca esplhando-se por virtualmente todo o apartamento onde moro, montada por sorte de compulsão esquadrinhadora associando temas como se cozesse interminável colcha de retalhos incompatíveis a olhos normais. Ainda hoje surpreendeu-me certa esperança: um exemplar repetido, edição francesa, de bolso, de 'A filosofia à época trágica dos gregos'. Efêmera esperança que, a repetir-se a ocorrência nos dias de todo um ano, teria ainda de cobrar-me disciplina que me subtrairia para sempre o exercício de muitos prazeres, alguns não menos cobiçados, outros dificilmente confessáveis! Como agravante, a incerteza, partilhada por todos, quanto à página marcada à revelia como a final.

Ora, por mais de uma vez e de muitas maneiras já se o disse e com isto poderia consolar-me, livros não são para serem lidos de cabo a rabo por obrigação e sim degustados enquanto se nos parecem saborosos, ou devem ser postos de lado. Particularmente nutro opinião em certos aspectos contrária: com raras exceções, os livros de hábito escondem, mesmo trás a inépcia do autor, quando não exibem objetivamente, um sem número de preciosidades que, mesmo estimulando o escárnio, revelam uma época, um modo de pensar, outro de contar, e assim por diante. Claro, digo isso tendo em mente os escolhidos por mim, em grossa maioria merecedores das revisitas de que é sinal extremo a duplicata com que topei no correr de laboriosa e escasssa faxina. Os outros, não adquiridos, por sua vez, podem ter quatro perfis distintos: os não encontrados, os desconhecidos, aqueles ainda por se escreverem ou os milhares que sequer me atrevo a abrir.

Desde a capa, não apenas desde o título, é possível dizer com razoável precisão se é legível um livro, sem necessário ser expor-se ao risco de folheá-lo. Por motivos óbvios, especial cuidado é recomentdável com as muito belas, em geral feitas mesmo com o propósito de desestimular as incursões mais tímidas ao conteúdo e o de causar sensação ao lado de similares na estante. Enganos, entretanto, são tolerados desde que não se tornem rotina: não sei onde, por exemplo, ainda guardo por descaso um volume de aspecto muito simples, feio até (indício também pouco seguro da qualidade interna, hoje o sei!), e título algo expressivo, de que, na ausência de qualquer informação na contracapa, só consultei o índice à hora de comprar: além de versar sobre ontologia, dele não posso dizer nem a língua em que se escreveu, não obstante alguma semelhança insidiosa com o português.

Salvo casos como esse, abandonar um livro é como deixar alguém falando sozinho. Há quem o mereça, é bem verdade, mas a nobreza, quando não a caridade e quase sempre a agudeza ou a perspicácia ensinam, se não a tolerância, decerto o artifício de postergar o assunto para quando o desenfado o permitir ou, quando oportuno, habilmente manejar um punhado de tópicos de modo a atalhar o interesse com suficiente precisão. Ler é dialogar por intermédio da própria escuta e toda boa conversa é sorte privilegiada de leitura: se não ambos, ao menos um dos interlocutores tem de prodigalizar cortesia ou sequer se dê início à charla.

Os livros não são afeitos ao melindre como as pessoas. Isto não significa, entretanto, que se empregue menos cuidado no seu trato. Pois, se não eles, pode o acaso tomar para si, de conluio com outro livro, o encargo de desagravá-lo quando, ao cabo de um parágrafo, pode-se dar conta da dimensão da incúria! Fosse mais prudente porventura termos jamais aberto este ou o anterior, ao menos em respeito à própria reputação: sim, este é outro gênero de lapso contornável somente pelos mais experimentados na convivência com livros. Aí, noblesse oblige, é dar à palmatória a mão e retomar o primeiro com a precaução da humildade e cuidar para, vexando-se, não generalizar o procedimento e entregar-se irrefletidamente àqueles conteúdos bolorentos cujo destino é permanecerem magnificamente encerrados em suas capas em prol do bem universal.

Não é pela vastidão do planeta ou pelo interesse da diversidade de hábitos e culturas dos seus rincões que se deve pautar a determinação de conhecer e desse modo tomar o primeiro transporte à disposição e palmilhá-lo copiosamente. É suficiente, não raro, desembarcar uma ou duas estações de metrô adiante daquela onde é costume ficar-se para se compreender a inutilidade de uma excursão à China ou à Itãlia, por exemplo, não obstante chineses e italianos assim encontrados falem bom português até e em muitos aspectos compartilhem conosco, nativos, espécie transtornada de patriotismo. Inumeráveis idéias, relatos e poemas, de forma análoga, não necessitam de verificação in loco, bastando-nos as notícias suas colhidas em outros livros, mesmo sendo estas desfavoráveis. Pois do cotejo delas é possível obter-se boa noção daquilo de que falam, considerando-se inclusive ter sido essa a forma de preservação de grande parte do saber. Forma espúria de conservação essa, dirá um certo bom senso, é verdade, mas observe-se uma coisa: tome-se um original qualquer e, desconsiderando o fato de nele abundar a menção a incontáveis originais outros, formule-se opinião ou resumo (termos, em verdade, sinônimos) do que se leu; em seguida consultem-se resenhas, contestações ou assentimentos diversos do volume lido e, ato contínuo, cotejem-se todos, inclusive a sua opinião, essa lavrada recentemente; caso compartilhem da décima parte do que tratam, exorto-o, leitor, a interromper aqui a presente leitura e dela mofar. Dessa esperança não se vive, a de compartilhar juízos, mesmo consigo próprio: não será idêntico ao de hoje o juízo de ontem nem o de amanhã, ainda que jamais se volte a defrontar com o que o suscitou.

E sobre semelhantes transfigurações são erguidas outras obras, esteios, por sua vez, de suas sucessoras, e assim enquanto durar o gênero humano. Isto é em breve notado pelo leitor contumaz: com ou sem intenção, os escritos aproveitam-se uns dos outros de modo que se está sempre compilando mais ou menos o produzido no passado. Assim, apesar de todo bom livro - falo daquele merecedor de ser aberto - cobrar a leitura de todas as suas páginas, a freqüência a seus semelhantes termina por mostrar, com o tempo, um universo cujos objetos, sempre os mesmos, aparecem ora magnificados, ora reduzidos, seja pela distância de que são apontados, seja pelo apreço ou pela importância a eles atribuídos pelos autores. Tal observação, por uma lado pode signifcar, para uns, a irrelevância de se abordar não mais de um punhado de volumes eleitos ao acaso durante suas vidas; por outro, para aqueles habituados a desfrutar dessas quietas aventuras perturbadas apenas pelo revirar compassado das folhas impressas, todo livro é como placa de sinalização num caminho onde só há incontáveis semelhantes, remetendo umas a quaisquer e alimentando a esperança desses aventureiros de ao menos acercar-se ainda mais de algo que, não obstante muito próximo, jamais será tocado.

À guisa de conclusão, poderia aqui ostentar uma assunção de cunho realista, no sentido mais comum ou limitador: não, jamais lerei tudo quanto venho colecionando, sequer mesmo a terça parte, visto eu continuar adquirindo mais e mais volumes cujos temas estimo como do meu interesse. Entretanto, se tomo em sentido rigoroso o conteúdo do parágrafo precedente, posso assumir algo diverso, mais conforme um espírito fantasioso, alegando já haver lido todos mesmo não conhecendo mais do que uns poucos. E se continuo, enfim, nessa busca do invariável, do inútil, portanto, é por cultivar aquela disposição de quem está diante do palco e, sabendo ser fingimento a cena - excluo os loucos, naturalmente - já vista um sem número de vezes, deixa-se perpassar por multíplices e renovadas emoções até quando ocupa o mesmo assento.

Waldemar Reis

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