sábado, fevereiro 04, 2006

Borges nas sombras

É estranho o jogo de 'Borges à contraluz'. De saída, o confronto de uma algo singela e por vezes discretamente insinuante Estela Canto com outra, muitíssimo mais velha e remendada com tinta, laquê, muito pano, colares, anéis e brincos. Tanto uma quanto a outra fazem as vezes da bem-amada: a primeira, em fotos de 1945, parece ainda pesquisar essa frente do recente feminismo, embora já teorizando sobre a variante que escolheu para si, a de mulher livre e sexualmente satisfeita; enquanto a segunda presta contas, ao cabo de décadas, dessa escolha admitindo secretamente que o amor poderia ter-lhe sido bem mais generoso.

Não é difícil ver no livro uma mulher 'mordida', decerto por erro próprio, ao avaliar o potencial de 'glória' oferecendo-se aos seus pés e 'garfado' trinta anos depois por Maria Kodama. Algumas fofocas: disse Esther Vásquez - a outra biógrafa do Borges, também sua amiga, colaboradora e ex-musa - que 'la' Canto foi vista 'bebida' e rogando impropérios de amor traído na porta Biblioteca Nacional argentina ao então diretor do estabelecimento; para Vásquez 'la' Canto quis muito os cachês do poeta, como a primeira esposa, Elsa, que além do mais os roubou todos (o Prêmio Formentor, que dividiu com o Becket, junto!); tanto Vásquez quanto Woodall (James, autor inglês de uma terceira versão do biografado) insistem no mau gosto do trabalho da Canto, a qual, como que por instinto de defesa, deixa claro desde a Introdução não haver composto uma biografia no sentido restrito, mas um relato do que viveu com o poeta e do qual não poderia excluir incursões mais íntimas - dada a natureza múltipla da relação - e, naturalmente, suas observações e análises quase psicoanalitico-feministas. Como se vê, a luz prometida desde o título é 'contra', disso resultando imagem destoante daquelas tidas como boas, seja pela nitidez, seja pela poesia. Além de mistério, é possível entrever sensualidade na sugestão da Canto, o que, nada obstante, é paulatinamente rechaçado.

Entretanto, é bom encontrar ali um Borges mais humano do que o dos outros dois trabalhos. Ainda não conheço o do uruguaio Monegal, a quarta biografia do argentino, também seu amigo e especialista em sua obra, mas creio que o enfoque seja, no bom sentido, acadêmico (tenho uma antologia borgesiana do Monegal, que me pareceu correta). Em Woodall e Vásquez há uma certa idealização, no primeiro, em vista da distância, no tempo e no espaço; já na segunda há alguma humanidade, aquela do ângulo da amiga dedicada, colaboradora e ex-desejada do grande mestre, além de ser muito, muito mais nova do que ele. O Borges de Canto mostra-se ainda mais frágil que o dos demais: foi de fato criado para ser literato, projeto que a mãe continuou tocando após a morte do pai, e quando saía à noite ligava para casa de hora em hora para manter D. Leonor a par de onde e com quem estava; beijava mal e não sabia tocar; sua mão parecia não ter ossos quando cumprimentava; era pálido e gorducho, mas alto; apaixonava-se ridiculamente, como um cavaleiro medieval na imaginação do século XIX.

Em suma, Estela 'fala demais': a partir de sua mágoa pinta sua versão verossímil de um sábio, um pouco como Xenofonte e mesmo Aristófanes nos apresentam um Sócrates certamente mais prosaico que o dos diálogos. Não passa, no fundo, de uma grande fofoqueira recebendo-nos, toda emperiquitada, 'para un té en su casa'. Promete algumas vezes falar de 'O Aleph', que o poeta lhe dedicou, e nem possui mais o manuscrito (presente valiosíssimo que o então diretor cego da Biblioteca Nacional argentina também lhe ofereceu), negociado com um colecionador. Mas só comenta o relato lé pelo fim do livro, além de outros três ou quatro tidos por ela como emblemáticos da mente borgesiana. O tom dos comentários é fortemente sabido às artimanhas freudescas e, se não faz suficiente psicanálise, menos ainda faz de teoria literária.

Os mexericos 'cantianos' - ou seria melhor dizer 'cantescos'? - perdem, aqui e eli, como é habitual no calor desse tipo de narrativa, a compostura presumida em sua autora, premiada romancista para quem o romance é planura, carecendo, por natureza, de clímax, o qual seria próprio do relato curto. É bem possível que, ao urdir sua 'teoria' do romance, 'la' Canto jamais tenha escutado nomes como Machado de Assis, Pirandello e Balzac, talvez se degredando voluntariamente nas infinitas planícies dum Proust ou nos planaltos escarpados de Mann... Seu Borges é, por conseguinte, contumaz depreciador e leitor improvável de romances, mesmo dos tantos aludidos em seus contos, ensaios e poesia. Seria, portanto, culpado de uma das mais prosaicas imposturas intelectuais, aquela de dizer-se leitor do que apenas conhecia 'de orelhas'.

Mais para o fim do trabalho a autora reabilita a imagem do biografado, ou melhor, a torna mais condizente com aquela, exaustivamente divulgada, de sua vetustez, imagem idealizada concebida não só nos esforços dos editores como também na faina do argentino em suas palestras e derradeiros trabalhos. O quanto o consagrou foi, no entanto, concebido antes, em sua maturidade ambígua, parecendo restar-lhe, nesses derradeiros decênios de vida, tão-só passear as jóias que lapidou no passado, exibindo os mais variados ângulos do seu brilho. De fato, não é incomum que na obra tardia nostalgicamente se debruce um autor sobre sua produção primeira, tampouco são raros os que se vêem inexoravelmente atados a uma única fórmula até morrerem. Poucos, entretanto, o fazem como o portenho e não é à toa que trabalhos como 'O Aleph' sejam considerados como chaves para a compreensão de toda sua produção: o objeto 'mágico' ali descrito enseja a visão de tudo no mundo tal qual cada conto, ensaio ou poema seus são, em última análise, perspectivas diferentes dum mesmo cerne, o qual é ele mesmo, Borges, em seu perene assombro em face duma existência que o tornou quase imaterial, coibindo-o à renúncia de parte significativa de sua condição corpórea.

'Borges à contraluz', enfim, pode ser tido como o sítio onde soem combinar-se as diversas mesquinharias, como a dessa velha dama cuja cama recusou antes de casar-se aquele que admirava (embora não o desejando sexualmente), e como a nossa, mesquinharia de admiradores sabendo a escrevinhadores que se consolam da mortal condição nas desventuras comezinhas de quem, um dia, logrou urdir a própria imortalidade. O 'té' de 'la' Canto é a ocasião 'par excellence' do confronto de mediocridades variadas que, a despeito de consabidas e toleradas, refestelam-se em longas risadas a bochechas intumescidas e dentes postiços empastelados de bolacha molhada. E é desejando compensar-nos de suas alusões incontidas que a escritora nos oferece provas tidas e havidas como cabais, abrindo-nos, lá para o meio do livro, o seu correio íntimo, donde nos saltam Borges inesperados, em fotos e em caligrafia, ingênuos e ordinários em grande parte, dos restantes sobressaindo este, mais condizente com aquele das obras completas e, não obstante, trescalando Pierre Menard como se, esquecido de si mesmo, 'Georgie' se inventasse para esse amor da meia idade: "No sé qué lo ocurre a Buenos Aires. No hace otra cosa que aludirte, infinitamente".

Rio 31/01/06

Waldemar Reis

Um comentário:

Anônimo disse...

O meu comentário não é sobre o texto, mas sobre as garrafas de destino incerto deixadas ao mar.
Waldemar Mendonça Reis, morou em São Paulo, no Bexiga em 1980 ?
Se sim, eu também !
Paulo Rapoport - Popó
paulorapoport@ajato.com.br
www.batataria.com.br/paulorapoport.htm


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