segunda-feira, setembro 18, 2006

Melancolia

A idéia de depressão traz a mim a lembrança de uma charge, se não me engano, do Sempé, monumentalmente estampada em duas páginas de um número dedicado à literatura latino-americana da antiga revista Status. No traço descuidado e sujo típico da caricatura do século XX, mas nem por isso feio ou ininteligível como o foram muitos da sua espécie, divisavam-se, do alto, blblioteca ocupando todas as paredes de um enorme salão obscurecido e, quase perdidos na imensidade da detalhada garatuja, duas personagens assentadas sobre poltronas fartas. Apenas uma delas fala e discorre sobre os seus motivos para evadir-se da depressão, a frivolidade dos quais a deprime.

Sou de opinião que o deprimido só tem mesmo solução para o seu mal na folia - com o perdão pelo galicismo, mas ele ilustra suficientemente bem uma face do comportamento que a moderna psiquiatria diagnostica como doença bipolar. Nos termos de Sempé, dir-se-ia que o doente adere aos motivos inconvicentes ou permanece melancólico, pois não os há de outro tipo. E tal adesão só se verifica quando o sofrente o faz com todo o seu ser, digo, de modo frenético, estado cuja duração é medida na razão direta de sua resistência física: se o sujeito tem sorte, há falência orgânica; se não, um repouso temporário é o prelúdio para, caso encontre motivo, retomar o desvario ou, no caso contrário, intoxicar-se outra vez com a bile negra. Afora essa, à inteira disposição de espíritos menos exigentes ou mais necessitados, há soluções mais demoradas, da ordem das terapias propriamente ditas, e que requerem, se não maiores refinamentos, por certo boa dose de determinação.

Tenho alguma experiência no assunto, claro, como padecente e, de quando em vez, como leitor de doutas opiniões na matéria. Conheço a envolvente gravidade das razões depressivas, bem como a trivialidade exasperante das que as combatem (assim vistas do viés de quem se deixou convencer pelas anteriores). É efetivamente impossível escapar ao assédio das primeiras quando se sobrevive um pouco ao corte do cordão umbilical (não estou sendo hiperbólico, visto o corpo recém-nascido, a descoberto dos cuidados automáticos do organismo materno, já ser provido do arcabouço sensorial na raiz do fato depressivo, pelo qual tem de, doravante, chorar quando tem fome ou frio, ao menos). Entretanto, talvez em virtude do período de formação do indivíduo, ao longo do qual constitui e consolida essa parte sua mais afeita aos motivos depressores, falo da razão, só quando adulto virá discernir dos demais sabores à sua disposição o amargor característico desse mal, dar-lhe-á um nome e perceberá que sua saída está em abrir mão disso que lhe concedeu a maturação, em retornando a um estado mais próximo do inicial, grandemente desconfortável quando se está em contato com quem não reconhece ou aprova essa via terapêutica. Há quem, como eu, encontre modos aceitáveis do viés da sociedade de alternar a inexorabilidade da tristeza com uma atividade física radical, no caso, um esporte, mas há quem encontre solução em exasperar-se com os entes queridos até as vias de fato ou com os opositores numa tribuna e quem consuma drogas ou se exaura em sexo para não se entregar ao fim decerto o mais lamentável reservado a um vivente.

Além do padecimento de intermitentes depressões, minha experiência na área tem sido larga como testemunha de crises alheias. Uma destas arrastou-se por anos, cerca de doze, mas eu a assistia demasiado próximo para só lhe extrair os ensinamentos mais de década depois. Tratou-se de um construto cuidadoso, muito bem justificado (pois era indivíduo de enorme inteligência quem o fez) e cuja raiz se alimentava do truísmo que, não obstante de presença insidiosa em todos os instantes da vida, só à razão maturada caberá defini-lo assim: há sentido, sim, pois correm as coisas umas com as outras, umas após as outras, em diversos encadeamentos, sendo impensável negá-lo; mas não há finalidade, justo em virtude desse mesmo encadear-se de coisas, ou seria preciso estabelecer aí um ponto terminal (algo que, diga-se en passant, é preciso tanto coragem quanto desespero bastantes para fazer!). Em suma, nesta, cruamente demorada, tanto quanto nas demais depressões, passageiras ou não, a que assisti, reduziam-se os sintomas à simples formulação do efêmero. Em aparência noção excessivamente geral para dar conta da diversidade de melancolias, é suficiente considerar-se o que lhes serve de estopim, os aliciantes motivos no cerne dos quais esconde-se ao menos um 'não': 'não é possível', 'é inviável', 'não consigo', 'não deu'...

A depressão ataca fundo a segunda das virtudes teologais, a esperança, a qual não passa do modo de a primeira, a fé, manifestar-se. Em meu entender, fé é instinto sem o qual a idéia de vida não se consuma: estar vivo é o mesmo que ter fé, que é o dar o passo sem a certeza de sê-lo possível ou o continuar por continuar, por ser assim que se foi feito, para a continuidade. Já a esperança é a presunção de que o passo a ser dado possa ter finalidade outra que não o dar o passo mesmo: a esperança é como a cenoura pendurada à frente do burro por quem o monta. Pois bem, e o deprimido é aquela montaria que entende ser impossível morder a isca, aliás, já nem a considera como tal, mas como a fonte de seu tormento: e então empaca. Justo aqui melancólico e eufórico se separam, digo, é precisamente no modo de agir diante da cenoura que o eufórico pode desfrutar da graça efêmera da folia: basta acreditar - ou mesmo fingi-lo de si para si - que, sim, é possível alcançá-la, pois, ora, é de fato mais agradável essa crença do que a contrária. E, como que por milagre, assim pensando o nosso burrico é capaz de fazer-se em alazão, embora com tal arroubo arrisque surpreender seu montador, derrubando-o e à cenoura, a qual poderá, finalmente, ser degustada, mas ao custo da decisão previsível do dono de não usar tão cedo da artimanha, pelo que ao burrinho folião as cenouras parecerão mais apetitosas quando eternamente diante dos olhos do que eventualmente dentro do estômago.

O deprimido obstinado tem uma de duas sentenças: aguardar que nada em si ouse o passo seguinte, o último dos quais será dado pelo coração, ou estabelecer uma data para sair de cena (conheci alguém que elaborou o enredo exato para convencer a enfermeira a levá-la ao terraço do prédio, donde se lançou). A última alternativa, é bem verdade, um deprimido convicto das razões de o ser a rechaça com a alegação de que nela encontrou-se ao menos uma esperança e se a fisgou como fez o burro com a cenoura, com a vantagem de essa estar envenenada, poupando-o da futura decepção pela ausência provável de mais iscas. Mas o deprimido convicto também não escapa às próprias críticas, pois no fundo espera que, morta a esperança, morra-lhe de imediato a fé (sim, não é a esperança, mas a fé a última a morrer, visto que o sistema basal parece insistir em seu trabalho meramente orgânico quando à consciência faltam objetos que esperar). Ao soi disant deprimido autêntico (como o da charge do Sempé), no entanto, não se pode imputar a infidelidade aos princípios, reconhecidamente universais, de sua depressão.

Tal acusação se aplica do mesmo modo aos que escolhem a euforia: são rigorosamente fiéis aos motivos que os agitam, motivos esses, reitere-se, idênticos àqueles do melancólico e tão prosaicos como uma cenoura. Está livre de erro, portanto, a ciência médica ao vê-los como faces de uma mesma moeda compulsivamente lançada ao ar. E sustentarem-se como tais, eufóricos e deprimidos, é questão da resistência orgânica de cada qual, devendo o estado de um ser substituído pelo estado oposto enquanto o corpo o permitir. Há, não obstante, um modo de evadirem-se desse jogo, existindo quem o faça como que por natureza, embora o comum seja topar com quem o conseguiu em longo e continuado esforço. Trata-se de estado intermédio, não estático, tampouco eqüidistante de tristeza e folia por isso mesmo: quem nele se encontra não se torna imune a uma ou à outra, sendo capaz de experimentá-las alternadamente como qualquer indivíduo, mas com o privilégio de não se ver enredado por nenhuma. Chamam-no de indiferença, frieza e insensibilidade, havendo também quem escolha formas menos parciais de nomeá-las, como beatitude, ataraxia, nirvana e satori, e quem aprecie as designações oriundas da clínica psicoterápica, dizendo que se está em alta, que se tem o passe, ou da clínica psiquiátrica, onde o alcunham de dopagem. À exceção dos pacientes psiquiátricos, aos quais em sã consciência não se pode atribuir a experiência de alguma emoção, aqueles cujas imunidades à bipolaridade foram conseguidas por esforço próprio experimentam uma dificuldade singular: a de conservarem-se como estão, pois permanecem à mercê das forças que tangem para lá e para cá deprimidos e eufóricos, sendo por elas testados sem pausa, a ponto de terem de habituar-se a viver em dúvida quanto a terem ou não conseguido o que pretendiam, considerada melhor do que a certeza, que lhes acarretaria presunção ou frustração e os conduziria de volta à roda de excitação e infortúnio.

As fórmulas para aí se chegar são variadas, havendo particular predileção pelo divã psicoterápico e pelas práticas originadas em culturas asiáticas, entre as quais a meditação, sem falar nas farmacopaicas, legais ou não. O espírito cristão, por outro lado, desperdiça hoje, resultado da ignorância apondo toda sorte de estapafurdice à singeleza da doutrina original, as propriedades balsâmicas da caridade, terceira das virtudes teologais, indo buscar na compaixão budista sucedâneo eventual, com a desvantagem de esta não se encontrar tão imiscuída nos códigos de sua cultura quanto a outra. Pondo outra vez de lado as conotações de teor místico ou religioso, parece-me evidente que, assim como a esperança é a fé provida de objeto, a caridade vem a designar o objeto mesmo a nutrir (a dar corpo a) a esperança. Entendido como apenas outro nome para esmola, o termo caridade tem servido a cada dia menos como auxílio para se atingir a beatitude, o estado para além de bem e mal. Observando-se, entretanto, alguns dos seus significados anteriores, encontra-se ali a idéia de 'caro', designando tanto preço alto quanto afeto, sendo a dádiva, em particular a monetária, um modo relativamente eficiente de o indivíduo demonstrar, na esfera social, o presumido cultivo desses dois valores.

Nisso, acredito, reside o maior entrave do sujeito à solução de sua durável condição bipolar, visto parecer o mesmo para o seu semelhante que ele de fato a tenha superado ou que apenas o aparente. O recurso às drogas legais recende um pouco a essa idiossincrasia social, restaurando a tranqüilidade do meio - o grupo - e do indivíduo enfermo, embora sem qualquer controle deste sobre seu novo estado e a um preço ainda desconhecido em termos orgânicos. (Essa observação ajuda a entender o porque de a religião ter sido refinada como sorte de opiáceo popular.) A considerar a tendência orientando toda iniciativa em nosso já bem sedimentado hedonismo tecnológico, por meio do qual o homem não mais necessitará demover de moto próprio qualquer obstáculo de seu caminho, é provável que em breve tenhamos de receber a primeira geração de seres geneticamente planejados sem propensão alguma à melancolia. E parece natural que os queira também imortais, como se demonstrasse a ciência, por intermédio de seus admiráveis artefatos, a ingênua crença de o nirvana - o paraíso - ser mesmo aqui, bastando apenas povoá-lo de quem o tolere indefinidamente.

Rio, 17de setembro de 2006

Waldemar Reis

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