terça-feira, janeiro 01, 2008

Nota sobre intolerância e doutrina liberal

Crença muito difundida no mundo moderno, embora já sustentada de longa data, é a de sermos todos capazes de conviver a despeito das diferenças, a despeito das divergências. Pode alegar-se, é bem verdade, que se trata antes de hipótese justificada na constatação histórica: em vista da fragilidade inerente para sobreviver no meio natural, o gênero humano vem submetendo-se a perene comunidade desde – é suposto – o seu aparecimento, embora não seja possível afirmar com conforto a permanência de um estado de paz, de bem estar, sequer em dois instantes consecutivos dessa história comunitária. Prova esta de o contato de indivíduos humanos não se ter isentado do traço da intolerância – a despeito da forçosa determinação de convívio trazida na constituição frágil da espécie – ou ser afeito a divergências inconciliáveis que, se não têm o poder de cancelar o contrato social, o tornam em contínuo suplício.

Entretanto, se tomada como se anunciou, como crença, no sentido de profissão de fé, a afirmação de ser possível convivermos não obstante divergirmos, quando posta na boca de quem esteja seguro de possuir as melhores intenções ao dizê-la, parece pressupor um estado contrário ao observado na associação humana, a saber, de paz, compreensão, enfim, de tolerância. À primeira vista parece sugerir a prática disto mesmo, da tolerância, digo, parece ensejar a constituição de indivíduos permanentemente capazes de relevar o quanto na atitude alheia lhe possa ser infenso, mas não, talvez, o seu aperfeiçoamento com vistas a não empreenderem nada a impedir o bem-estar dos demais. O bom senso nos indicaria tratar-se de ambas as sugestões. O mau treinamento na boa convivência obriga quem sofre suas conseqüências a tão-só tolerar, atitude imprescindível enquanto o uso sistemático da auto-crítica pelos ofensores não a torna desnecessária. Atingido, assim, um estágio generalizado de ações individuais selecionadas, imagina-se que os pontos de dissenso permaneceriam existindo, embora seja igualmente de supor não consistirem em fatores a cobrarem complacência acentuada.

A experiência histórica mostra-nos também isto: dentre as divergências há as intoleráveis, as quais o mundo como o conhecemos vem, via de regra, negligenciando, vem fingindo, de um lado, não praticar atos merecedores de grande tolerância – quando não de punição severa – e, de outro, não dar fé daqueles de que são vitimas – numa sorte de indiferença à imitação da estóica, embora prenhe de ressentimentos. Definindo-o de um modo apressado, o divergir constituiria oposição frontal de indivíduos a condições tidas como contrárias ao que é fundamental em suas existências. Tendo-se em conta isto, ou não há entre nós consenso quanto a quais sejam as condições adequadas e mesmo quanto a se consistem de fato em fundamento existencial do indivíduo (disto deduzindo-se a incompatibilidade geral e incontornável de cada um para com os demais), ou a capacidade humana de indulgenciar é demasiado reduzida. Talvez observem-se ambas as situações.

Excetuando-se as iniciativas pessoais, sobre as quais podem incidir escolhas religiosas, há duas tentativas seculares clássicas de equacionamento do bem-estar comunal experimentadas no correr do último par de séculos ditas, uma, liberal, outra, socialista. A contraposição dos nomes e sua aplicação aos fatos sugerem, a uma abordagem imediata, certa indiferença para com a causa coletiva no primeiro e, no segundo, incompatibilidade de gregarismo e liberdade. O modo de entender o conceito de liberdade é o referencial para o sugerido na oposição dos dois termos: se designa a obediência do sujeito a tudo quanto possa ditar-lhe o desejo a despeito do mal-estar alheio, o liberalismo vem a ser o embate perpétuo de individualidades num meio político de regras demasiado instáveis e o socialismo doutrina cuja missão é o estabelecimento de limites para a atuação pessoal com vistas ao bem geral; mas se liberdade se define como a manifestação de quem, justo por ter na mais alta conta o próprio bem-estar, entende a estreita dependência deste para com o dos seus consociados, então as diferenças entre liberais e socialistas deixam de ter sentido.

Um indivíduo livre neste último sentido é, parece-me, tudo quanto pode desejar-se de alguém, mesmo se quem o deseja toma como verdadeiro o primeiro dos significados de liberdade. Muito embora se espere de quem se crê livre desse modo – o primeiro – a firmeza bastante para transigir em face dos excessos previsíveis de outrem compartilhando do mesmo credo, a prática fornece constantemente dados demonstrando a variedade de lindes, nesses professos liberais, para a tolerância das veleidades alheias. Pelo que o liberalismo, embora ensejando pronunciar-se em prol de uma irrestrita liberdade, termina por apor-lhe condições, ainda que de contorno incerto, assim dando margens a variegadas interpretações que o tornam, em realidade, o preceito bárbaro que de maneira tão canhestra tentou aprimorar.

Ora, o liberalismo pontuado de regras de conduta termina por ser, à primeira vista, justo aquele professado por quem tem na mais alta conta o próprio bem-estar e por tanto cuida do bem alheio por conhecer o quão entremeados este e o seu estão. Mas se termina por incorrer em erros ou em burlas, é por não se constituir sobre tal premissa, a do bem comum em prol do bem individual, antes usando-a como sorte de estatuto provisório cujo fito, nada inocente, é tão-só protelar uma pré-concebida ação livre à moda libertina para quando oportuno for. Por trás da transitória regulação da liberdade, enfim, jaz ad aeternum a esperança do indivíduo de perfazer atos livres no sentido em que, no fundo, crê, ou seja, a despeito do assentimento dos que a si estão associados. Quanto à oportunidade, ela é, infalivelmente, aquela em que o ato inaceitável passará desapercebido ou em que terá de ser universalmente tolerado, sem alternativa: em suma, todo liberal autêntico, no primeiro dos sentidos apontados acima, é aquele que aguarda a circunstância em que terá poder suficiente para predominar, desse modo desfrutando os seus atos da invisibilidade ou da ostensão próprias de quem os pratica do viés dominante.

Uma das espertezas da conhecida doutrina liberal em voga nos meios políticos e econômicos desde pelo menos os confins do século XVII é anuir ao conhecido bordâo reconhecendo oportunidade para todos. Ora, pergunte-se, com razão: oportunidade de que? para que? Para ocupar – ou de ocupar – os postos exclusivos e reservados aos quantos podem gozar da própria liberdade como sói, por sob os disfarces, professar a doutrina liberal. O resultado evidente é a própria realidade na qual estamos imiscuídos, de que falávamos no início, sortida de todo tipo de desentendimento, uma vez todos – ou praticamente todos – terem por desejo maior galgar a pirâmide social ao encontro desse lugar por cujas duvidosas virtudes está-se desde berço seduzido. Quem escapa à sina de tal aspiração é decerto por ser dotado de dose maior de tolerância ou por achar conveniência no lugar, embora ordinário, que ocupa. Destes muitos há que não recusariam, caso se apresentasse graciosamente, a ocasião de ascender: são os oportunistas no sentido lasso e não seria de impressionar se um estatístico mostrasse que existem em proporção muito maior do que a suposta aqui.

Interessante é notar o quão cioso é o homem de sua escalada na descoberta de bens tecnológicos cujo fim, naturalmente, é incrementar o conforto. A despeito de vivermos num tempo de crescimento em progressão geométrica da geração de tecnologia, futurólogos teimam em supô-lo infinito, inesgotável. É de esperar, na medida em que igualmente não tem peias o desejo de bem-estar do indivíduo humano. Ao lado disso, pouco ou nada se espera, ao menos na prática, de aperfeiçoamento da própria natureza do homem, a saber, do seu caráter, de sua capacidade de melhor conviver. Do viés da doutrina liberal, pouco se espere nesse sentido: melhorar a natureza humana seria conspurcá-la, privá-la de seus anseios de liberdade ou, antes, de sua livre manifestação. Uma das pedras de toque do liberalismo, inclusive, é o atestamento e a defesa da diversidade de anseios: nem todos querem o mesmo, razão de muitos estarem satisfeitos onde estão, não necessitando atingir o topo da pirâmide social para sentirem-se plenos. De uma certa maneira têm razão os liberais: quiséramos todos as mesmas coisas e não haveria necessidade de tanta publicidade, de tanta estratégia de mercado direcionando o desejo de muitos para certas coisas. Mas a satisfação a que se referem pode, em grande medida, ser nomeada 'resignação', visto não contarem os resignados com o suficiente para sequer almejarem sair de onde estão e rumarem para um posto imediatamente acima. Se consideradas as condições reais desses lugares pode ter-se uma razoável medida do poder do instinto vital, fazendo os seus ocupantes preferirem ser como são a não serem de modo algum. E, é claro, um bom liberal não deixaria de tirar partido de escolha assim instintiva a lhe proporcionar hordas de mãos laboriosas sustentando a sua privilegiada posição.

Rio, 01 de janeiro de 2008

Waldemar Mendonça Reis

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