terça-feira, junho 19, 2007

Filosofia, narcisismo, ética e moral

Filosofia não é uma ciência. Jamais poderá sê-lo. Se de fato cunhado por Sócrates, em tudo parece condizer o termo com a reputação sobrante desse filósofo, cujo interesse centrou-se no que mais tarde se chamou de Ética, esta, sim, ciência das ciências. Filosofia, como o próprio nome indica, designa tão -só disposição especial do sujeito para fazer ciência. Sua idéia nasce, provavelmente, quando este se inteira de sua condição irrefreável para conhecer, atividade central de sua existência, pouco importa o que de diverso pense fazer, e a incorpora como o amante ao direcionar sua inclinação amorosa para outrem ou mesmo para ninguém em particular, mas a exerça indiscriminada e integralmente por gostar de exercê-la.

Filósofo é tão-só quem ama sua disposição inata para o conhecimento e a aplica, seja a um só, seja a muitos objetos, observando-os e entendendo-os de um ou de variados modos. Distingue-se dos demais indivíduos exatamente por esse amar, pois conhecem apenas por serem dessa maneira constituídos. Por outro lado, o filósofo não se mostra em essência diferente de outro humano qualquer: é suficiente admitir que a cada um pode caber afeiçoar-se a uma ou muitas das inúmeras características de que é constituído, podendo amar-se o próprio braço, por exemplo, pela força ou pela forma que apresenta, o próprio nariz, a boca, os olhos, as próprias mãos, os pés e mesmo o corpo por inteiro, a inteligência ou o humor descontraído, a própria honestidade e até a malícia e a vilania de que se é dotado. Embora possa concomitantemente amar uma ou mais de suas partes constitutivas, o filósofo ama sua condição cognoscitiva. Mas ama-a sem hesitação.

Ao encarar a si com tal sinceridade um filósofo percebe não passar de mais um dos acometidos de narcisismo, talvez não de um narcisismo integral, pois nem todos são como Alcibíades, cuja beleza física, entretanto, não pareceu comover Sócrates, encantado, como era, com apenas ser filósofo, mesmo porque não via em seu próprio corpo motivos para amá-lo. Mas não devemos esquecer que assim como conhecedores inatos, embora não por necessidade embevecidos com o conhecer, embora não por necessidade filósofos, somos também e em essência narcisistas, temos de amar ao menos uma, se não várias, de nossas características, ou mesmo todas elas, do contrário viver pode tornar-se experiência de todo desaconselhável. Há quem diga ser possível desprezar tudo em si e ainda assim ter vida tolerável, quiçá agradável, quando se aprecia outra coisa qualquer fora de si: nesse caso, entretanto, goza-se ou ama-se esse apreciar mesmo, o qual, sem dúvida, é parte do sujeito.

Filosofar, como se vê, não faz de ninguém um ser especial, mais ou menos louvável do que qualquer outro entre cujas predileções não está o conhecer. Entretanto o seu gozo com o conhecimento, porta aberta que é para a ciência, propicia-lhe o ensejo de tornar-se alguém distinto dos demais, um ser verdadeiramente singular. Isto ocorre quando o filósofo finalmente entende o por que do seu conhecer: conhece para agir, embora também aja para conhecer, embora em certas circunstâncias aja como se em aparência ignorasse o motivo ou a finalidade de sua ação e embora aja e sempre tenha agido, desde sua primeira ação, por ter algum conhecimento, aquele suficiente para ação assim primordial. Sua sabença está a serviço de como se comporta diante das coisas, pois é preciso considerá-las ciosamente, ou arrisca viver em desacordo com elas e mesmo desaparecer, extinguir-se.

Pelo inerente amor a si o sujeito - qualquer um - tem de saber como coordena suas ações dirigidas ao meio, tem de saber resistir a este e com tal resistência tem de igualmente preservá-lo, pois depende disto para continuar existindo. Em sua afeição pelo conhecimento o filósofo parece mais afeito do que os demais indivíduos a admitir essa interação necessária com o mundo e, claro, a cultivá-la de modo singular, buscando entendê-la cientificamente, ou seja, segundo princípios aplicáveis a uma ampla gama de situações e aceitos mediante provas, ou não lhe merecem a fé. Para tanto inteira-se da necessidade de valer-se de tudo quanto sabe, de todas as ciências que cultivou ou pode cultivar, pois encontrou a ciência por excelência, a ciência de todas as ciências: encontrou a Ética. E quando a encontra, de modo diferente de outros filósofos, cujas sabedorias se aplicam segundo princípios variáveis ou instáveis ou segundo princípios dizendo respeito tão-só ao seu amor a si próprio, o filósofo versado em Ética não pode empregar a sua senão sob os pressupostos inflexíveis dessa ciência máxima, tem de, por conseguinte, comportar-se como o sábio que é, caso contrário mostrará não passar de aprendiz, não passar de um curioso movido apenas por uma paixão qualquer.

Mas a todos, queiramos ou não, termina por interessar a Ética, sugere-me a voz que me inteirou também de sermos conhecedores e narcisistas natos. Sim, respondo-lhe, temos todos de estudar Ética, embora não do modo ou com a intensidade de um apaixonado por conhecê-la, não como o filósofo convencido de ser ela a única ciência possível, diante da qual as demais encontram justificativa, mero apêndice que são dela. Diferentemente do Ético, chamemos assim a esse filósofo, nós outros não buscamos perfeição sequer semelhante à que encontra em sua ciência. Seríamos, quando muito, versados numa espécie de sombra desta: pois se conforma em função das múltiplas superfícies sobre que é projetada, sendo variável e volátil como os acordos que propicia, incerta e sinuosa como as justificativas para as ações que enseja, quase que uma para cada sujeito. Enfim, sem amar o conhecer que nos é inerente podemos até fazer ciência, mas por imposição da própria natureza, e tal ciência congênita tenderá, também por necessidade, a algo como a Ética, a um seu arremedo, ética de amadores, não de verdadeiros amantes do conhecimento, ética possível a quem deseja exclusivamente desfrutar a vida sem saber ao certo se por mérito ou mesmo se de fato o faz: e seu nome correto é moral.

Rio, 19/06/07

Waldemar M. Reis

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