Em seu livro tratando de Deus o cientista Dawkins investe principalmente contra a versão de origem judaica da divindade. Mas não prova sua inexistência, para desespero de quem busca esse tipo de informação em publicações do gênero. Sua argumentação, nem sempre consistente, achou por bem concluir que é "praticamente" impossível que Deus exista, ou seja, embora não haja provas cabais dessa impossibilidade, é cabível tratar o assunto como se as houvesse, visto também não se provar o contrário.
Algo há, entretanto, a impedir a conclusão categórica desejada pelo autor, sendo devido, por isso, dar a esse impedimento valor análogo ao de uma prova, embora não se diga com a clareza suficiente do que se trata. E, é possível deduzir, se possui valor de prova, este é deveras baixo, pois também permite que ’na prática’ se possa ter Deus por inexistente.
Em algumas partes Dawkins menciona a improbabilidade tamanha de a vida formar-se no universo para enfatizar como somente o processo adaptativo teria proporcionado àquele evento, quase único em toda a duração do cosmo, manter-se e multiplicar-se. Percebe-se pelo argumento que Deus, em sendo ’na prática’ impossível, pode ser tido, ao menos em teoria, como ’muito improvável’ se comparado, por exemplo, à aparição da vida.
Mas probabilidade é função do tempo, que mais chance oferece de ocorrer o menos provável quanto mais longo for o período: refiro os eventos praticamente inexistentes, esses de existência muito improvável. À primeira vista parece abuso da lógica traduzir aqui a opinião de ser Deus ’praticamente inexistente’ como a de ser ’muito improvável’ que exista. Entretanto é isto o que quer dizer a ciência em não encerrando o assunto com provas irrefutáveis de não haver deus algum.
E quando Deus é o tema isto parece mesmo ser o máximo permitido à ciência honestamente concluir: pela muita improbabilidade de sua existência. Muito natural, é evidente, pressupondo-se honesta a ciência (uma ciência desonesta é contradição de termos, obra da estultice), visto ’improvável’ designar literalmente aquilo de que não se possui provas ou para que ainda não se conseguiu produzi-las. Sob esse viés as evidências da aparição da vida não são mais eloqüentes do que as da existência de Deus.
Em síntese, a ciência não é capaz - e desse modo o confessa - de detectar Deus, ou seja, não tem meios de realizá-lo. Deveria, por conseguinte, postergar suas investigações do tema até quando se sentisse melhor habilitada para a tarefa. Isto seria de esperar de qualquer pessoa honesta e ciente da distinção dos significados de improvável e impossível.
Para surpresa geral a ciência se vale, ao contrário, do que se pode chamar de navalha cartesiana, embora empregando-a com propósitos diferentes. Se Descartes, diante da dúvida quanto à existência do mundo, escolhe a negativa, não é por de fato descrer de que ele exista, mas para provar sua existência por intermédio do puro raciocínio, haja ver o esforço das últimas meditações. Assim, numa mostra de presunçosa confiança em si mesma, em face da muita improbabilidade a ciência encerra o assunto concluindo pela impossibilidade ’prática’ de Deus existir, o que, quando não se aventura a alardear de maneira taxativa, procura demonstrar nas atitudes de reserva cética dos seus profissionais.
’Pouco provável’ não é o mesmo que ’muito improvável’, como se poderia irrefletidamente pensar. Antes de mais, ’muito improvável’ não significa, a rigor, mais do que ’improvável’: o que, dentre tudo quanto é improvável, o seria mais ou menos, ou ainda, o que, dentre tudo de que não se pode provar a existência, oferece mais ou menos provas de existir? O que se exprimiria, nesse caso, modulando a improbabilidade com ’muito’ é, presumo, a confiança da ciência na própria capacidade de encontrar ou produzir provas do quanto decida investigar e de ser na prática inexistente aquilo que não as possui, além da segurança de que tal persistirá ao longo da evolução do conhecimento.
’Pouco provável’, do seu lado, indicaria existir, sim, ao menos uma prova, por certo não cabal. Como viemos observando, para a ciência não têm valor as tentativas tradicionais de provar a existencia de Deus. Não vê por que, por exemplo, diante do abismo abrindo-se ao questionamento incontornável acerca do princípio de tudo, postular-se um ponto inicial e chamá-lo, talvez precipitadamente, de Deus. Ora, pergunta-se ela, por que parar aí? Por que não continuar a série interminável de perguntas com aquela sobre a origem de tal origem?
O teísta astuto, usado nas limitações científicas, não perderia a oportunidade de observar a analogia entre sua própria precipitação em postular um fundo para o abistmo de questões acerca do princípio e o uso feito pela ciência da navalha cartesiana. Se é direito avaliar como nula a existência de algo (muito) improvável e com o prognóstico de essa avaliação permanecer enquanto houver ciência, ora, é direito também pôr Deus na origem de tudo, ainda que esta seja de fato inconcebível. Do mesmo modo amputam-se com freqüência as dízimas infinitas do quanto se considera irrelevante para obter-se o grau de aproximação desejado em cálculo que as utilize.
Aliás, a empresa científica seria impossível sem incontáveis reduções. Sendo seu objetivo constante a descrição do mundo, do seu funcionamento, e sendo o descrever o relato das interações de determinados fatos ou objetos, ora, a rigor uma qualquer descrição completa teria de abarcar absolutamente todas as interações, ou ter-se-ia de admitir no universo a existência de coisas que não interagem de modo algum, isto, sim, uma impossibilidade lógica. A descrição da ciência, entretanto, para ser exeqüível tanto quanto útil, tem de eleger um âmbito de interações a serem listadas, além do qual nada é tido por relevante para determinado fim. Caso contrário, nem toda a eternidade bastaria para a descrição de uma partícula, idêntica, se concluída, à descrição da totalidade das coisas.
Esse reducionismo, é bem verdade, não invalida a ciência, embora lhe confira considerável grau de imprecisão, aumentável por sua cooperação com as finanças e contra a qual o cientista honesto se bate. Não é incomum o uso de algo cujo conhecimento, por diversos motivos insuficiente, resulta em efeitos imprevistos e, não raro, indesejáveis também.
Assim como nos procedimentos científicos, há no procedimento teológico tão-só a presunção metodológica de evitar, com a designação ’Deus’, a queda interminável no abismo aberto pela questão da origem, em tudo semelhante ao método geométrico, que tem de eleger um entre os infinitos pontos de uma linha, sobre o qual baseará sua demonstração. O problema da teologia, o mesmo de todo ramo do conhecimento, começa quando produz ilações muito particulares e supostamente derivadas desse fundo arbitrário dado ao seu precipício, desse modo incitando ações intoleráveis.
Crendo-se honesta, a ciência não pode bater-se contra a iniciativa teológica, pois esta não é senão a investigação de um pensamento recorrente em toda a história da humanidade. Crendo-se honesta, a ciência teria de bater-se contra certo tipo de teologia, como de fato se bate contra a biologia com pressupostos criacionistas. A bem dizer, bate-se a ciência contra espécie de espantalho quando investe contra os resultados canhestros de uma teologia precária, embora capaz de estimular atos nefastos. Portanto não pode partir para a negação completa da empreitada teológica, em particular por não lhe ser possível tanto, como o demonstra ao estimar a existência de Deus como nula na prática ou ’muito improvável’.
Outro aspecto saliente do debate científico sobre Deus é o da inteligência. Para um evolucionista a inteligência resulta do esforço adaptativo das espécies que a portam, possuindo uma história, ainda que lacunar em tempos atuais. Com efeito não nos parece procedente chamar de inteligente o gene, mas sim o sujeito a quem dá origem. Que a inteligência exulte diante do trabalho genético e mesmo que o utilize para os mais diversos fins, isto não significa haver inteligência nele, nada obstante aja a inteligência como replicador de tudo quanto encontra na natureza, em grande medida lembrando, é mister admitir, a atividade do próprio DNA.
Se considerado desse modo, o assunto se encaminha para a afirmação de que, se de fato princípio, Deus não teria de necessariamente ser inteligente, como diz a teologia, não sendo a intelegência também um traço de que tanto possa a humanidade se orgulhar (e muito menos passível de honestamente atribuir-se a um ser considerado como a suprema origem de tudo). Em fim de contas a inteligência não passa da capacidade - em extremo variada e admirável, admita-se - dentre as tantas promovendo a reprodução de processos encontráveis todos na natureza, algo em boa medida muito comum. Neste ponto o teísta astuto teria de admitir que para Deus seria inútil, se não inconveniente, dizer-se inteligente, pois deve ele ter sacado o mundo do nada, tendo de inventá-lo desde o princípio, algo decididamente impraticável por qualquer inteligência - a qual cria, de modo impressionante, mas sempre a partir do já existente.
Em suma, se a inteligência cria (a partir do zero, portanto), então é atributo divino, mas se apenas reproduz, não passa de um dos resultados do quanto iniciou com a criação. Quando se bate com teorias como o criacionismo ou o design inteligente a ciência arremete contra os castelos de cartas de quem muito se admira do fucionamento das coisas, contra mera mostra da vaidade da inteligência. Quando combinado a esse centro, em que, humanos, nos constituímos e cujas capacidades únicas são a de emitir juízos numa gama indo de bom a mau e a de agir em função deles, esse replicador de processos no universo crido como exclusivamente humano, a inteligência, proporciona ocasião para muitos julgamentos positivos desses centros, outrossim ditos ’eus’. E, convenhamos, nada de intrinsecamente pernicioso há em as consciências regozijarem-se com aquilo de que são capazes.
O problema de qualquer vaidade - ou de qualquer coisa - estaria no uso que dela se faz, em particular o de produzir embriaguez inoportuna e, como no caso da inteligência, de incorrer, se não na produção de miragens dos processos na natureza (pois tudo quanto observa quase com certeza é como tal), por certo no emprego duvidoso dos mesmos. Em termos do criacionismo ou design inteligente há neles a combinação de investigação biológica ou cosmológica e de uma versão particular, aquela do ramo judaico-cristão, da intuição (chamemo-la assim) da divindade. Nesse embate a ciência teria com justiça o direito de no máximo perguntar pelos critérios usados para escolher esse e não outro dentre os inúmeros modelos disponíveis de Deus e de enfiada encaminhar, com o auxílio dos instrumentos da lógica (de momento, creio, os únicos a darem conta de semelhante tema), a devida crítica a este e aos demais modelos preteridos.
Mas para fazê-lo, tão afastada anda da filosofia (sua única e permamente fonte), a ciência terá de oferecer a mão à palmatória e admitir que carece de meios mais eficientes para detectar provas da existência de Deus. Terá de manter a distinção dos significados de improvável e de inexistente. Terá de convencer-se de que jamais conseguirá apagar do espírito humano a solução que este dá ao problema da origem, pois seria preciso antes convencê-lo a esquecer uma questão que obstinadamente o acossa ao simples pensar. E terá de, por fim, enxergá-la, solução, como de fato é, como mero passo metodológico em tudo semelhante ao dado por ela própria, ciência, quando de fato lhe convém desconsiderar os detalhes.
Passo seguinte, questão de método, é o entendimento das razões para tanto interessar ao humano o conhecimento de seus começos ou, dizendo-o de outro modo, é compreender a mecânica de imiscuição de tal interesse no intercurso dos demais pensamentos, muitos dos quais a serviço de ações triviais. A questão da origem se instala em toda iniciativa humana de lidar com a natureza tão-somente por ser limitado o conhecimento: a simples presença de limites no quanto conhece determina de imediato o sujeito a indagar de suas causas e buscá-las, acreditando por hábito que também as têm, o mesmo podendo dizer destas e das demais na progressão infinita.
Depois, admitido como algo inerente à atitude de pensar o universo, o problema da origem suscitaria ainda a investigação da pertinência de solucioná-lo elegendo um ponto no qual interromper a cadeia de origens, chamando-o de a origem primeira, assim como a compreensão da natureza do mesmo, a saber, a compreensão de como ese ponto escolhido torna irrelevante a suposição de seus começos. Pois enquanto origem, seja no sentido de início, seja no de substrato da existência, não havendo outro, Deus terá de possuir ao menos esse atributo, o de ser presença da qual é inútil indagar a origem.
Só então é possível debruçar-se sobre a literatura sacra, quando por lume se tem a certeza de que Deus, para sê-lo, tem de oferecer-nos motivos para não nos perguntarmos como se originou. E só então se saberá das versões já oferecidas de Deus quais apresentam esse traço. Caso não as haja, que se empreenda de pronto a dedução dos demais atributos divinos, dos quais não é parte, como já se mostrou, a inteligência - seja tido por começo ou por substrato de tudo, Deus não reproduz nada, pois ele nada possuiria para reproduzir, mas cria: não nos permitamos esquecê-lo.
Mas não surpreenda o fato de muito do que disseram sábios e santos se aplicar também ao Deus deduzido. Ele talvez seja onipresente e quiçá onisciente, parecendo inconcebível que seja onipotente, pois a plenipotência acarreta a inação, já que o exercício de qualquer potencialidade reduz a potestade. Um Deus onipotente é um Deus imóvel, puro e absoluto potencial impossibilitado de agir, ou não seria a totalidade o que pode. Portanto a ação, é indiferente como a concebamos, parece ser atributo certo da divindade, que seria muito - e mesmo inifinitamente, embora não totalmente - potente.
Também não surpreenda que muitos desses atributos se distribuam por coisas chamadas físicas, aproximando a ciência, que as investiga, da idéia de Deus. Pois ruma a ciência no encalço do divino, quer admita, quer não, e quando o nega é por muito justamente não admitir a possibilidade de detectá-lo tal e qual está nos esboços tendenciosos apresentados pela teologia vulgar. A ciência precisa entender que aos poucos pinta imagem particular de Deus e como tal deve oferecê-la à apreciação geral, mas sem se fazer em religião, sem deixar-se seduzir pela facilidade de dominar, disponível para quem lida com conhecimento assim fundamental.
É contra a religião e não contra a presença insistente da idéia de Deus que quer bater-se a ciência; é contra o uso malsão feito dessa e de outras tantas idéias fundamentais para se compreender a condição humana e mesmo o universo, como a idéia de fé. Se o que diz a etimologia é verdadeiro, o termo ’religião’ proviria da noção suspeita de religamento, por intermédio de um agente, do indivíduo com a divindade, como se possível fosse estarem estes dois alguma vez desligados.
A religião deve ter aparecido como as demais formas de dominação, pelos idênticos motivos mesquinhos que retardam ainda a compreensão da condição gregária do ser humano. É cabível cogitar que tenha resultado do assombro produzido por quem melhor conhecia os processos da natureza naqueles que os conheciam menos. Sob esse viés ela não passa de manifestação precoce de patifaria científica, caso se anua sem dificuldades à evidência de que o homem desde sempre observou a natureza e, por conseguinte, bem ou mal, com maior ou menor eficiência, procurou compreendê-la, isto é, praticou ciência, embora sob a denominação genérica de religião.
Parece haver apenas um modo de a ciência não tomar outra vez para si as atribuições da religião: obstinar-se em sua vocação exotérica, pôr-se à disposição de todos sem exceção. Isto não significa dar acesso às novas descobertas, não apenas: o oferecimento de seus resultados a um público como o contemporâneo não tem efeito significativamente diverso da imposição religiosa de dogmas ao vulgo. Significa antes mostrar como somos por natureza determinados a conhecer, como a todo instante, mais ou menos automaticamente, concebemos hipóteses acerca do que nos rodeia e nelas nos apoiamos para agir. Significa mostrar que somos por condição cientistas necessitando apenas de algum crédito e de inteirar-se do básico da ética e da lógica dedutiva para organizar suas intenções.
Só assim todos entenderemos que a existência de Deus não deve ser tratada em termos ’práticos’ pela navalha cartesiana, pois o problema se insinua em pensamentos confinando com a ’prática’, seja lá o que se intente dizer com o termo. Entenderemos também que se o fazemos é por anuirmos à nossa incompetência para dar um fim cabal à questão, protelando-a indefinidamente; e que o ato de adorar o divino, persistindo na história, não passa de mais um aspecto da vaidade da inteligência, semelhante ao exibido nas teorias criacionista e do design inteligente, externado embora de modo negativo, depreciando a nossa em vista da suposta inteligência divinal. Entenderemos, finalmente, o risco contínuo a que nos expomos, o de perpetuar o comportamento religioso e suas conseqüências nefastas, sempre que fazemos da ciência uma prática de poucos em benefício imediato de número ainda menor de indivíduos e aceita pelos demais, o vulgo, em virtude dos efeitos assombrosos que produz, milagres em versão atualizada.
Rio, 01 de junho de 2008
Waldemar M. Reis
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